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VIII

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Noite cerrada, quando os emissarios chegaram ao acampamento lusitano. Eram esperados com trépida anciedade. Traziam alçados os galhos de oliveira, denunciando de longe a concessão do armisticio e no seguinte dia o assentamento da paz. Extenuadas de fadiga e famintas, as hostes ouviram sem espanto as condições prévias impostas pelo Consul Vetilio. N'aquella angustia desesperada apagavam-se as energias moraes, e era-lhes mesmo indifferente que a Lusitania fôsse livre ou escrava. E considerando a situação, trezentos lusitanos para trez mil romanos patenteavam uma desproporcional desegualdade, que seria rematada loucura defrontarem-se as forças.

Quando os emissarios accentuaram as palavras de Vetilio – submissão perpetua e incondicional, com garantia de refens para a effectividade do pacto – ouviu-se um rugido, como de uma féra que se vê subitamente preza. Esse rugido não articulado, que nem mesmo era imprecação, infundiu uma emoção terrifica e desconhecida. Olharam todos em volta da gente que se atropellava junto do Conselho armado, e viram um homem bastante novo, de menos de trinta annos, de estatura mediana, delgado, mas robusto e de aspecto decidido. Fez-se um silencio inesperado, involuntario, por que aquelle impeto de colera fizera suspender qualquer resolução repentina e fatalmente covarde. O vulto pareceu crescer com a grandeza da commoção, e aproveitando o momento unico, fallou:

– Para ser escravo de Roma não são precisos tratados, nem refens. Tudo isso é um ludibrio. Todos nós sabemos como a grande e generosa Roma cumpre os seus tratados. Seremos nós tão estupidos e indignos, que ainda depois da inolvidavel traição de Servio Galba, e da sua impunidade, confiemos n'uma potencia, que, não fallando já das riquezas, nos rouba a nossa liberdade? E esse Consul, que está em campo aberto, com as suas Legiões contra nós, que outro intuito tem senão a oppressão da desmembrada Lusitania, e o animo exclusivo da rapinagem? Bem pouco tempo ha decorrido sobre o estupendo morticinio, e já parece que ninguem aqui se lembra do juramento feito sobre os despojos dos clamorosos trucidados. O verbo do juramento foi —Vencer ou morrer!– Eu ainda não perdi a esperança de vencermos…

Um rumor irrepressivel cortou a phrase do moço, que suscitára latentes energias.

Elle continuou em um tom firme e de crença communicativa:

– Que loucura o confiar na fé dos Romanos! A tregua que nos concedem até ámanhã é um torpe embuste; o Consul pançudo finge que nos outorga uma paz generosa, simula a assignatura de um pacto para conseguir por esse meio capcioso a entrega das armas pela nossa parte, e em seguida, como é de uso, extermina-nos em massa, porque não quererá ser menos do que Servio Sulpicio Galba. Tal é a sorte miseranda que vos espera a todos, se…

Diante d'esta suspensão intencional e suggestiva, muitas vozes soltas d'entre os grupos o interromperam:

– Que fazer? que fazer?

– Resistir! – exclamou promptamente o moço, confiado e sorridente: Nada está perdido. Poderemos salvar-nos, e até mesmo…

– Falla! falla! Dize o que temos a fazer.

– Obedecer-me.

Ao ouvirem esta phrase incisiva e simples, mas com uma vibração sobrehumana, que denunciava uma absoluta confiança em si, entreolharam-se todos abalados, hesitantes, como que interrogando, quem era e d'onde viera aquelle homem audacioso. Elle proseguiu:

– Comprehendo a vossa desconfiança; não me conheceis de figura, nem mesmo esta estatura meã e magra se vos impõe, como o faria qualquer colosso. Mas, quem aqui se recordar do nome de Ouriato, d'aquelle pastor que conseguiu escapar da carnificina de Galba; d'aquelle que sabe o segredo de dar morte instantanea aos elephantes africanos; d'aquelle que andou de cidade em cidade proclamando a insurreição, a guerra santa e a vindicta contra o invasor estrangeiro, contra a occupação dos Romanos, que nos escravisam, reconhecerá que é um homem decidido que vos offerece a salvação e talvez a victoria.

– Ouriato! Ouriato! – proromperam de todos os lados vozes de acclamação.

Este nome proferido n'aquelle lance extremo de um exercito prestes a entregar-se, reaccendeu coragem nos animos abatidos; todos esperaram que Ouriato completasse o seu pensamento, dando-lhe em um tacito assentimento a certeza da inteira obediencia. O pastor fallou:

– Desde os mais tenros annos, eu trabalho na deambulação dos gados, que vêm das regiões calmosas para a frescura dos dois Herminios, e d'aqui dirigindo-os para os seus bostaes na epoca das invernias. N'este serviço, em que se me tem confiado mais de vinte mil cabeças de gado, e por que soube sempre defendel-o dos perigos das barrocaes, dos ursos e da pilhagem dos romanos, cheguei a ser Maioral, ou chefe da Mésta! Bem comprehendereis que, embora novo, eu devo conhecer como as palmas de minhas mãos todos os territorios da nossa Lusitania, os seus montes, os seus valles, covões, algares, cavernas profundas e passagens dos váos das ribeiras e cachões dos caudalosos rios. É esse conhecimento o que n'este momento me dá um poder unico e inesperado.

