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V
ОглавлениеAffonso de Teive estudava, ha hoje vinte annos, em Braga, os elementos preparatorios para o curso universitario, quando viu Theodora, conhecida pela morgadinha da Fervença. Era ella então menina de quatorze annos. Affonso tinha dezesete.
As mães d'estes dous meninos, entre-vistos e amados com o innocente attractivo do beijo aerio na flôr a desatar-se e a enrubecer na tige, tinham sido condiscipulas na educação d'um convento. Apartaram-se para serem esposas, com promessa de se continuarem a amar em seus filhos, se a sorte lh'os désse com vocação para se unirem. Votos de virgens ainda, feitos com as faces purpureadas do calor do coração, que as levava contentes aos seus novos destinos.
A mãe de Theodora igualou em fidelidade da palavra promettida a mãe de Affonso. Uma tristeza, porém, a desconsolava, e cada dia se espessava mais a escuridade em seu espirito: sentia-se morrer, aos trinta e tres annos, de enfermidade de peito, e deixava Theodora em annos verdes, solteira ainda, á mercê e alvedrio de tutores.
Na ultima phase de sua vida, foi ella a Braga com sua filha, de proposito a encontrarem-se com o moço predestinado a esposo, já esquecido, talvez, dos primeiros annos em que se haviam conhecido creanças. O vêr com que alegria elles se reconheceram, e saudaram, como avesinhas pousadas em uma mesma fronde ao mesmo arrebol da manhã, melhorou temporariamente a enferma; porém, a muito rogada vontade do Senhor não lhe concedeu os dous annos de vida pedidos para a effectuação do casamento. Segredos do céo previdentissimo; que, a não o serem, estes rogos de mãe, em favor da virgem, que vai ficar sosinha no mundo, com os seus dous inimigos—innocencia e formosura—taes rogos baldados, e indeferidos em Deus, induziriam a argumentar contra a mediação do Creador nas miserias que creou.
Apenas fallecida sua mãe, Theodora foi recolhida ao convento das Ursulinas, por deliberação d'um tio paterno, constituido espontaneamente tutor da orphan.
Affonso, aconselhado pelo coração e por sua mãe, visitava a educanda, disfarçando as frequentes visitas com a innocente mentira de parentesco.
Theodora, com dous mezes de convento, desenvolveu-se e grangeou sciencia da vida que não alcançaria em dous annos de aldêa, da sua solitaria aldêa, onde tinha apenas aves, flôres, e estrellas a segredarem-lhe iniciações para amor. No convento, as prelecções eram menos vagas, e mais acommodadas á capacidade das educandas. É certo que as mestras não leccionavam ternuras; mas o zelo, com que ellas vedavam o pomo, dava a desconfiar que as precautas religiosas lhes tinham saboreado o travor; a não ser que o desdenhavam á mingua de dentes incisivos com que entrassem na casca d'aquelle execravel e tão convidativo fructo de Pentápolis.
Com menos de quinze annos, Theodora completou o exterior de suas graças, e o interior do seu espirito. A belleza sabia ella já quantas invejas lhe ganhava entre as condiscipulas, quantas intrigas, quantas reprehensões da mestra, á conta do muito enfeitar-se e remirar-se ao espelho. Não importava. A morgadinha da Fervença gostava de ser bella, de ser invejada, e perseguida das inimigas, com condição e resalva de ser admirada pelos galanteadores das suas perseguidoras. Em quanto ao espirito, o saber precoce de grades a dentro igualou-a, se não antes avantajou-a muito ao estudantinho de Ruivães que, contra toda a natureza e arte, em colloquio amoroso ficava muito áquem de Theodora, e sahia do locutorio admirado da esperteza palavrosa da morgadinha.
Estas delicias do palratorio, porém, foram repentinamente suspensas.
O tio e tutor de Theodora, sabedor dos amorinhos, que as religiosas, contra o seu costume, tomaram entre dentes, impoz a sua jurisdicção tutelar. A educanda reagiu sem proveito, e Affonso desafogou em lagrimas a sua saudade.
A velha fidalga de Ruivães, avisada pelo filho afflicto, foi a Braga consolal-o, e d'alli partiu a casa do tutor, a lembrar-lhe o consorcio de Affonso e Theodora, desde muito pactuado entre ella e a sua defuncta amiga. O tutor replicou, dando como nullos taes arranjos, em quanto os meninos não estivessem em idade de os ratificar.
Affonso esmorecera em dolorosa lethargia, ao passo que Theodora pensava em fugir do convento. O instincto de associação, irrecusavel em empresa tão arriscada, deu-lhe a conhecer a unica pessoa capaz de auxilial-a.
