Читать книгу O Bem e o Mal - Camilo Castelo Branco - Страница 5

II
Amor de predestinação

Оглавление

Índice de conteúdo

A mulher ajoelhada á sombra do escuro arco, era Peregrina, irmã do vigario.

Viera de longe para alli com seu irmão, sacerdote pobre, que devia a sua ordenação ao bemfazer do padrinho, velho fidalgo de Pinhel. Em quanto João se ordenava em Bragança, Peregrina vivera e educara-se sob o amparo do padrinho de seu irmão, e querida das filhas do fidalgo, que a vestiam de seus vestidos, e a sentavam entre si á meza.

Disse padre João a sua missa nova na capella do bemfeitor, e alli ficou estimado como da familia, até que, por diligencias do fidalgo, recebeu a apresentação na igreja de S. Julião da Serra.

Peregrina beijou a mão do velho caridoso, beijou o rosto de suas amigas de infancia, e sahiu com o presbytero em demanda da vetusta igreja. Os parochianos, posto que descontentes ao verem semblantes desconhecidos no adro dos seus mortos, disseram:

«Assim é que vinha o pastor de Villa Cova com a irmã».

Era melancolico o presbyterio; as arvores ressequidas; o chão arido; as penedias calvas; os tectos assentes em vigas; as paredes interiores afumadas; os taboados movediços. Alli, as primaveras passariam despresentidas, se não fosse o azulejar-se o céu, e os festões das giestas na serra, e o calar-se o estridor das torrentes despenhadas dos cerros das montanhas.

Peregrina, quando alli se viu, por um anoutecer de novembro, disse:

—Como isto é triste e feio!

Padre João olhou em redor de si, e respondeu:

—Irmã, este chão triste é que nos ha de dar o pão santo da independencia. Bemdigamos o coração generoso dos nossos amigos, que me deram terra onde lavrar com minhas proprias mãos o nosso sustento de cada dia. A casa parece-nos agora triste, porque é noute. Ámanhã um raio de sol nos virá alegrar estas paredes.

E, como assim fallasse, o vigario desceu ao adro, subiu sobre uma peanha tosca, travou da corda que movia o sino unico do simulacro de torre, e tangeu as nove badaladas de Ave-Marias. Os lavradores, que iam passando, descobriram-se, pararam, oraram, benzeram-se, e seguiram seu caminho murmurando:

—Os padres de Villa Cova faziam o mesmo. Quer Deus que todos os nossos vigarios sejam bons e devotos.

Entretanto, Peregrina, rezada a oração final da sua prece da tarde, alongou os olhos ás sombrias serras que avultavam para o lado de Pinhel, e chorou. Eram saudades das filhas do bemfeitor, e do casal onde nascera, e onde seus pais, caseiros do fidalgo, haviam morrido.

A irmã do vigario tinha 18 annos. Era dotada de abundantes graças, compleição menos robusta que o ordinario das moças aldeãs, senhoril talvez extraordinariamente, rica de negros cabellos, formosa de olhos, doce e meiga no dizer, modestissima, parca em sorrisos, meditativa, laboriosa, e muito dada á oração.

Costumava ella erguer-se ante-manhã, quando ouvia os passos do irmão no sobrado visinho do seu quarto. O vigario madrugava assim para dizer missa á hora em que os parochianos sahiam ás suas lavouras. Peregrina accendia o lume, aconchegava o pucaro das brazas, cegava as couves, ia assistir á missa do irmão, e vinha depois cosinhar o caldo que era a refeição matinal do sacerdote e d’ella.

Uma grande parte do clero, que pastorêa almas, póde bem ser que me não acceite a verosimilhança d’este caldo de couves. Espero que se desçam de sua incredulidade, se eu lhes disser que a congrua e pé-de-altar de S. Julião da Serra não davam para chá, n’aquelle tempo em que os direitos da charopada chineza eram enormes, e os paladares eram genuinamente portuguezes, lá d’aquellas serranias, se saboreavam de preferencia no salutar cozimento de couves adubadas de saboroso unto. Ora eu, que n’esta fidalga e franceza Lisboa tenho sido espectaculo de riso, pedindo nos hoteis, e recommendando aos meus amigos o caldo verde, insisto contumazmente em me expôr á mofa da gente culta, dando á estampa, n’este logar e para meu duradouro opprobiro, o panegyrico do caldo verde, caldo de meus avós, e de padre João e de sua irmã.

