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VI
Оглавление*Virtuosas parvoiçadas*
A estreia parlamentar de Calisto de Barbuda fez hyperbolico estrondo nos salões da aristocracia, legitimista, que abriu suas portas ao esperançoso Berryer de Portugal.
Algum tempo se andou furtando o morgado ás solicitadas apresentações. Impediam-n'o o natural acanhamento de provinciano, e o affecto entranhado aos seus classicos, que lhe eram o deleite das horas feriadas do dia, e dos serões do inverno.
Como á força, fôra elle uma noite, ao theatro lyrico, em companhia do abbade de Estevães, que amava a musica pelo muito amor que tinha á guitarra, delicias da sua mocidade, e consoladora da velhice, já saudosa do tempo em que o coração lhe gemia nos bordões do instrumento apaixonado.
Calisto inteirou-se do enredo da opera, e assistiu em convulsões ao espectaculo, que era a Lucrecia Borgia. Saiu da platéa frio de horror e protestou, em presença de Deus e do abbade, nunca mais contribuir com oito tostões para a exposição das chagas asquerosas da humanidade. Rompeu-lhe então do imo peito esta exclamação sentida: Amici, noctem perdidi! Melhor me fôra estar lendo o meu Euripides e Seneca, o tragico! Medéa não mata os filhos cantando, como a scelerada Lucrecia! As devassidões postas em musica, dão bem a entender que geração esta é! Brinca-se com o crime, abafando-se os gemidos da humanidade com o stridor das trompas e dos zabumbas. É um tripudio isto, amigo abbade! Quem sae do seio da natureza rude, e de repente se acha à lavareda d'estes focos das grandes cidades, é que atina com a providencial phylosophia d'estas tramoias de theatros!
Assanhou o abbade de Estevães o azedume do fidalgo, dizendo-lhe que o estado subsidiava o theatro de S. Carlos com vinte contos de réis annuaes. Calisto fez pé atraz, e exclamou:
—Obstupui!… O abbade zomba!… O estado!… o meu collega disse o estado!
—Sim o thesouro… confirmou o clerigo.
—A res publica? o dinheiro da nação?
—Certamente: pois de quem hade ser o dinheiro, senão da nação?
—Pois eu e os meus constituintes estamos pagando para estas cantilenas do theatro de Lisboa!
—Vinte contos de réis.
Calisto Eloy correu a mão pela fronte humedecida de suor civico, e sentou-se nas escadas da egreja de S. Roque, por que ao espanto, colera e dôr d'alma seguiram-se-lhes caimbras nas pernas. Minutos depois, ergueu-se taciturno, despediu-se do abbade, e foi para casa.
Os alvores da primeira manhã acharam-no passeando e declamando na estreita saleta do seu aposento. Via-se-lhe no rosto a pallidez dos Fabricios.
Ás onze horas entrou na camara. Dir-se-hia que entrava Cicero a delatar a conjuração de Catilina. Deu nos olhos dos seus tres correligionarios que entre si disseram:
—Calisto vae fazer alguma interpellação de grande alcance!
Acabava de sentar-se quando um deputado do Porto se ergueu, e disse:
—Sr. presidente. Muito a meu pezar, e talvez da camara, volto de novo a expender as razões já tres vezes inutilmente expendidas sobre o dever, e justiça com que o Porto reclama um subsidio para o seu theatro lyrico. Sr. presidente…
—Peço a palavra! bradou Calisto Eloy, erguendo-se inteiriço e fulminante—Peço a palavra!
O representante do Porto expendeu a quarta edição peorada das suas idéas, sobre o dever e justiça, com que o theatro de S. João reclamava subsidio, e sentou-se.
—Tem a palavra o sr. Calisto Eloy de Silos e Benevides de Barbuda, disse o presidente.
