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IV
ОглавлениеNo principio d'este anno de 1864, sahi de Ruivães, onde, por espaço de oito dias, me escondi á minha estrella funesta—a vigilantissima desgraça, que eu ia esquecendo. No termo d'este praso, estranhei o socego das minhas noites, faltou-me a mão do demonio que me arregaçava com dedos de fogo as palpebras quebrantadas de somno, e fui á procura d'elle.
Deixei o meu amigo na cumiada do outeiro, visinho de casa, com sua esposa e filhos. As ultimas palavras d'elle foram: «quando tiveres o livro escripto, deixa-me gozar a não vulgar satisfação de me vêr personagem, e heroe d'um romance, que me promette uma immortalidade...»
—De quinze dias—interrompi eu.
Não longe da obscura paragem de Affonso de Teive, á margem do córrego chamado Péle, riacho, que, pela primeira vez, é revelado ao mundo em letra redonda, assentei eu a minha tenda nómada. A minha tenda são uns vinte volumes, um tinteiro de ferro, e um cabo de penna de osso, que me deram n'outro ponto do mundo, onde ha quatro annos assentára tambem a minha tenda,—ponto do mundo que por um singular acaso implicava ao meu sestro vagabundo: era no anno do Senhor de 1860, nos carceres da Relação do Porto, o menos conveniente dos paradeiros para homem de gostos impermanentes em objecto de aposentadoria. Isto, sem embargo, não impedia que esta minha tão querida penna, tão amiga confidente d'aquellas trezentas e oitenta noites—de Janeiro todas, que lá a dentro dos congelados firmamentos de pedra, reina perpetuo inverno, e giam as abobadas, não sei se lagrimas, se sangue, se agua represada nos poros do granito,—não impedia, vinha eu dizendo, que a minha penna, com o seu incansavel fremir sobre o papel, me aligeirasse as noites, e aos assomos da alvorada, me convidasse para a banca do trabalho, que foi o meu altar de graças ao Senhor, e o confessionario onde abri minha alma ao perscrutar do anjo providencial que me dava a uncção dos athletas e dos grandes desgraçados, para mais affrontosos e excruciadores supplicios.
Os meus vinte volumes, e o meu tinteiro de ferro, estão hoje sob o tecto gasalhoso d'uma alma que eu n'outras eras encontrei na minha. Não sei ha que seculos isto foi, nem que congerie de abysmos nos separam para sempre. Parei aqui, por que ainda aqui, a tempos, se me figura rediviva a imagem do passado, ainda aquella alma se me hospeda no coração em instantes de sonhos do céo, ainda a pedra tumular das affeições, cahidas á voragem infernal do desengano, está pendida sobre a derradeira: que a saudade é ainda um affecto, um excelso amor, o melhor amor e o mais incorruptivel que o passado nos herda.
A casa, onde vivo, rodeam-na pinhaes gementes, que sob qualquer lufada desferem suas harpas. Este incessante soido é a linguagem da noite que me falla: parece-me que é voz d'além-mundo, um como borborinho que referve longe ás portas da eternidade. Se eu não amasse de preferencia o socego do tumulo, amaria o rumor d'estas arvores, o murmurio do córrego onde vou cada tarde vêr a folhinha secca derivar na onda limpida; amaria o pobre presbyterio, que ha trezentos annos acolhe em seu seio de pedra bruta as gerações pacificas, ditosas, e incultas d'estes selvagens felizes que tão illuminadamente amaram e serviram o seu Creador. Amaria tudo; mas amo muito mais a morte.
Aqui, se Deus se amerciar de mim, embargando o passo ao anjo exterminador, que continuo me assaltêa os aditos do meu eden de quinze dias, aqui escreverei, com quanta fidelidade a memoria me suggerir, a narrativa que Affonso de Teive me fez.
Seis mezes ha que se fez noite do meu espirito. Por arrebatados impetos de quem quer furtar-se ás garras de um imaginario dragão, tenho fugido para defronte do meu tinteiro de ferro, e avocado as graciosas imagens, filhas do céo, que, nos dias da mocidade fremente de más paixões, me refrigeravam a fronte, e disputavam ao encanto do mal, psalmeando-me o hymno de amor ao trabalho. O perdimento d'esse amor foi a suprema provação, a forja ardentissima em que minha alma foi lançada á voracidade d'um fogo depurante. Mas, no interior, por tudo em que sombreava a negrura do coração, eram tudo trevas, frio, lethargia, esquecimento.
Não sei de que futuro abril do meu porvir me veio esta manhã um bafejo aromatico de flôres, umas ondulações de luz, que me pareciam as da minha juventude. Tudo me visitou como em mãos do fugace archanjo do contentamento. Passou o nuncio mysterioso, passou depressa, mas o meu espirito ergueu-se alvoroçado a saudar o sol de Deus, do Deus immenso que na immensidade dos seus mundos ainda guardará para mim um quinhão de alegrias parcas e modestas, as que unicamente podem dar consciencia repousada, prelibações de bem-aventurança, e honrada alliança com os homens.
Penso que estou escrevendo as tuas palavras, ó meu amigo, redemido a lagrimas, a ultrages, e a desapêgo do mundo. O clarão, que hoje alumiou a minha alvorada, seria por ventura um reflexo das tuas alegrias. Ha dias me disseste:
«Sabes tu o que é ter um Deus, que nos escuta, que nos reprova, que nos louva, que nos povôa o espaço onde a alma insaciavel do homem encontra um vazio horrendo, uma respiração afflictiva?» Querias tu dizer-me que orasse? A ti o confesso em grandes enchentes de consolação, e ao mundo o confessarei sem o impio rubor dos miseraveis que perderiam sua alma antes que a irreligiosidade os escarnecesse: OREI, meu amigo; porque, n'um dos mais apertados trances de tua vida, quando m'o acabavas de contar, interrompi o teu silencio, perguntando:
—E que fizeste depois?
E tu respondeste-me:
—Depois, OREI.