Estava nas Ursulinas uma menina de Traz-os-Montes, de familia distincta, e costumes tambem distinctos em natureza depravada. Entrára alli como em prisão; não obstante, como o anjo das trevas nunca desampara as suas dilectas, lá mesmo lhe espiritou traças de poder entender-se com quem quer que foi que a viera seguindo desde a hora em que a familia a desterrára. E que traças de infando successo, que revelação affrontadora da humanidade vai hoje eetampar-se n'esta pagina!
A menina transmontana abrindo á flôr dos labios o sorriso condolente d'um anjo de candura, assellou com um beijo no rosto da sua recente amiga o pacto de se coadjuvarem contra a tyrannia de paes e tutores.
E posta, desde logo, em discussão a materia, quiz a morgadinha da Fervença, sem mais rodeios, saber de que modo poderia fugir do convento. Libana achou arrojado o intento da fuga, e desesperado sem razão, quando se podia melhorar de sorte, sem correr o risco de ser presa e reposta no convento para nunca mais vêr sol nem lua. Contou ella, para exemplificar o perigo da fuga, a desgraça acontecida n'aquelle mesmo convento, uns trinta annos antes. Era a longa historia d'uma senhora, reclusa alli por violencia, que cuidando salvar-se pelos encanamentos subterreos dos escoadouros do mosteiro, morrera asphyxiada; e quando as freiras, a familia e as justiças a julgavam foragida no estrangeiro, um operario occupado da limpeza dos vallos, encontrou um cadaver quasi esphacelado, mas ainda reconhecivel pelos trajos. Semelhante historia, contada e ouvida n'aquella casa sempre com horror, fez sorrir a morgadinha, e tirou-lhe do peito virginal esta observação: «Tendo eu de morrer na immundicie dos canos, antes me deixaria morrer entre a immundicie das freiras. Lá em quanto aos aromas enjoativos, tanto faz estar lá em baixo como cá em cima.» A resposta foi mais estirada e espirituosa no seu genero; mas assumptos d'esta grossura só podem tratal-os curiosamente engenhos claros e eminentes como o poeta dos Miseraveis, que poetisa os escoadouros de Paris com o mesmo acume de estylo com que fallaria dos jardins perpetuamente olorosos do Elysio.
Resolvida a sobre-estar do plano da fugida, Theodora travou-se de mui intima amizade com Libana, e formavam a sós um partido, que se fazia respeitar pela audacia da lingua, e soberba de sua prosapia e abundancia de meios. N'este conloio entrava uma servente de fóra e uma criada de dentro, mediante as quaes Affonso de Teive recebia cartas de Theodora, e um cavalheirote imberbe de Traz-os-Montes, primo de Libana, recebia as cartas de sua prima.
N'uma tarde de Agosto, sahiram as duas meninas a tomarem a fresca na cêrca. Com o geito scismador e melancolico em que iam, dirieis que eram as duas graças a procurarem a terceira, que lhes fugira enamorada d'alguma divindade incognita. Quem as visse, áquella hora, depurativa das fezes de maus pensamentos e más palavras, havia de cuidar que o seu dialogo, todo ferventes arrobos e cantares ao empyreo, versava sobre os céos de Santa Thereza de Jesus, ou semelhantes devaneios do espirito embebecido no foco luminoso dos bem-aventurados.
Agora se recostam ellas n'um escabello de cortiça, cujo espaldar lhe formam almofadas de fofas murtas, matizadas da flôr do maracujá. Perto d'ellas trepida uma fonte; no tanque, onde a lua já principia a espelhar-se, coaxam as rans; a viração cicia nas ramas do pomar; zumbem os insectos, espanejando-se ao frescor da tardinha. As duas candidas meninas, enleadas na poesia do quadro, realçam-no e completam-o.
Ouçamos a musica d'aquelles seraphins.
Dizia Theodora:
—Se me eu pilhasse fóra d'aqui!... N'estas tardes tão bonitas, havia de ser tão bom andar eu a passear com o meu Affonso!... Queimado morra o meu tutor e mais o filho! Se não fosse aquelle bruto, não estava eu engradada! Ó Libana, tu não farás com que nos escapemos d'este inferno! Olha... lá está a madre porteira a espreitar-nos da grade do canto!...