O morgado da Agra escorvou-se de rapé, trombeteou a pitada, e orou d'este theor:
—Sr. presidente. Em Grecia e Roma as festas annuaes eram solemnisadas com espectaculos. Os cidadãos timbravam em se dispenderem aporfiadamente para o maior realce das representações theatraes. Na Grecia, o archonte eponymo, a cargo de quem o estado delegava as despezas das representações, esmava o dispendio de cada uma em dois talentos, 3:250$000 réis, pouco mais ou menos da nossa moeda. Este dispendio faziam-no espontaneamente os ricos; e se era o thesouro nacional, que adiantava as despezas, a concorrencia convidava pelo preço diminutissimo do theorikon ou entrada, que correspondia ao vintem da nossa moeda. E de Pericles em diante, sr. presidente, tomou o estado á sua conta o pagamento das entradas dos pobres. Entre os romanos, eram os poderosos, como Lepido e Pompeu, e, ao diante, os imperadores, que sustentavam do seu bolsinho as representações theatraes. Os imperios opulentos, sr. presidente, os imperios, que digeriam a substancia do universo, os imperios que edificavam theatros para trinta mil espectadores, não impunham aos povos a obrigação de se privarem do necessario para abrilhantarem Athenas ou Roma, com luxuosas superfluidades. Os serranos das provindas do Lacio não eram constrangidos a pagarem as delicias dos patricios romanos. Estes, sr. presidente, quando queriam divertir-se em espectaculos theatraes, pagavam-os, e regalavam a gente pobre em vez de a obrigarem a entrar no erario com o estipendio dos actores. (Sussurro e alguns «apoiados» provocados pelo sussurro.)
Sr. presidente—continuou o orador, tomando rapé com a soffreguidão de quem teme que o raio inspirativo se arrefente—sr. presidente! Eu tenho o desgosto de ter nascido n'um paiz, em que o mestre-escola ganha cento e noventa réis por dia, e as cantarinas, segundo me dizem, ganham trinta e quarenta moedas por noite. Eu sou de um paiz, sr. presidente, em que se pede ao povo o subsidio litterario para pagar com elle as tramoias da Lucrecia Borgia. Eu sou de um paiz, pobrissimo, em que a veia da nação exangue soffre cada anno a sangria de algumas duzias de contos para sustentar comediantes, farcistas, funambulos e dansarinas impudicas! Sr. presidente, v. ex.^a sorriu-se, vejo que a camara está sorrindo, e eu ouso dizer a v. ex.^a e aos meus collegas, como o poeta mantuano: sunt lacrimae rerum. Aqui é o ponto de se carpirem por seus filhos aquelles, que se cuidam muito avantajados em civilisação a seus avós. Aqui é o ponto de nos alembrarmos dos israelitas livres, que sorriam em Jerusalem, e choravam depois escravos ás margens do rio estranho. Depois será o declamarmos com o epico:
Em Babylonia, sobre os rios, quando
De ti, Sião sagrada, nos lembramos,
Alli com gran saudade nos sentamos
O bem perdido, miseros, chorando.
Os instrumentos musicos deixando
Peço á camara que repare nos tres versos, que completam a quadra e a prophecia:
Os instrumentos musicos deixando
Nos estranhos salgueiros penduramos,
Hic, sr. presidente:
Quando aos cantares que já em ti cantamos
Nos estavam imigos incitando.
Nos cantares, sr. presidente, é que bate o ponto do meu discurso: (Hilaridade: susurro nas galerias: o presidente tange a campainha).
O orador:—Sr. presidente! que me não queiram persuadir de que estou em casa de orates! Que é isto? Que bailar d'ebrios é este em volta de Portugal moribundo? Como podem rir-se os enviados do povo, quando um enviado do povo exclama: Não tireis á nação o que ella vos não póde dar, governos! Não espremais o ubre da vacca faminta, que ordenhareis sangue! Não queiraes converter os clamores do povo em cantorias de theatro! Não vades pedir ao lavrador quebrado de trabalho os ratinhados cobres das suas economias, para regalos da capital, em quanto elle se priva do aprezigo de uma sardinha, por que não tem uma pogeia com que compral-a.
E vinte contos e trinta contos de subsidios que moralidade fomentam, que lampadas accendem nos altares da civilisação? Eu peço á camara que leia attentamente o discurso theologico do padre Ignacio de Camargo, lente no real collegio de Salamanca, ácerca dos theatros. Não menos fervorosamente peço a v. ex.^a e ás camaras que leiam as mirificas paginas do nosso oratoriano Manuel Bernardes, sobre representações theatraes. O que são comedias? Responda por mim o eminente moralista, e mais que todos vernaculissimo escriptor: «Os assumptos das comedias pela maior parte são impuros cheios de lascivos amores, de galanteios profanos, de papeis amorosos, de rondas, passeios, musicas, dadivas, visitas, solicitações torpes, finezas loucas, empenhos desatinados, chimeras, emprezas impossiveis, que as solicita ordinariamente um criado, uma mulher terceira, uma chave, um jardim, uma porta falsa, um descuido do pae, ou do irmão, ou do marido da dama, e tudo isto costuma parar em uma communicação deshonesta, em um incesto, ou em um adulterio, em que ha muitos lances torpes, louvores lisongeiros da formosura, expressões affectadas de amor, promessas de constancia, competencias de affectos, temores, ciumes, suspeitas, sustos, desesperações, e em summa, uma gentilica idolatria, ajustada pontualmente ás infames leis de Venus e Cupido, e aos torpes documentos de Ovidio no livro de Arte amandi.»