– Obedeçâmos a Ouriato! gritou a multidão entrevendo o plano de uma retirada habil. – Obedeçamos-lhe cegamente!

Ouriato, fitando os principaes chefes dos terços, que se tinham approximado, expoz com simplicidade:

– Aqui em frente de nós, passado aquelle outeiro, estende-se uma planura vasta, revestida de uma relva fina e variegada como um tapete, que dá vontade de retoiçar sobre ella! Ai de quem deixar ahi entrar os rebanhos! Essa planura encantadora chama-se o Barrocal fundeiro. Todas as suas ravinas fôram niveladas pelas neves do inverno, e sobre essa face lisa aos primeiros adoçamentos da temperatura, desabrochou com uma pasmosa vivacidade o nardo ou gervum, formando um espêsso e cerrado tapete em que as raizes se entrelaçam rijamente! É um gosto deslisar sobre esse vistoso relvado, que exhala um perfume estonteante; mas as neves vão-se derretendo por debaixo d'elle, e infiltrando-se pela terra mole e lodacenta; o tapete de verdura mantem-se então encobrindo todo o Barrocal, conservando uma apparente planura! Gado que alli pise rompe com o seu pezo o tecido forte das raizes do gervum, e abysma-se pelas terras moles, d'onde não é possivel arrancal-o. Pois bem! é para ahi que eu conseguirei attrahir o exercito de Vetilio; hade ficar como o carrapato na lama.

O terror converteu-se em alegria, irrompendo uma gargalhada estrepitante. Então levantaram Ouriato sobre os hombros, alguns dos companheiros que com elle escaparam da carnificina de Galba; e á luz das fogueiras do arraial, elle fitou as catervas que contemplavam o pastor destemido. Brandindo no ár a foice roçadoira, que sempre o acompanhava, Ouriato proferiu:

– Eu juro, mais do que pela minha vida, pela liberdade d'esta nossa Lusitania, que salvarei o exercito, com tanto que me obedeçam, na execução do plano. D'isso depende o exito completo.

Cavalleiros, peões, fundibularios, todos sem reserva ergueram os braços dextros para o ár, como symbolo sacramental, bradando unisonos:

– Juramos obedecer-te! até á morte.

– Ouriato é o nosso chefe.

– Ouriato manda sobre nós todos; ninguem tem mais poder do que elle.

E collocando Ouriato sobre um grande escudo feito de coiro crú, quatro valentes hastarios erguendo-o bem alto, levaram-o em redor do acampamento em uma marcha solemne, parando de vez em quando para gritarem:

– Ouriato é o nosso chefe!

– Ouriato manda sobre nós todos.

– Obedeçâmos-lhe até á morte.

Á maneira que o nome de Ouriato ia resoando na calada da noite, tambem na reminiscencia da soldadesca se acordava a vaga relação com o nome glorioso de um valente lusitano, que em tempos não remotos acompanhando Annibal, fôra combater os romanos até á propria Italia. Esse ainda lembrado VIRIATHO, que no seu odio contra Roma transpozera os Pyreneos e os Alpes, dizem que morrera na batalha de Cannas; mas o seu odio não morreu, é redivivo. E por ventura não será Viriatho o que agora reapparece na figura do Maioral da Mésta, do valente Ouriato? Como elle, é um salvador que resurge, um vingador da liberdade da Lusitania?

Este prestigio espalhou-se entre a soldadesca, influindo por modo absoluto na confiança do commando de Ouriato. E desde aquelle momento os dois nomes identificaram-se, como synthetisando a missão do guerreiro que votava a sua vida á defeza da Lusitania livre de todo o jugo estrangeiro. Emquanto levavam o novo general em triumpho, e as acclamações repercutiam por todo o acampamento lusitano, os chefes depostos conformaram-se pela necessidade da situação desesperada a tudo cumprirem. Acercaram-se do novo chefe, para receberem as particularidades do plano da cilada sob a fórma apparente de retirada urgentissima, logo ao primeiro alvor. Todas estas disposições fôram organisadas aproveitando o costume dos generaes romanos de suspenderem a marcha durante a noite.

As cohortes lusas, emquanto aguardavam o momento de se moverem, cantavam coreadamente:

Acclamação de Viriatho

Ha setenta e dois annos

Que falta aos Lusitanos

Um braço que os defenda

Da escravidão horrenda!


Rumor incerto espalha,

Que morreu na batalha

Que se travou em Cannas

Contra as Legiões romanas.


É rumor não exacto;

Não morreu Viriatho!

Porque o odio não morre,

E esse odio nos soccorre.


Rejuvenesceu hoje!

Viriatho nos arroje

Á implacavel guerra

Por esta livre Terra.


Salvador desejado,

Não debalde esperado,

Vencerão seus tyrannos

Por ti os Lusitanos.


Viriatho: Narrativa epo-historica

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