Libana voltou desabridamente as costas á madre porteira, e acudiu n'estes termos aos anhelantes desejos da sua amiga:
—Olha, Lóló, não te zangues. A gente, a final, ha-de sahir d'aqui, muito a tempo de gozar a vida. Se não formos tolas, podemos ir gozando mais do que temos feito. Queres tu saber o que me diz o meu Alfredo? Queres vêr quanto elle me ama? que sacrificio quer fazer por amor de mim? Olha, eu não quiz dizer-te o que me elle pediu na carta de hoje, com medo que tu me aconselhasses a não ceder; mas cedo, filha, cedo que a paixão não tem leis. Pede-me para vir ser minha criada.
—Tua criada!—exclamou Theodora.
—Minha criada; pois então?—replicou Libana, abaixando o tom de voz, abafada pelo frouxo do riso—Não ha nada mais facil. O meu Alfredo tem cara de mulher, e não tem ainda barba. Diz elle que se veste á moda das raparigas da minha terra, que me procura com uma carta fingida de minha mãe a pedir-me que receba a portadora como criada; cá no convento ninguem póde impedir-me que eu a receba; a gente hade ter todo o cuidado que se não descubra o logro; e... tu... que me dizes, Lóló!
Theodora acudiu com o rosto chammejante de alegria:
—Olha lá, Lili, o meu Affonso tambem tem cara de mulher, pois não tem?!... Se elle viesse tambem para minha criada era tão bom!
—O peor é que elle é conhecido, por ter cá vindo muitas vezes—observou Libana—O meu Alfredo é que só veio aqui no principio uma vez, e ninguem o conhece... Não vamos nós botar tudo a perder, Loló!
—Que pena!—exclamou a morgadinha com os olhos no céo e a mão direita sobre o coração latejante—Que pena que o meu Affonso não venha tambem para cá!... Ó Libaninha, vê se inventas alguma cousa, se não a tua amiga morre de tristeza!...
E, dizendo, escondeu o rosto, aljofrado de quatro lagrimas, no seio da amiga.
Que lagrimas! D'onde veio ou para onde foi o anjo da innocencia, quando um peito virgem tem d'aquellas lagrimas, e uns olhos, que ainda não viram os hediondos espectaculos da farça do mundo, podem choral-as!
Fechou-se a noite. Já a sineta havia chamado as duas meninas rebeldes ao primeiro e segundo aviso. Ergueram-se, deram-se o braço, e foram, na cella de Theodora, continuar o recendente colloquio do jardim.
Theodora, a não poder ser feliz, exultava com as venturas da sua amiga. Animou-a á temeridade de receber o atrevido rapazola de Tras-os-Montes, idolatra d'um personagem de romance, unico que em sua vida lêra, o Lovelace, de quem se propunha imitar o entrajamento de mulher. O tolo! Ainda bem que as asneiras, copiadas dos romances, costumam ter, na vida real, umas sahidas muito desgraçadas ou irrisorias! Ainda bem, para desdouro dos livros desmoralisadores, e luzimento d'outros livros de san moral, que só fazem mal ao publicador que os não vende.
Este Alfredo, que vivia occulto nas cercanias de Braga, applaudido por Libana em seu projecto, foi á sua terra preparar os vestidos, e ensaiar-se em tregeitos mulheris.
Libana tinha uns irmãos, oriundos do mesmo tronco de pae e mãe, os quaes pelos modos, não tinham de que espantar-se do descomedimento e desatino da filha e irman; d'onde vinha o serem elles grandemente avelhacados, astustos, e espiões das tramoias de Alfredo.
A villa era pequena e de soalheiro. Correu logo por algumas boccas, até aos ouvidos dos interessados, o estar-se fazendo roupinhas e saiotes, e outros atafaes de mulher, afeiçoados ao corpo de Alfredo. Sem detença, um dos irmãos de Libana sahiu para Braga; o outro ficou d'atalaia aos movimentos do imitador de Lovelace. O que se escondera em Braga foi avisado a tempo que Alfredo vinha de jornada. Uma engenhosa combinação com as authoridades lançou a rede tão a ponto que o infeliz foi capturado na portaria das Ursulinas, vestido de camponeza transmontana, e d'alli, entre baionetas, e escoltado de rapazio, percorreu todas as estações judiciarias desde o regedor até ás caricias do carcereiro.
As religiosas, conscias do escandalo, requereram ao prelado bracharense a expulsão da reclusa que deshonrava o convento e contaminava de sua desmoralisação as outras meninas. Foi, portanto, Libana entregue a seu irmão, que a levou para casa. Esperava-se geralmente que esta donzella, agourada para estremados desastres, tivesse um fim de exemplo a mulheres desgarradas do trilho da virtude. Os prognosticos da opinião publica erraram, como se ha-de vêr n'um futuro livro.
A gente não sabe ainda bem como este mundo está feito.