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O CEGO DE GUARDIAM

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Logo que expirou o cunhado, José Domingues cahiu n’um scismar atormentado. Só elle comprehendia a grande desgraça que n’esse dia entrára na casa de sua irmã, pobre mãe de cinco filhos, que tinha para os sustentar, unicamente uma roca. Lembrou-se de os trazer todos para onde a si; mas como poderiam viver tantas pessoas com duas pipas de vinho e um carro de pão? A pensar n’isto se consumia o pobre José Domingues, e aquelles olhos cegos desde tenra infancia, estavam grossos como punhos de tanto que tinham chorado. Até perdera o gosto á rebeca, prenda que seu tio frade lhe deixára, juntamente com as territas de que vivia. A comida entrava-lhe na bocca só á força, depois de muito o apoquentarem. Como toda a gente o estimava em Guardiam, iam alli pela eira pessoas conversar com elle, dando-lhe consolações e conselhos, coisas de pouca valia, pois não produsiam alimento para os sobrinhos. O seu amigo Miguel Tinta, trouxe o violão uma noite, para lhe acompanhar a rebeca; porem o cego é que não estava para tocar.

—Que queres, não posso. Tenho aqui um peso de seiscentas arrobas—rematou arrepanhando o coração.

Mas como algumas raparigas, com o fim caridoso de o tirarem d’aquelle malucar, lhe pediram insistentemente, José Domingues tocou umas musicas tristes, muito populares e queridas d’aquella gente. Foi n’esta occasião, que o Miguel, sentindo o cerebro illuminado por uma ideia, disse com enthusiasmo:

—Ouve lá. E se nós fossemos por ahi abaixo ambos! Não se ganharia alguma coisa?

Todas as pessoas presentes acreditaram que sim e applaudiram com estrepito a lembrança. Só o rabequista não tinha grande fé, pois disse:

—O que, a tocar? Uh!...

—Hade haver muito quem vos queira ouvir. Tentar fortuna é sempre bom prophetisou emphaticamente Zé Maximo, o barbeiro.

Resolveram-no logo alli. Os dois mais interessados planearam a coisa detalhadamente, mencionando as terras que percorreriam e as musicas que haviam de escolher. Uma manhã de primavera, partiram com o sol rubro no horisonte. Andaram por fóra alguns mezes e quando voltaram vinham satisfeitos, porque traziam um bom par de moedas na algibeira. Foi uma alegria para aquella gente, mormente para José Domingues, que ao entregar o dinheiro á irmã pulava de contente, com os sobrinhos todos em volta a agarrarem-se-lhe ás pernas. No forte das suas expansões, o cego, planeava uma vida d’abundancia: queria que se comprasse um porco para matar n’esse anno e mais um bácoro, para o seguinte.

—N’esta casa!—com seiscentos diabos!—hade tornar a haver salgadeira e fumeiro, como antigamente—affirmou.

Foi este o começo da vida de tocador de rebeca, que tão popular fez o cego de Guardiam, em toda a provincia do Minho.


O seu nome chegou mesmo á cidade do Porto. Quem fallasse no ceguinho designava logo José Domingues. A expressão persuasiva e bondosa do seu rosto tornava-o attrahente e querido. Ou tocando a chorosa rebeca, ou a cantar modas alegres, ou a gracejar com as raparigas, era sempre comedido e delicado; por forma a ser cubiçada a sua presença. De todos os cegos pedintes e trovadores, só elle gosava de verdadeira sympathia. Chamavam-no a muitas casas para o ouvir e, alem da paga, offereciam-lhe vinho e marmelada. Tambem elle não se parecia com nenhum d’esses tocadores de sanfona, lamorientos e porcos. Sempre limpinho:—vestido de briche; camisa lavada; botas de cano, toscas e fortes; a mão apoiada no hombro do companheiro; o extincto olhar voltado para o sol; assim percorria a provincia. Tinha o seu orgulho d’artista e de pequeno proprietario—nunca exaltou ou fingiu miserias e necessidades para provocar compaixão. Acceitava o que lhe dessem, fosse muito fosse pouco, agradecendo tudo com um sorriso. O que ambiccionava principalmente era que o escutassem com religião e amor. Se havia pelas janellas senhoras formosas, em quem presumisse melhor comprehensão da musica, o Miguel advertia-o; pois que n’essas circumstancias, o arco de José Domingues, tinha movimentos expressivos, alma enthusiasta, e coração de poeta.


