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III
Casamento patriarchal

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Eu, que já escrevi doze casamentos felizes de uma assentada, querendo agora enfeitar o de Ladislau e Peregrina, é tamanha a penuria do engenho em que me vejo, que—a não me acudir a fada do estylo—hei de contar o ditoso enlace, como elle está escripto no livro dos casamentos da freguezia de S. Julião da Serra.

Convém saber que é cousa para pouco discurso a passagem do amor ao sacramento, que o completa, lá n’essas terras abençoadas do obscurantismo, como era o termo de Pinhel, e continuará a ser por estes quatro seculos por vir, em virtude de lhe andar por muito longe das raias o caminho de ferro. De S. Julião da Serra, então, isso aposto eu que nunca ha de ser desalojada a santa ignorancia, que faz amarem-se e casarem-se logo as pessoas que se querem.

Vamos a bosquejar o casamento de Ladislau e Peregrina. Se a descripção me sair muito florida, não servirá. Guardarei os enfeites para exornação de outros casamentos, onde as flores sejam empregadas em disfarçar a mingua de coração e virtudes.

Findo o almoço Ladislau disse ao vigario:

—Como o dia está soalheiro e alegre, pedia eu ao sr. padre João e a sua irmã, que viessem passar o dia a Villa Cova. Se houver precisão da sua vinda á egreja para administrar a extrema-uncção, depressa o irá chamar alguem a minha casa; porém, graças a Deus, não está ninguem, que eu saiba, doente na freguezia.

—Pois vamos—disse o vigario sorrindo.—Caro lhe ha de ficar o almoço... O bom presunto vai pagar os maus ovos. Vem d’ahi, Peregrina, vamos lá ver a casa d’onde sahiram tantos homens grandes e obscuros, como são os homens que se escondem da sociedade para serem bons. Quem dirá, sr. Ladislau, que no curto horisonte d’estas serras que nos cercam, estão fechadas as lembranças dos santos ministros do altar, que vieram de sua casa para dentro d’estas quatro paredes velhas!... E seu pai, o viuvo amortalhado no habito de frade pedinte!... Vamos!... A minha indole melancolica chega a ser rustica! Vejo que o sr. Ladislau está alegre, e eu a chamal-o a lembranças pesarosas!...

No decurso da caminhada de um quarto de legua, foi Ladislau contando em miudos a sahida de seu pai para o convento de Vinhaes, e a saudade escura dos que ficaram, encarando a porta, que se abrira á passagem de um caixão, e logo ao desterrado perpetuo das alegrias d’esta vida. E o moço, a fallar de sua mãi, chorava; que é sabida cousa a facilidade que temos de chorar, quando o amor nos amollece, e, para assim dizer, anima o coração. Sem a presença de Peregrina, Ladislau seria mais insensitivo, mais duro, mais homem. O amor afemina as condições mais viris, e tem feito que as faces queimadas e negras da polvorada das pelejas se orvalhem e brilhem de lagrimas. No animo tenro e como infantil do moço de Villa Cova, a bem dita influição da meiga menina, que o ia ouvindo e amando, devia de abrir-lhe no peito os conductos todos das lagrimas maviosas. Não sei que mysterio santo e dulcissimo está no fallarmos de nossa mãi fallecida á mulher que nos bem quer. Póde ser que venha esta sensibilidade de recebermos de uma o coração, que damos a outra. Ou, talvez, seja de nos faltarem carinhos de mãi, e cuidar a gente que a esposa nol-os-ha de reviver.

Subiram os tres caminheiros o serro de uma quebrada, d’onde se entrevia a casa de Villa Cova, mal distincta do arvoredo de soutos e carvalhaes. N’este alto, está um rochedo, a pender sobre uma gruta de lage, ageitada pela natureza, e conhecida dos pastores, com guarida segura das trovoadas.

—Esta lapa convida—disse o vigario. Sentemo-nos aqui um pouco.