N’aquella madrugada, em que Ladislau fôra celebrar o anniversario da morte de seu tio, orando na igreja, Peregrina demorára-se a rezar, finda a missa, porque seu irmão entrára no confessionario. Déra ella conta de ajoelhar-se alli perto de si o moço, já quando o templo estava vazio. Soffreou, em quanto pôde, sua curiosidade, que teimava em querer conhecer o recolhido devoto. Não era costume seu voltar a cabeça a um lado ou outro, quando fallava a Deus; porém, tanta força lhe fazia o animo para o sitio onde estava o moço que, apesar de profanação, aventuro-me a suppor que o coração lhe estava tirando para alli os olhos por uns filamentos mysteriosos que, alguma vez, a anatomia ha de encontrar entre olhos e coração.

Foi o raio de sol nascente, vertido pela fresta esguia da capella-mór, que de todo em todo aliciou Peregrina a olhar. Um raio do sol do Senhor a alumiar-lhes o escuro do templo para se verem! Donoso e sublime confidente de duas almas carecidas uma da outra! Nunca tão auspiciosos preludios de um amor começaram n’esta vida. São dous moços: ella virgem, e formosa, e immaculada; elle gentil, puro, e alli ajoelhado em consultação de seu destino. A que bemdita e predita hora se entreluzem as duas almas, embebidas em Deus e subitamente encontradas no mesmo arco da igreja, em que os esposos costumam receber as bençãos!

Ladislau tinha as mãos erguidas, quando encarou no rosto de Peregrina. As mãos ficaram na postura fervorosa; mas a oração, cortada em meio, olvidou-se-lhe. E ella, que entrepassava nos dedos as contas do seu rozario, continuou a dizer as palavras santas, mas sem ouvil-as na audição interior do espirito.

Ambos a um tempo acordaram da fixidez da sua contemplação, e córaram. Ladislau baixou os olhos, e ella ergueu-os. Um parece que pedia contas á terra d’uma delicia, que nunca lhe havia dado nem presagiado; outro ia no ceu como a decifrar o enigma da sensação nunca experimentada.

Instantes depois, padre João appareceu á porta da sacristia, e mandou á irmã que accendesse os castiçaes do altar-mór, emquanto elle se revestia para ministrar a sagrada communhão á confessada. Ladislau, como ouvisse as ordens do vigario a Peregrina, ergueu-se e disse:

—Eu vou, se o sr. vigario quer. Já sei este serviço, que era minha obrigação, em tempo de meus tios, que Deus haja.

Padre João já conhecia o sobrinho do defuncto Praxedes, como primeiro lavrador da freguezia, e moço de estudo e virtudes, segundo lhe disse o regedor da parochia, e o gravissimo mordomo do orago confirmára.

Acceitou o vigario o serviço a que Ladislau se teria offerecido, ainda mesmo que a presença de Peregrina o não movesse á delicadeza. Esta delicadeza era instinctiva certamente, e ensinada pelo coração, a fundamental de todos os ceremoniaes, que nas activissimas cidades os meninos aprendem em livros, como se a cortezia com damas não fosse pagina escripta no mais diamantino do peito desde que abrimos olhos para vel-as.

Accendeu Ladislau as velas, e proveu de agua o jarro da communhão, emquanto o vigario se paramentava. Subiu o ostiario ao altar, abriu o sacrario e tomou a particula da pyxide. Uma nuvem escura de trovoada imminente entoldára o sol, e a capella-mór voltava á frouxa luz crepuscular. O ministro, severissimo em todo o ritual de seu sagrado encargo, como não fiasse da claridade de uma só vela a perfeita passagem da hostia á lingua da commungante, acenou á irmã para que tomasse uma vela do outro lado.

Ladislau tremeu quando a viu tão perto de si; mas assim mesmo, não desatremou em desconcerto com a urbanidade: entregou-lhe o cirio, que tinha e foi tomar outro da tocheira.