Que ideia faria elle da formosura!...

Fora tão cedo, logo no começo da infancia, que perdera a vista!... As suas recordações não podiam deixar de ser pedaços de mundo dispersos, mal definidos, impressões fugitivas, como as da luz no pôr do sol. Comtudo na viva e larga imaginação, era certo que lhe esvoaçavam encantadoras imagens. A meiguice do sorriso, a bravura da expressão em certos momentos, fazem-no presumir. Quando acreditava que a sua alma, a sua rebeca, estava fazendo palpitar algum coração de mulher, o rosto bexigoso e feio, animava-se-lhe triumphantemente, como uma aurora. Parecia que tinha um resplendor, que respirava n’um circulo de luz propria.

É porque elle instinctivamente calculava que áquella expanção de sensibilidade que lhe vibrava nos proprios nervos, corresponderiam outros efluvios em nervos mais delicados. E a potente voz da arte embravecia-lhe a natureza cheia de candura, transformando o humilde cego, n’um ente dominador e altivo. A proximidade da mulher, a sua inflexão meiga e dolente, amansava d’um modo absoluto, qualquer aspereza d’este homem, que nunca lhe pudera calcular a pureza das linhas. Talvez isto fosse por conhecer a dolorosa historia de seu tio frade, que morto aos septenta annos, conservára até á ultima, o amor d’uma imagem extincta, evocando-a aos sons da mesma rebeca, que José Domingues tocava!

Esse tio egresso fôra o seu educador e o seu amigo. Homem de viver em si, conhecendo a musica e as lettras, ensinara-o a tocar, e transmittira-lhe a alma que possuia. A doce affabilidade de convivencia com esse bom velho, introduzira-lhe no coração sentimentos preciosos de humildade. Despresar os bens terrenos, para se confortar nos gozos interiores, fôra o que esse obscuro evangelista sempre lhe aconselhára, como meio de se oppor á desgraça e soffrer com valor as agruras do mundo. Por isso, elle acceitou em toda a conformidade, esta vida de tocador ambulante, por mais que ella fosse contraria, ao seu quietismo aldeão. Ainda assim tinha a impellil-o n’este vagabundear de terra em terra, o seu caracter impressionavel d’artista. O fanatismo com que todos o ouviam em Guardiam, em Refuinho e n’outros logares, por vezes lhe levantára as ambições e sonhára com publico mais numeroso e selecto. Porem nunca pensára em sahir da sua aldeia, e do adro da egreja, onde nos domingos, depois da missa conventual, até o abbade parava a ouvil-o. A donzella abandonada, o Marinheiro e o Cão fiel eram algumas das poucas cantigas que n’esse tempo conhecia. Exprimia-as com tal sentimento e candura, que era frequente perceber-se o chôro d’algum coração de rapariga enamorada e sensivel, que encontrava nas palavras da canção qualquer lembrança pungente. Então o José Domingues, que era galhofeiro dizia:

—Quem diabo está ahi a fungar, a rir-se da minha rabeca? Anda cá menina que elles não te entendem!...

E beijava-a repetidas vezes, balouçando-a contra o seio, acariciando-a como terna mãe acaricia um filho. Isto dava sempre bom effeito, alegrava os ouvintes, tornava-os communicativos e contentes. Para que todos bailassem, o cego, tocava-lhes a Canninha verde, a Maria Cachucha, o Afasta janota, arreda, e os rapazes acercavam-se das raparigas, formando logo a roda.