—Minha mãi,—disse Ladislau—chamava a esta penedia a sua gruta... eu ainda lhes não disse que minha mãi era pastora.

—Pastora?!—acudiu Peregrina, com ar de lisongeira admiração, significando sentir a patriarchal poesia da vida pastoril.

—Olhem se avistam—tornou o moço—pela garganta d’estas duas quebradas, lá em baixo, uma casa, nas costas de um souto fechado? Alli nasceu minha mãi de uns lavradores remediados; e, logo que teve a idade, tomou conta da rez, e vinha todos os dias com ella para a serra. Aqui no cavo d’este penhasco é que ella comia a sua merenda; e, assim que o sol começava a descer, tambem ella descia ao valle.

—Sosinha?—atalhou Peregrina, com visagem de sústo.

—Sosinha com dous cães de gado, os quaes, assim que anoutecia, um tomava a dianteira do rebanho, outro ia á beira d’ella. Muito chorou minha mãi, ao morrerem-lhe de velhos os seus cães! Quando vinhamos á igreja, minha mãi sentava-se sempre ahi n’essa pedra, onde está a sr.ª Peregrina, e dizia a meu pai: «Olha, se te lembras, meu santo!» E ficavam-se a olhar um no outro com semblante alegre.

Ladislau cessou de dizer o quer que fosse que attentamente o padre e a irmã esperavam. Por mais curiosa e lhana, Peregrina perguntou:

—E que seria? Porque lhe dizia ella que se lembrasse?

O moço sorriu-se candidamente, e continuou:

—Meu pai estudava para padre, e já tinha ordens menores, quando encontrou aqui minha mãi, andando elle ás perdizes. D’ahi a pouco tempo estavam casados. Isto me contaram meus tios. É bem de ver que ella se lembrasse, quando aqui chegava, da primeira vez que se viram, depois que eram grandes. Em pequeninos tinham sido muito amigos; mas, como meu pai desde os doze annos começou a estudar com um tio vigario, e veio habitar na residencia de S. Julião, quando se tornaram a ver foi tamanho o amor que...

Ladislau susteve-se com feminil pudor.

—E foram muito amigos?—disse Peregrina.

—Tão amigos—respondeu o padre—que se amortalharam ao mesmo tempo.—E, erguendo-se, acrescentou:—Ora vamos lá por ahi abaixo.

D’alli até casa, Ladislau foi contando ao vigario os estudos que tinha feito com seu tio, os livros que lêra, e os que mais eram do seu gosto. No tocante ao intento de ordenar-se, nada tinha dito, quando padre João lhe perguntou:

—Segundo me disseram, o sr. Ladislau está na ideia de ordenar-se?

—Faz hoje um anno que morreu meu tio—disse o sobrinho do padre Praxedes.—Pouco antes de ir a Deus, me disse elle que esperasse um anno a inspiração do Espirito Santo. Agora venho de orar sobre a sepultura de meu tio, pedindo-lhe...

—Que o allumiasse no difficil transito—atalhou o vigario, e ajuntou logo:—E vem decidido a ordenar-se?

Peregrina, que os seguia com alguma distancia, como ouvisse aquella pergunta, insensivelmente estugou o passo para ouvir a resposta.

Ladislau respondeu:

—Ainda não.

E, como voltasse o rosto ao padre no acto de responder, e visse os olhos de Peregrina, fitos em si, e expressivos de anciedade intima, Ladislau recebeu dentro da alma uns tamanhos abalos de alegria que não pôde nunca mais topar delicias comparaveis ás d’aquelle momento.

Entraram no quinteiro da casa de Villa Cova.

Á porta da córte dos cevados estava uma mulher octogenaria, com uma varinha na mão, acommodando os recos, que brigavam em redor da pia.[2] Esta mulher que tinha setenta annos de serviço em casa dos Militões, quando o amo, Peregrina e o vigario entraram no quinteiro, deixou cahir da mão trémula a varinha, e benzeu-se murmurando: «em nome da Santissima Trindade, Padre, Filho e Espirito!»

