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III
ОглавлениеNo dia seguinte, ao domingo de festa que eu passei com Affonso, reapparecera o sol magnifico da vespera.
Affonso de Teive mandou apparelhar um ordinario garrano, o qual, no dizer do dono, era um luxo nas suas cavallariças, visto que Affonso raras vezes sahia para além dos muros da sua quinta. Da residencia do reitor veio de emprestimo uma egua apparelhada de albardão, e estribos de pau que pareciam alqueires. Depois de almoço cavalgamos, embrenhamo-nos por uns quinchôsos pedregosos, e sahimos á estrada entre Guimarães e Famelicão. Estava destinado um passeio de duas leguas. A egua abbacial era tão firme no piso, que eu dei de mão ás redeas, formei d'um estribo o travesseiro, e deitei-me no albardão, para admirar horisontalmente a natureza, maneira de vêr que eu recommendo aos curiosos que ainda não viram assim a natureza. Ao meu lado ia Affonso de Teive, corcovado sobre o pescoço do garrano, que não obedecia á redea nem á espora: era preciso fallar-lhe rijo, ou espertal-o á paulada. E Affonso ria-se.
—Quem te viu e quem te vê, Affonso de Teive!—exclamei eu—Quem te viu em Lisboa n'aquelle cavallo preto, que levantava ferozmente as patas, como para te cuspir á calçada, e as abaixava humildemente e a tremer, se tu lhe murmuravas uma palavra. Quem te viu ao lado d'aquella Palmyra...
Mal proferi esta palavra, Affonso cravou-me os olhos subito abrazeados do antigo fogo. Fingiu que sorria, querendo esconder a mutação de rosto. Voltou a face para onde eu não podia vêr-lh'a; e, passados alguns segundos, murmurou:
—Lá se foi a alegria do nosso passeio.
—Porque?!—acudi eu—perdôa-me, se involuntariamente feri a tua sensibilidade... Eu cuidei que entre ti e o teu passado estava um abysmo incomprehensivel aos olhos da tua saudade... Pensei que ao homem feliz eram indifferentes as recordações dos bons e dos ruins tempos da mocidade.
Affonso deteve-se a encarar-me, e disse de golpe:
—Tu ignoras a minha vida desde 1850?
—Juro-te que não sei nada da tua vida, respondi.
—E d'essa mulher, que chamaste Palmyra?
—Nada sei, senão que...
—Diz o que sabes... que hesitação é a tua?
—Apenas soube que era casada, que sahira d'aqui para Lisboa comtigo, e mais nada. As pessoas, a quem perguntei por ti eram os teus velhos amigos, que encolhiam os hombros, e diziam: «quem sabe lá.» Desde 1856 que te esqueci completamente. Argue, se quizeres, a minha desmemoriada amizade; mas a verdade é esta. Eu sou, pouco mais ou menos como todos os teus amigos.
Asserenou-se o aspecto de Affonso de Teive, e fomos indo silenciosos, até apearmos em Guimarães na estalagem da Joanninha, que está n'este mundo a competir em graças, limpeza, e poesia com a Joanninha de Almeida-Garrett nas Viagens.
Jantamos, sahimos a vêr a terra, que eu nunca vira em Dezembro, enxergamos á luz crepuscular umas famosas damas da velha cidade que resistiam ao frio da tarde, encostadas aos peitoris das suas janellas; entrevimos galantissimos olhos d'outras através das rotulas, que ainda agora nos estão contando virtudes d'outras eras, virtudes, que precisavam de rotulas, como as bellas flôres exoticas precisam de estufa.
Voltamos á estalagem, tomamos chá, e uns pastelinhos que hão-de ir futuro além relembrando o mavioso nome da snr.ª Joanninha. Depois pedimos duas camas n'um quarto, e tivemos a satisfação de vêr que nos davam um quarto com cinco camas, ou cousa assim.
—Ha dez annos—disse Affonso—é esta a primeira vez que durmo fóra de minha casa. Acho-me só e estranho. Penso que estou a mil leguas de minha mulher e dos meus filhos.
—Eu vou mandar apparelhar as cavalgaduras—disse eu—e vamos embora que está magnifica a noite.
—Não—redarguiu Affonso—que preciso estar a sós comtigo, uma noite. Debaixo das telhas que cobrem minha mulher os meus labios não proferem o nome de outra. Ella já sabe que eu fico em Guimarães. Fallarei, e tu ouvirás, ou dormirás. Fallarei do homem que conheceste em 1851, para explicar o homem de 1863. Has-de vêr que lamaçaes atravessei, que resacas affrontei, como eu me bati de peito com as puas de ferro da desgraça, para chegar ao abrigo onde me encontraste. Não pasmarás então da minha velhice precoce: ser-te-ha assombro a minha vida. Se és infeliz, consolar-te-has. Se o não és, recearás sel-o.
A noite, como sabem, era de Dezembro.
Ás onze horas consummiu-se de todo a vella. Affonso de Teive continuou a fallar ás escuras. Ao rasgar da manhã, abrimos as portadas, e Affonso fallava ainda.