Se o Carvalhosa presenciava, nunca deixou de dizer com sorriso de consentimento e um dedo no ar:

—Moços! juizo, ouviram? Muito juizinho.


Agora que andava de terra em terra, a força de sympathia e attracção do José Domingues dilatou-se por muita gente. A sua pequena estatura, a magresa do corpo, a expressão terna, o olhar fixo e indefinido sempre voltado para a luz, a delicadesa natural e a suavidade das suas fallas, a inspiração muitas vezes caudalosa e atormentada da sua rabeca... tudo se fixou na imaginação collectiva, com traços vigorosos e duradoiros. Elle é que levava pelo mundo a sua fama. Todas as terras o estimavam e queriam a ponto de se fallar com antecedencia da vinda do cego de Guardiam, que tinha epocas determinadas e fixas, para os diversos pontos da provincia. Se tardava uma semana, isso era logo motivo de reparo. Preoccupavam-se com a ideia de que estivesse doente e nem queriam suppor que tivesse morrido. O seu apparecimento era considerado como o das aves cantoras na primavera, que preannunciam os bons dias e as flores. Por isso era recebido com verdadeira satisfação este portador de novas canções e, principalmente as raparigas do povo, saudavam-no com alegria expontanea e sincera. Parava a conversar com pessoas de diversas cathegorias, e sempre lhes narrava coisas novas em que os interessava pela simplicidade da sua palavra.

Estas jornadas, pelos ensombrados caminhos da provincia, começava-as no principio d’abril, quando os pampanos rebentam e parecem olhos de satyros a rir de todo o mundo. O inverno passava-o em casa, junto do lar crepitante, no meio dos sobrinhos, que lhe enchiam a alma de gosos paternaes. Havia magustos com estoiros de castanhas e o bom rascante, colhido nas videiras que lhe legara o tio frade. Havia a matança do porco e a consoada, que eram festas salutares e bulhentas. A neve embranquecia os montes sobranceiros, a rispida nortada esfuziava, ás lufadas, pelo valle. Era preciso cada qual acercar-se da fogueira para assim ludibriar a furia dos elementos, que zombeteavam cá fora. José Domingues com a sua modestia bem provida do necessario, dizia aos sobrinhos, quando tinham medo do trovão:

—Deixa lá, é a musica do pae do ceu.

—Gosto mais da rabeca do tio Zé. A musica do pae do ceu, não presta—observou um de oito annos.

—É zabumba—considerou philosophicamente outro de menos edade.


A primavera fazia-o sahir de Guardiam acompanhado do Miguel. Tinham um jumento para levar o vestuario e o presigo dos primeiros dias. Durante as chuvas, como os pintasilgos, tinha a voz amortecida. Só a fragancia do ar tepido e balsamico o fazia cantor. Sentia, como os que tem bons olhos, que a natureza se subtilisava para a festa grande da creação. No fermentar estrondoso das sementes que rebentam, estava a sua paisagem florida. As canções d’esta epoca, o Regadinho, o Pintalhão eram vivas, travessas e maliciosas. As do outono eram melancolicas, arrastadas e dolentes, sentindo-se no arco da sua rabeca certa preguiça, e o sentimento das vozes ternas, que vem de longe pelas corgas dos montes. Havia n’esses cantos, notas flutuantes que pareciam folhas amarellentas vagueando no ar, impellidas pelo rigido nordeste. Se na volta d’um caminho percebia alguma cantiga sahida de pinheiral rumuroso, parava escutando e, ás vezes, rebentavam-lhe lagrimas. Aproximava-se o tempo de recolher a casa, ás consolações da familia. Lá voltava a Guardiam com a imaginação cheia de lembranças alegres. No logar era festivamente celebrada a sua volta e, rindo e chorando, José Domingues abraçava com effusão e verdadeiro prazer todos que se lhe approximavam. Dançava, pulava, atirava o chapeu ao ar, como uma creança!

É que se sentia entre corações d’amigos.

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