Amen, disse padre João.

—Que tem vm.ᶜᵉ, tia Brazia?!—perguntou Ladislau.

—Ainda não estou em mim!—respondeu a velha Brazia, caminhando para o grupo, e formando com as mãos um sobreceu aos olhos para poder enxergar os recem-chegados; e proseguiu:—Cousa assim! Pois não me havia de parecer agora que via entrar por essas portas dentro... credo!...

—Quem lhe parecemos nós?—tornou Ladislau.

—Esta moça—tornou Brazia, aproximando-se de Peregrina—pareceu-me sua mãe, que Deus tem; o meu menino parecia-me seu pae, o santinho; e este sr. padre dava-me ares do sr. reverendo vigario Praxedes. Estou a vel-os como eram ha trinta annos, quando vinham da igreja, depois da missa do domingo, cá jantar a casa!

—Pois repare bem—disse o moço—que somos pessoas vivas, tia Brazia, e havemos de jantar para a convencermos de que não somos phantasmas.

—Pois sim, meu menino; graças a Deus ha muito quê; mas olhe que os servos estão todos por fóra, e eu não tenho pernas para andar atraz da gallinha. Cozinhal-a cozinho-a eu; mas pilhal-a isso ha-de ser vm.ᶜᵉ. E quem é essa mocinha tão bem posta e ageitada, benza-a Nosso Senhor?

—É irmã do sr. padre vigario, que está aqui.

—Ah! este é que é o sr. reverendo vigario? Bem me tinham dito que era ainda bem moço; mas isso não tira. Se a santidade fosse aquella dos velhos, então já eu estava no altar! Deite-me a sua benção, sr. reverendo vigario, e com Deus venha a esta casa d’onde sahiram tres santos só dos que conheci. Eu tenho dou carros de annos, aqui onde me vê, sanzinha e escorreita, bemdita seja Nossa Senhora.[3] Conheci, só á minha parte, o sr. padre Timotheo, o sr. padre Heitor, e o sr. padre Praxedes, afóra o santo pai do meu Ladislau, que morreu com o habito dos missionarios de Vinhaes.

Ladislau interrompeu Brazia, que ia sentar-se n’um feixe de vides para mais commodamente contar os successos alegres e tristes dos ultimos setenta annos da casa de Villa Cova. Pediu-lhe elle com brandura e graça que reservasse para depois de jantar as suas historias.

—Então vamos para dentro—disse ella—eu cá vou com a nossa menina mostrar-lhe a casa. Como é a sua graça?

—Peregrina.

—Por muitos annos e bons. Era melhor chamar-se Rosa, que é mesmo uma flôr; que Pelingrina tambem é bonito nome. Ora, pois, vá o menino apanhar a ave, que a panella vae já p’ro lume.

Ladislau e o vigario sahiram do quinteiro entraram na eira onde esgaravatavam as gallinhas. No entanto, Peregrina, como a velha se agachasse na lareira para espertar o lume amarroado, pediu-lhe que se assentasse no escabello, e a deixasse a ella cosinhar. Brazia cedeu ás instancias, repartindo o trabalho com a hospeda.

Ladislau entrou na cosinha com a ave, e viu Peregrina com um alguidar no regaço, cegando as couves. Estranhou a Brazia o estar a irmã do sr. vigario n’aquelle serviço, e a velha respondeu serenamente:

Ella assim o quer; e bem haja a moça! Estou-me a regalar de a ver! Parece-me mesmo sua mãisinha, quando aqui entrou pela primeira vez. O noivo estava lá no sobrado com os padrinhos e parentes, e ella desceu cá p’ra cosinha a ajudar as criadas.

—Pois sim—replicou Ladislau—mas minha mãi era dona da casa e esta senhora é hospeda.

