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*Estreia parlamentar de Calisto*

Antes de apresentar-se na sala das sessões, Calisto Eloy de Barbuda leu o Regimento interno da camara dos deputados, juntamente com um collega transmontano, o abbade de Estevães, sujeito de annos, e doutrina monarchico-absolutos.

O morgado de Agra embicou logo na fórma do juramento, e disse que não jurava sem aspar as palavras que o obrigavam a ser inviolavelmente fiel á carta constitucional. O abbade quiz amaciar-lhe a rigidez de espiritos, absolvendo-o do perjurio, que não era serio, porque já de si o juramento era irrisorio e mera brincadeira de nenhum peso na balança da justiça divina.

E allegava o clerigo esclarecido que os representantes da nação, com quanto jurassem fidelidade á religião-catholica-apostolica-romana, eram aliás atheus; jurando fidelidade ao rei, injuriavam-n'o nas gazetas; jurando fidelidade á nação, avexavam-n'a de tributos, e alguns a queriam fundir na Hespanha. Comedia e comedoria! exclamava o abbade. Se os deixarmos a elles jurar e mentir á sua vontade, a monarchia portugueza d'aqui a pouco não terá mais realidade no mappamundi que a ilha Berataria do Miguel Cervantes, ou as ilhas beatas do poeta Alceu!

A respeito das ilhas beatas do poeta Alceu, saiu-se Calisto de Barbuda com uma despropositada torrente de citações, em que a paciencia do padre esteve a pique. Era perigoso dar-lhe azo ás ejecções da sciencia velha, que não havia abafar-lhe as valvulas ejaculatorias.

O sabio, lá na sua terra, nunca tivera auditorio digno; escutava-se a si proprio; admirava-se e applaudia-se com perdoavel, senão legitima vaidade; faltava-lhe, porém, alguma coisa, a qual coisa era o abbade de Estevães.

Este clerigo, bem que tivesse exercido as funcções desembargatorias na relação ecclesiastica de Braga, era menos lettrado que o antiquario de Caçarelhos, mas um tanto mais illustrado em critica da historia. Por delicadesa, fingia engulir as araras que o morgado lhe ministrava guizadas pelo monge de Alcobaça Bernardo de Brito, por Fernão Mendes e Miguel Leitão d'Andrade, e centenares de outros escrevedores de polpa, que mentiram «mais do que permitte a força humana.»

Convencido da irresponsabilidade seria do juramento parlamentar, foi Calisto Eloy de Silos empossar-se da sua cadeira na representação nacional. Porém, proferido o juramento, e antes de sentar-se, não teve mão de si, e disse:

—Sr. presidente!

O abbade de Estevães ainda ciciou um cio, como quem lembrava ao collega que o Regimento lhe tolhia o dom da palavra assim abrupta n'aquelle acto; mas o presidente, como esperasse alguma extraordinaria reflexão, deixou violar o artigo 30.^o do titulo e ouviu-o.

Continuou Calisto:

—Sr. presidente! Nos primordios da humanidade, a boa fé dispensava os juramentos: hoje em dia, para tudo se faz mister jurar, porque a boa fé desappareceu velut umbra da face da terra. Se bem me recordo, os casos de juramentos mais antigos lêem-se nas sagradas escripturas. Abrahão jurou ao rei de Sodoma e ao rei Abimelech; Elieser a Abrahão; e Jacob a Labão…

O presidente, como o riso andasse já contagioso na sala e galerias, observou:

—O sr. deputado está fóra das prescripções do regimento. Peço licença para o convidar a sentar-se do lado que lhe convier.

—Eu concluo em duas palavras, tornou Calisto, conformando-me com o regimento, e mais ainda com o jurisconsulto Struvius, o qual no seu jurisprudencia civilis syntagma, diz que não deve exigir-se o juramento quando póde temer-se o perjurio. Preceito de mui remontada moralidade; sr. presidente! Preceito, cujo despreso, é a causa efficiente das apostasias que deshonram, dos sacrilegios que condemnam a alma, e estampam na testa dos precitos lemma de opprobrio indelevel. Disse.

E foi sentar-se, flauteando cromathicamente uma pitada, á beira do seu amigo abbade de Estevães.

A maior parte dos legisladores estava como indecisa entre rir-se ou espantar-se do aprumo com que o transmontano, atando facilmente as phrases, atirava á cara dos legisladores um murro indirecto. Tres brados lhe haviam victoriado o cabeçalho do discurso: eram expansões de deputados legitimistas, que entre si se ficaram victoriando de terem um homem bastante audaz, se necessario fosse, para fallar ao imperante como João Mendes Cicioso fallara a El-Rei D. Manuel.

—Fallou á portugueza, sr. morgado; mas extemporaneamente—murmurou-lhe o abbade de Estevães.

—A verdade é de todas as horas, abbade—redarguiu Calisto—mal de nós se havemos de esperar que ella caia a talho de fouce!… Deixem-me ir assim, que os meus constituintes assim me querem, Catão e Cicero, Hortensio e Demosthenes não fallavam pelo regimento. O conselheiro que disse a Affonso IV «senão procuremos outro rei» não pediu licença a presidente algum, nem viu no regimento se era hora de lh'o dizer. Eu li de tento e vagar o regimento, amigo abbade; e a mim me quiz parecer que tudo aquillo é um modo, o mais cerimonioso, de fazer callar aquelles cujos dizeres desagradam á presidencia, por via de regra, mancommunada com o governo.

Prudentia in omnibus, diz o sabio—retorquiu o abbade.[7]

O morgado accudiu logo:

Estote prudentes, sicut serpentes et simplices sicut columbae, disse Jesus, o sabio dos sabios.[8]

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