Vozes da galeria: Muito bem! Bravo! (Espirram as risadas de varios sujeitos. Gargalhada compacta).
O orador: Sr. presidente! Eu irei contar aos povos, que me aqui mandaram, as gargalhadas com que fui recebido no seio da representação nacional, por que ousei dizer que um paiz carregado de dividas não instaura divertimentos attentatorios dos bons costumes com o dinheiro da nação. Irei dizer aos meus constituintes que se desfaçam das arrecadas e cordões de suas mulheres e filhas, para enfeitarem as gargantas despeitoradas das Lucrecias Borgias que custam quarenta libras por noite!
Sr. presidente, nossos avós, os coevos d'el-rei D. Manuel e D. João III, tiveram theatros. Era no tempo em que as frotas da India rompiam Téjo acima carregadas de oiro. O Plauto portuguez deliciava os paços dos reis, e os pateos e tablados do povo. Quando se abriu o erario para locupletar o alto engenho de Gil Vicente? Quando foi necessario ir mundo fóra em cata de gritadores que vendem tão caro o ar dos pulmões vibrado no mechanismo da garganta?
Uma voz: Fez-se a civilisação depois.
O orador: E a pobreza tambem. A civilisação que canta e dança, em quanto tres partes do paiz choram. A civilisação dos civilisados que dizem: Coronemus nos rosis antequam marcessant[9]. A civilisação do perdulario irrisorio, que traja de luzente lemiste no exterior, e aconchêga da pelle uma camisa surrada e fetida. Magnifica civilisação! Não sei de selvagens que nol-a possam invejar, e queiram cambiar comnosco a sua selvatiqueza!
Sr. presidente gosem nas boas horas os sátrapas da capital os deleites da sua civilisação theatral. Dispendam-se, arruinem-se, doudejem com essas ficções e visualidades, que relembram factos de alto escandalo que não deviam ser vistos á luz da civilisação, que o meu illustre collega preconisa. Se gostam, não serei eu, homem de outros tempos e gostos, quem lhes impugne a racionalidade de seus passatempos. O que eu requeiro, em nome da justiça e da pobreza do paiz, é que se não sizem os povos provinciaes para manutenção dos divertimentos de Lisboa. O que eu contesto é o direito de me fazerem pagar a mim e aos meus visinhos as notas garganteadas dos ganha-pães, que não tem na sua terra officio honesto em que vivam com seriedade e utilidade commum. O que eu sobretudo lamento, sr. presidente, é o silencio desapprovador dos meus collegas. Sou eu só: serei eu só o vencido. Não importa! Victis honos![10] As pequenas coisas tratam-n'as os pequenos: Parvum parva decent. Eu abro mão das glorias promettidas ao nobre collega, que, pouco ha, pediu subsidio para o theatro do Porto. Dêem-lh'o. Desenrolem a onda aurifera do Pactolo do nosso thesouro até Braga. Quem pede subsidio para o theatro bracharense? A equidade reclama-o. O meu circulo tambem quer um theatro. Theatro e subsidio para todo o logarejo onde morar um contribuinte. Estamos em vida ficticia como paiz independente. Somos como o sapateiro, que se veste de principe no entrudo. Pois bem! Comedia geral! Seja Portugal um theatro desde Monção ao cabo da Roca! Peço uma companhia italiana para a minha terra. Os meus constituintes querem provar o sabor das delicias que tem estipendiadas em Lisboa. Se eu não posso, sr. presidente, levar-lhes a boa nova de que vão ter estradas que os liguem á sua nação, seja-me permittida a gloria de lhes levar a Lucrecia Borgia, a incestuosa e envenenadora Lucrecia, que os ha de edificar e converter á civilisação. Disse.
Algumas vozes por entre frouxos de riso: Muito bem! Bravissimo!
Eram as ironias dos sublimes engenhos, que, ás vezes, não sabem como hão de havel-as com espiritos selvaticos do desplante montezinho de Calisto de Barbuda.