—E por que não ha de ser dona? Se o não é, ella o será, querendo Nossa Senhora.

Estas palavras avermelharam as faces de ambos, que não poderam suster o relance de olhos que se trocaram.

—Pois então!—continuou a serva, cortando do presunto uma boa talhada.—A vida de padre boa é; mas não queira o Senhor que o menino seja padre. O que é preciso é casar, sr. Ladislau. Deus que lhe deparou esta creatura, lá sabe por que o fez. Vamos; é casar depressa, que eu não quero morrer sem ver gente miuda n’esta casa. O menino fez-me cabellos brancos, quando era pequeno (que a fallar a verdade eu já não tinha cabello preto nem para uma mézinha). Andava sempre a fugir p’ros campos, e eu a procural-o, e ia dar com elle a caçar grillos á torreira do sol: e de inverno andava sempre por essas fragas acima em risco de malhar aos fundões. Deu-me que fazer; mas é o mesmo: quero aturar tambem os seus filhos. Quando eu vim para cá, seu pae tinha cinco annos, e eu dez; se eu morrer, deixando cá um netinho delle, vou contente... Então não dizem nada?

Ladislau, sem a velha dar fé, tinha sahido envergonhado, e mais ainda por ver que a Peregrina, ao passo que Brazia fallava, descia o rosto sobre a hortaliça, voltando-o de modo a não ser visto de frente pelo moço, que por sua parte se estava tambem escondendo no mais sombrio da cosinha, até encontrar a porta por onde sahiu.

O vigario, estava esperando Ladislau, na vasta casa da livraria.

Havia muito que ver e admirar nas estantes dos numerosos sabios d’aquella familia. A bibliotheca fôra principiada no ultimo quartel do seculo XIV por um padre Vicente Militão, que fôra peregrino a Roma, e estivera no concilio tridentino, e lá fôra muito acceito, por seu saber, e reportadas virtudes, ao santo arcebispo de Braga, D. Bartholomeu dos Martyres. Encadernadas em pergaminho, com o Breviario do padre Vicente, lá estavam algumas cartas do primaz das Hespanhas, cartas magoadas revelando o peso das obrigações prelaticias, e outras mais de folga, datadas no convento de Vianna do Minho, onde o humilde principe da igreja se fôra a descançar, e morrer nas delicias «d’uma estreita cella, paredes nuas, em mezas sem panno, um candieiro de ferro pendurado de um prego, uma cama de frade ordinario sem cortina, nem genero de paramento sobre uma táboa de pinho.» Estas palavras de fr. Luiz de Souza recordava o padre João Ferreira, quando religiosamente deletreava os caracteres amarellados e meio delidos das cartas do arcebispo.

Voltando á livraria, os successores de Padre Vicente enriqueceram-n’a, empregando n’ella quanto dinheiro podiam amealhar, sem prejuizo dos pobres. Como quer, porém, que o rendimento de sua grande lavra sobre-excedesse o gasto, o remanescente era trocado por livros, enviados á escolha de entendedores monasticos, com quem os padres de Villa Cova, por amor da sciencia e piedosamente, entabolavam correspondencia.

Os tres ultimos sacerdotes d’esta familia não tinham comprado livro algum, desde os ultimos annos do reinado de D. João V, em que a religião degenerou de sua simplicidade em luxuosa, e, até certo ponto, hypocrita ostentação; e, de mais a mais, os que a tractavam moral ou dogmaticamente, escreviam-n’a em linguagem, que não era a de Domingos Feo, Thomé de Jesus, Heitor Pinto, Arraes e Lucena. Para bem aquilatarmos em qual grau de purismo classico andava a vernaculidade n’aquella serie de padres letrados, basta dizer-se que no frontespicio do primeiro volume dos sermonarios do padre A. Vieira, um padre Timotheo Militão escrevera: «Tambem este grande engenho está gafado!» A gafa de que se lastimava o escrupuloso idolatra dos aureos escriptores sem liga era aquelle geito de conceitista italico-hispano em que o preclaro jesuita, a espaços, se descuidava na oratoria.