Em verdade lhes digo, meus sensiveis leitores, que eu desejava ter assim um painel, para serem dous os papeis da minha estimação. O que já possuo é uma menina lagrimosa, que está dando de comer ao seu cão moribundo, que não vê o alimento mas ainda a vê a ella, e parece despedir-se a chorar. O outro quadro queria eu que fosse o vigario de S. Julião da Serra pendido á fronte humilde da christã; d’um lado, Peregrina com o rosto banhado do escarlate da flamma, que ella quer affastar de si, adivinhando que os olhos do moço a estão contemplando; do outro lado, Ladislau, involuntario, captivo, alheado de si, sem poder desfital-a. Eis aqui as minhas quatro figuras todas absorvidas em amor de Deus. O padre está enlevado na suprema magestade do seu ministerio: a penitente está-se identificando a divindade do corpo e sangue de Jesus; Ladislau, em seu silencioso spasmo, está psalmeando o hymo de graça que o primeiro homem deu ao Senhor, no instante de ver inclinado a si um seio amparador de mulher. E ella, Peregrina? De ti, purpureada virgem, só podem sentir teus extasis, e contar-no’l-os as tuas iguaes n’este mundo, as que tiveram simultaneamente a intuição do amor e a visão do primeiro homem amado. Todos, pois, enlevados em aspirar divino: o sacerdote e a commungante pela consciencia, os outros pelo coração, aberto em perfumes que queimam a Deus o mais selecto e fino bago do seu incenso.

Findo o acto sacramental, o padre subiu os dous degraus do altar, cerrou o sacrario, ajoelhou, e voltou á sacristia. Ladislau ficou em pé, rente com o tocheiro de castanho tosco, d’onde tirara o cirio. Peregrina foi depor a sua vela sobre a credencia, desceu ao fundo da igreja saudando os quatro altares lateraes, e sahiu do adro, e logo entrou na vigairaria. Ladislau, viu-a desapparecer, e disse de sua consciencia para Deus: «Não tornarei a vel-a?»

Assomou o pastor no limiar da sacristia, e disse a Ladislau, que ia sahindo:

—Desejo tel-o em minha companhia algum pouquinho tempo, sr. Ladislau. Se não vai com pressa, tenha a bondade de esperar, que eu faço oração, e vou já.

—Espero no adro o tempo que o sr. reverendo vigario quizer.

—Por que ha de ser no adro e não em casa?—tornou padre João.—Entre na residencia, que a porta do sobrado está aberta.

Ladislau esperou no adro, e, emquanto esperava, tinha os olhos na janellinha da saleta, em que seu tio costumava estar nas noites quentes, esperando os freguezes, que voltavam das ceifas, e a todos fallava, mandando-os sentar nos troços brutos de pedra, que alli tinham ficado d’uma casa incendiada pelos francezes.

Assim contemplativo, viu elle chegar á janella a irmã do vigario, e esconder-se, apenas o encarou, surprehendida.

Que instantes aquelles para ambos! Que ceus e ceus, vistos á lus d’um relampago! Que extensos poemas de lagrimas costuma a saudade fazer depois com as reminiscencias de uns momentos tão fugitivos!

Sahiu o vigario do templo, fechou a porta, e disse:

—Estava o sr. Ladislau a recordar-se de seus tios?... Não admira, que eu mesmo, sem os ter conhecido, lhes respeito a memoria, pelos grandes louvores que ouço dar ás suas virtudes. Basta ver o que este bom povo é, para se avaliar as excellencias de quem assim o educou. O espirito dos dous ultimos e defuntos vigarios de S. Julião da Serra está ainda com o seu rebanho. Facil me ha de ser a mim, homem sem virtude nem experiencia, pastoreal-o. Mais tenho que aprender que ensinar.

E, no sentido d’estas humildes palavras, foi dizendo outras, que se insinuavam ao coração do moço já captivo do conciliador semblante do sacerdote; e assim entraram na casinha parochial.

