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IV
Оглавление*Asneiras da erudição*
Por fins de janeiro, chegou Benevides de Barbuda a Lisboa, e alugou casa no bairro de Alfama, por lhe terem dito que, n'aquella porção da Lisboa antiga, a cada esquina havia um monumento á espera de archeologo competente.
Ao cabo de tres dias, Calisto mudou-se para rua mais limpa, suppondo que os lamaçaes de Alfama haviam tragado os monumentos, lamaçaes em que elle desastradamente escorregára, e d'onde saíra mal-limpo, e assoviado por marujos e collarejas, seus visinhos mais chegados. Mau agouro! A primeira chimera de Calisto, seu tanto ou quanto scientifica, atascara-se na lama d'aquella parte de Lisboa, que devia de ser a inclita Ulissea de Luiz de Camões!
O deputado, sem embargo de ir habitar o quarto andar de uma casa lavada de ares e muito desafogada na rua da Procissão, quiz-lhe parecer que a atmosphera da capital não cheirava bem.
Abriu um dos seus livros velhos, intitulado Do sitio de Lisboa etc. por Luiz Mendes de Vasconcellos, e leu:
«…E assim, de todo o territorio de Lisboa, parece que da terra, fontes e rios, respiram suavissimos vapores, amigos da natureza humana; porque é coisa certissima que a benignidade dos ares d'este sitio, não só é por natureza deleitosa, pelo seu temperamento, mas de grandissimo proveito para algumas doenças, etc…»
Calisto Eloy fechou o livro, e disse de si para comsigo, tomando uma vez de rapé:
—O meu classico não podia mentir. Este mau cheiro é desconcerto da minha membrana pituitaria.
E alcatroou segunda vez, as ventas com uma pitada desinfectante.
Pareceu-lhe tambem pesada e salôbra a agua.
Recorreu ao seu classico Luiz Mendes, no artigo agua, e leu que o chafariz de El-Rei dava uma lympha gostosa e de suave quentura, a qual limpava a garganta de toda a roquidão, e afinava as vozes, e assim, dizia o classico, não errará quem disser que ella é causa das boas vozes que em Lisboa docemente ouvimos cantar; e tambem dos bons carões que conservam as mulheres.
Em quanto aos bons carões das mulheres, Calisto, que, de um relancear honesto de olhos, observára os rostos pallidos e esgrouviados de algumas senhoras de Lisboa, não podendo arguir de fallacia o dizer de Luiz Mendes, attribuiu á degeneração dos costumes e raças o descarnado e amarellido das caras; no tocante á suavidade das vozes, ficou indeciso, não querendo desmentir o seiscentista, nem formar conceito por uns grunhidos de cantaróla barbara com que os vendilhões pregoavam os comestiveis.
Todavia, como a agua do chafariz de El-Rei aclarava o orgão vocal, e Calisto, á força de berrar ao pé da açuda e azenhas, estava um tanto rouco, mandou buscar um barril d'aquella salutifera agua, que o Mendes de Vasconcellos compára á das fontes camenas. Bebeu á tripa fôrra o deputado, e teve uma dôr de barriga precursora de febres quartãs. Valeu-se ainda do seu classico, e por conta d'elle mandou buscar á Pimenteira outro barril de agua, a qual, diz o citado author, se busca para os doentes de febres.
O velho criado e enfermeiro, quando viu o seu amo encharcado e cada vez peior, foi de moto proprio em cata do cirurgião, o qual deu o morgado rijo e fero em quinze dias com algumas beberagens quinadas.
Desde então, Calisto Eloy não bebeu senão vinho, e melhorou da garganta e do espirito, um tanto quebrantado, recitando, a cada garrafa que abria, o proverbio da sagrada escriptura:—Vinum bonum laetifical cor hominis.[4]
Não obstante, o descredito do seu classico deveras lhe doeu, mormente pelo tom de mofa com que o cirurgião enxovalhou as cãs do honrado e lusitanissimo escriptor Luiz Mendes.
Apenas convalescido, Calisto abria outro livro da mesma edade, escripto por identico motivo, para averiguar se o author do Sitio de Lisboa claudicára como patranheiro em materia de chafarizes.
O bacamarte consultado era a Fundação, antiguidades e grandezas da muito insigne cidade de Lisboa, etc., escripto pelo capitão Luiz Marinho de Azevedo.
—Cá está!—exclamou Barbuda em soliloquio—cá está explicada a minha dôr de barriga! era destemperança do figado.