Em quanto Ladislau e o vigario se entretem n’estas e semelhantes praticas, ingratas ao leitor de paladar mais delicado, Brazia está assim conversando com Peregrina, hombro a hombro, no escano da lareira, emquanto a galinha ferve:

—Brazia não seja eu, se Deus me não ha-de ajudar! Lá que os moços se querem, como eu á menina dos meus olhos, isso vou eu jural-o sobre umas Horas, sendo preciso! A menina é uma perfeição; o meu Ladislau é aquillo que alli está. Duas creaturas assim já vem lá de cima talhadas para serem uma da outra; e, quando acertam de se toparem no mesmo caminho, vão ambas p’ra direita, ou p’ra esquerda. Não tem remedio senão casarem-se.

—Pois sim—repetia Peregrina o que havia dito duas vezes:—Ainda hoje nos vimos, e já a sr.ª Brazia nos quer ver casados?

—Então a menina cuida que uma pessoa só se conhece por ser vista muitas vezes? Eu ouvia ler a Historia Sagrada á sr.ª Sebastiana, que sabia ler como um padre, e já lá está na corte dos bemaventurados... Rezemos-lhe por alma.

A sr.ª Brazia rezou alto, e Peregrina mentalmente.

Requiescat in pace,—disse a velha.

Amen,—respondeu Peregrina, e benzeram-se.

Brazia continuou:

—Pois como eu vinha dizendo, a Historia Sagrada conta que antigamente um moço sahia da sua terra em cata de outra terra, onde estava a noiva, que elle nunca vira. Batia á porta do sogro, pedia-lhe a filha e casava. Isto é que eram tempos, moça! «O coração não tinha peccado que fosse preciso descobrir com o tempo» dizia o sr. padre Praxedes, quando a irmã se admirava de casamentos assim de fugida. Olhe-me bem n’isto, que estas palavras teem muito que deslindar. N’aquelle tempo, a moça casadoura era por dentro como por fóra; via-se como á luz do meio dia o que ella lá tinha no seu interior: agora, pelos modos, é preciso espreitar muito tempo as inclinações das pessoas! O pai do sr. Ladislau era dos rapazes antigos: viu a menina lá em cima na lapa da Crasta, gostou d’ella, tornou lá a saber se ella o queria, foi ás Chãs aonde ao sogro; e, d’ahi a dias, já ella aqui estava a encher esta casa de satisfação. É como foi, e é como ha de ser! Senhor Jesus do bom despacho, não me deixeis ficar mal!

Ladislau e o vigario, chamados pela velha, desceram á cosinha, onde estava posta a meza. Jantaram alegremente e de vontade. Os dizeres de Brazia, tendentes todos ao casamento, assazoavam as singelas iguarias do vigario, que pondo os olhos, quer na irmã quer em Ladislau, reparava na gravidade com que em silencio escutavam as facecias da inquebrantavel velhinha.

—Será possivel que...

Disse entre si padre João, e cuidou ler no rosto do hospede e no rosto da irmã esta resposta:

—É possivel, e é certo.

Findo o jantar, sahiram a tomar o sol na eira.

Brazia, porém, puchou da batina ao vigario, chamou-o de parte, e disse-lhe:

—Deixe-os lá...

Padre João não achou que responder á velha, e fez menção de seguir sua irmã, que o estava esperando.

—Não vá sem me ouvir duas palavras, sr. reverendo vigario. Sente-se n’este tamborete, que eu vou dizer aos moços, que vão á sua vida, e nós lá iremos ter.

O dialogo deteve-se boa meia hora. Depois sahiram á eira; e o padre levava amparada no braço a velha, que jogava difficilmente os joelhos.