—Peregrina—disse o padre á irmã que os vira subir, e, sem saber por que, se alvoroçara—olha que temos hospede; vê lá como te saes; não queiras que o nosso convidado nos julgue forretas. Almoço de abbade rico, ouviste?

A moça não respondeu. Affastou da fogueira o caldo que fervia, lançou alguns ovos á certã, e, tão depressa os cosinhou, foi á modesta arca do seu fragal tirar a melhor toalha, e os garfos de ferro ainda lusidios em primeiro uso.

Peregrina, posto o almoço na mesa, sentou-se no seu logar de costume, que era um banquinho tosco achegado do escano. A mesa, construida de uma só taboa afumada, engonçava n’aquelle adorno da lareira, talvez tão antigo como a vigairaria de S. Julião da Serra.

Quando a moça se assentou, disse Ladislau:

—Aquelle banco era o logar de minha tia, que Deus tem!

E ficou contemplativo.

—E eu—disse padre João—estou no logar de seu tio, e o sr. Ladislau vem sentar-se no logar que era seu.

Estava já na meza a travessa de barro vidrado com a fritada de ovos e farinha triga. O vigario sorriu-se, e disse:

—Na meza de seu tio havia um prato e um talher para cada pessoa?

Ladislau, que não sabia o significado da palavra «talher», respondeu:

—Comiamos todos do mesmo prato; e na minha casa de Villa Cova, tanto meu pae como meus tios comiamos á mesma meza dos creados e jornaleiros.

—Como ha trezentos annos—ajuntou o padre—como os patriarchas idumeos com os seus servos e escravos. O sr. Ladislau ainda não viu, á luz da civilisação, a grande distancia a que está dos seus criados. Vive, por em quanto, na fé de que senhor e servo são homens filhos do mesmo pai, um favorecido, outro desfavorecido pelo acaso do nascimento... O sr. não lê as gazetas?—perguntou o vigario abruptamente.

—Não leio, nem as vi nunca—respondeu o moço—Ouvi dizer a meu tio que um padre, d’aqui tres leguas, quando acertava de encontrar-se com elle na feira de Pinhel, lhe mostrava gazetas.

—Pois—tornou o padre—as gazetas são uns papeis escriptos em letra redonda, creados e sustentados para demonstrarem que todos os homens tem direitos eguaes. Muito me admira que seus avós e o senhor tenham praticado a egualdade sem terem lido as gazetas! Provavelmente em casa dos Militões de Villa Cova lia-se o Evangelho de Jesus Nazareno.

—Lia, sim, senhor.

—Só assim pode explicar-se a virtude sem a doutrinação das gazetas. Dizem que ellas são o baluarte da liberdade, da egualdade, e da fraternidade; e eu estou em defender que o sermão da montanha, prégado pelo filho de Deus ha mil e oitocentos annos, e o sermão da natureza, que sem cessar se está ouvindo, bastam para fazer um homem irmão e amigo do outro homem, por amor de Deus, que é pai de todos.

Posto que não excedesse os vinte e oito annos, o vigario, no pausado e reflectido do seu dizer, competia com os cincoenta annos de algum egresso d’aquelle tempo.

As faculdades d’este bem-fadado ministro da verdade tinham amadurado antes da sasão propria. Costuma ser a desgraça quem antecipa, com a precoce experiencia, a reflexão; porém observa-se que o juizo—o que commummente se chama siso—proveniente das lições do infortunio, é um recolhimento melancolico, mysantropo, deshumano ás vezes, e quasi sempre intolerante. Em exemplos d’esses, que os ha em grande copia, acerto seria arguirmos ao enojo das chimeras d’esta vida o que attribuimos á reflexão.

A madureza do vigario não era apressada pela desventura, nem triste, nem intolerante. A indole, o habito da soledade, o estudo, a clara vista da alma com que entrava no secreto e desconhecido do coração alheio, explicam o ar grave, monacal, e discordante de seus annos. Não obstante, o geito com que dizia as suas satyras ás gazetas dava mostras de espirito faceto ou humoristico, segundo agora francezmente se diz.