O deputado acabava de ler o seguinte periodo de Luiz Marinho:
«Encareceu Plinio muito a agua, que vinha a Roma da fonte Marcia, e Vitruvio a das fontes Camenas, porque nasciam quentes e eram saborosas no gosto, sendo por esta causa muito sadias e proveitosas para conservar saude. E posto que (sic) Luiz Mendes de Vasconcellos queira que por estas propriedades tenha a agua do charariz d'El-Rei as mesmas qualidades; a experiencia mostra que, sendo suave no gosto, o não é nos effeitos, porque lhe attribuem os medicos a destemperança do figado, que muitas pessoas padecem, e de que procedem varias enfermidades.»
—Fie-se lá a gente!—monologou o deputado.—É preciso cuidado com os classicos a respeito da agua de Lisboa.
E, proseguindo na leitura, encontrou confirmada a maravilha de se afinarem as vozes com o uso da agua do chafariz d'El-Rei, por estes termos:
«É causa das boas vozes dos musicos naturaes de Lisboa, ou que n'ella moraram, que tanto lustram em sua real capella, e na da corte de Madrid[5], conventos e egrejas cathedraes d'este reino e do de Castella: excellencia que tambem se acha nas mulheres, cuja feminina voz enleva os sentidos, como se experimenta ouvindo cantar as religiosas dos mosteiros d'esta cidade, em que mais parece se ouvem córos de anjos que vozes humanas.»
Á primeira vez que saiu, andou Calisto em demanda dos conventos de freiras, e das festividades de cada um. Disseram-lhe, em face de um repertorio, que a mais proxima festa era, no domingo immediato, em Santa Joanna. Foi Calisto á festa para ouvir cantar as freiras. Não lhe pareceu cantoria o que ouviu: eram tres narizes roufinhando destoantes. Calisto saiu do templo, foi ao palratorio, chamou a madre-porteira, e disse-lhe, com a sua candura de bom homem, que recommendasse ás senhoras cantoras a agua do chafariz d'El-Rei. A madre ficou passada do disparate, e voltou-lhe as costas.
Como quer que o morgado da Agra de Freimas não fosse homem que estudasse as materias perfunctoriamente, quiz esquadrinhar a respeito de aguas toda a substancia d'este importante elemento.
Decepções sobre decepções!
Quando morára na Alfama, observára elle que, n'aquelle bairro, as mulheres eram sardentas, rôxo-terra, e crespas de pelle. Pois o classico Marinho saía-lhe com este desmentido aos seus proprios olhos:
«Tem mais outra propriedade occulta a agua do chafariz (d'El-Rei) que é conservar os rostos das mulheres, que com ella se lavam, em uma alvura engraçada, e côr natural tão encarnada, que não necessita de unturas, nem confecções, com que ellas se envelhecem antes de tempo: o que se vê claramente na vantagem que as de Alfama levam ás dos outros bairros no carão, rosto mimoso, e côr que logo se conhece por natural; e, se bastára isto, por desengano ás que as usam postiças, não fôra pequeno o fructo, que se tirára de ler este paragrapho, havendo quem lh'o recitasse.»
Calisto Eloy certamente não iria recitar o paragrapho a nenhuma senhora pallida e magra, depois da incivil resposta, que lhe deu a porteira de Santa Joanna, e mais ainda com a desconfiança em que o puzeram os bons authores da sua predilecção.
Parece, porém, que elle andava aporfiado em afogar o seu recto juizo nas aguas de Lisboa. Lêra o deputado que tambem o chafariz dos cavallos da rua Nova tinha prodigiosas virtudes em cura de molestias d'olhos. Procurou a rua Nova, que o terramoto de 1755 sotterrára; procurou o chafariz, que segundo elle, devia de estar na rua dos Capellistas ou Algibebes successoras d'aquella rua. Ninguem lhe dava conta do chafariz dos cavallos; e alguns logistas interrogados suppuzeram que o provinciano não podia beber em fonte que não tivesse aquella applicação.[6]
O erudito respondia aos chacoteadores.
—Pois saibam que se perdeu um mirifico chafariz! Resam os meus livros que as saluberrimas aguas d'esta fonte perdida tinham a propriedade occulta de engordar as cavalgaduras que bebiam d'ella; e acrescenta Marinho d'Azevedo, textualissimas palavras: e quando ella faz tão conhecidos effeitos nos animaes, os fizera nos corpos humanos, se a beberam em sua fonte.
Um bacharel, que ouvira as lastimas de Calisto, disse a um visinho a meia-voz:
—Este homem parece que tem uma cavalgadura magra no corpo!
Com estas zombarias é que em Portugal os sabios são premiados… Se Calisto fosse um parvo, o governo dava-lhe um subsidio até elle achar o chafariz dos cavallos.