—Ora diga-me o que elles estão fazendo, que eu já não enxergo nada—murmurou a velha.

—Ladislau está apanhando flores na ribanceira.

—Vê?—acudiu Brazia—que lhe disse eu? Flores são amores... E ella que faz? Não anda tambem ás flores?!

—Não, tia Brazia. Está sentada.

—A enfiar algum annel de missanga?

—Tambem não.

—Não? Então é uma ingrata. Vou ralhar com ella. E, acercando-se com extraordinaria presteza de Peregrina, disse-lhe em tom de graciosa severidade:

—Vá fazer tambem um raminho, ande, menina, e dê-o ao sr. Ladislau.

Peregrina poz a vista timida no irmão. O vigario fez um gesto de consentimento. Ergueu-se ella a colher umas enfezadas flores silvestres e inverniças que se definhavam entre os silvedos, e Brazia, ao mesmo tempo, dava umas palmadas e tregeitava uns saltinhos de cegonha, muito para riso, senão justificassem a alegria que lhe acreançava os oitenta annos. Santa creatura para namorados era aquella Brazia! Estar ella dizendo tudo que elles queriam dizer-se; fazer-se lingua de corações á hora em que nem os proprios donos saberiam articular a linguagem d’elles; obrigar Peregrina a colher flores, quando a moça estava perguntando a si propria se parecia mal colhel-as e offerecel-as! E hão de rir-se pessoas, que amaram ou amam, da velhinha que tudo aquillo fez com tanto sizo e proposito e angelicas intenções!

Peregrina deu as suas flores a Ladislau, e recebeu o ramilhete d’elle. Qual dos dous tinha coração mais feminil? Pelo rubor da face não havia estremal-os.

—Onde iria a tia Brazia?—perguntou o vigario, vendo-a sahir açodada e regamboleando as rebeldes pernas pela eira fóra.

A velha pouco se deteve. Chegou esbofada. Chamou de parte Ladislau, e disse-lhe de modo que o vigario e a irmã ouviram:

—Esta argolinha de ouro deu-a seu pae á mãisinha na vespera de se casarem, e já foi de sua visavó. Aqui a tem. Vá dal-a á sua noiva, senão levo-lha eu.

Ladislau ficou atonito e immovel. O vigario sorriu, e disse á velha:

—Sr.ª Brazia, vm.ᶜᵉ está sonhando um alegre sonho. Deixe ver se o tempo, com a vontade de Deus, confirma os seus bons desejos, que serão tambem os meus.

Ladislau, como levado de insuperavel força, avisinhou-se de Peregrina e offereceu-lhe o annel. O vigario, abalado e commovido pela acção inesperada do mancebo, tomou a mão convulsa de sua irmã, e vestiu-lhe o annel. Depois, apertando nos braços o noivo de Peregrina, exclamou:

—Pois não é um sonho?

Accudiu Brazia:

—Qual sonho? O que eu quero é os primeiros banhos apregoados no domingo; e de hoje a um mez esta menina é minha ama.

—Sua amiga, sua filha!—disse Peregrina abraçando-a.

Assim foi. Na quarta dominga seguinte receberam as bençãos estas duas creaturas preordenadas para a felicidade da terra e ceu.

Os casamentos, que Deus escolhe, são assim determinados com uma singelesa, copiada dos tempos visinhos da creação de varão e femea, como entes necessarios a si, e de repente identificados por unidade insoluvel de almas. E então era o viverem tão sós e um, como quem de uma só vida tinham de prestar contas ao juiz supremo.

A mim parece-me que o cazar-se a gente devia ser como Ladislau e Peregrina. Andar annos com o coração em ancias é desvigorisal-o para quando elle é mais necessario. Pelo ordinario, os noivos que se amam longo tempo, cazam-se quando o mais fino da sensibilidade está desgastado na abstracção e na chimera.

O Bem e o Mal

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