Dos estudos do seminario passára o presbytero á capellania do padrinho de Pinhel, fidalgo, como se disse, intractavel desde 1834, retrahido ao seu quarto, em lucta permanente com os achaques da alma egualmente dolorosos que os do corpo. A gota, o rheumatismo, a sciatica impacientavam-no tanto ou menos que o desmancho das cousas politicas. Ruy de Nellas Gamboa de Barbedo, que assim se chamava o gothico solarengo de Pinhel, se alguma vez chamava padre João Ferreira ao seu quarto, era para lhe perguntar pela quinquagesima vez:

—Que me dizes a isto, padre João?

—A isto?

—Sim, á queda do rei legitimo?

—É um facto consummado—dizia o padre.

—É uma usurpação consummada!—replicava o fidalgo, e sibillava um agudo ai, levando a mão ao artelho esquerdo, cuja dor só podia comparar-se á do artelho direito.

E como o afilhado não pudésse restaurar ao throno usurpado o senhor legitimo á vontade do padrinho, Ruy voltava-lhe as costas, e o padre sahia melancolico a encerrar-se no seu quarto com os seus poucos livros, ou ia leccionar em primeiras letras as filhas do fidalgo, a segunda das quaes principiara o alphabeto aos dezeseis annos, Deus sabe com que repugnancia.

Demorei-me accintemente n’estas dispensaveis explicações para dar tempo a que os tres convivas almoçassem e conversassem. Conversassem, é menos exacto. Quem fallou sempre foi o vigario, e é de presumir que o auditorio o attendesse escassamente. Ladislau, se alguma cousa escutava, era o poema interior, os hymnos descompassados, mas sublimes, que soavam dentro em seu coração. Estranhas musicas deviam de ser aquellas para o moço surprehendido, na alva do seu primeiro dia de amor, por enchentes de luz desconhecida! O amor, que vem procurado, como sensação necessaria á felicidade da vida, perde dous terços da sua embriagante doçura; porém, o amor inesperado, impetuoso e fulminante, esse é um abrir-se o céu a verter no peito do homem todas as delicias puras que não correm perigo de impestarem-se em contacto com as da terra. Era d’esta especie o sentimento de Ladislau, nascido na hora em que elle ia confirmar sobre a sepultura de seu tio o pacto de ser sacerdote, abjurar as desconhecidas allianças do coração com o mundo, e acceitar as que atam o coração ao mundo com o laço da caridade evangelica.

Ora, aquelle poema interior, se alguem podia decifral-o, era Peregrina. A mulher innocente e admiravelmente dotada do sexto sentido, que recebe as impressões não classificadas na ordem physica nem moral. Adivinha quem a ama, antes que lh’o digam. Parece que o ar se lhe povoa de espiritos amigos, que giram entre ella e os olhos de quem, a fito ou de revez, a requesta. Aquelle diaphano veu de escarlate que lhe purpurea o rosto, não é sangue como dizem os materiaes definidores de tudo: a mimosa susceptibilidade de cutis, chamada pudor, não pode ser sangue; em quanto a mim, é o sombreado das azas iriadas dos espiritos que voejam no ambiente da mulher immaculada, ou então reflexo das coroas de rosas, com que o deus festivo dos amores a infeita, cioso de ter nos seus altares o pouco d’este mundo que merece e desculpa a idolatria.

Posto que este dizer tenha um sabor mythologico, pagão, e, sobretudo, antiquissimo, ha-de o leitor conceder que o seu servo romancista, tal qual vês, se desgarre do caminho trilhado á moderna, para não dizer sempre que os seus personagens estavam arrobados, extaticos, ou, o que é peior, perdidos de amor.

Os meus personagens, Ladislau e Peregrina, não estavam arrobados nem extaticos, porque ambos confessam que comeram da travessa vidrada a sua porção de ovos, e tomaram cada qual o seu caldo-verde (palavra indigna de tão levantado assumpto!)

Perdidos tambem não estavam; porque o perder-se ou transverter-se o coração é quasi sempre a prova real de não ter sido o primeiro nem o melhor um certo amor com que os alienados se desculpam.

O amor, que não perde nem desvaira, esse é que é o amor.

Eil-o ahi, pois, profundo, sereno e bello como o oceano em calmaria.

O Bem e o Mal

Подняться наверх