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No quarto compartimento são punidos os impostores que se dedicaram à arte divinatória. Eles têm o rosto e o pescoço voltados para as costas, pelo que são obrigados a caminhar ao reverso. Virgílio mostra a Dante alguns entre os mais famosos, entre os quais a tebana Manto, da qual se origina Mântua, cidade natal de Virgílio.

NOVA pena convém dizer em versos

E dar matéria ao meu vinteno canto,

3 Do cântico onde punem-se os perversos.

Eu era já disposto tanto, quanto

Fora preciso para ver o fundo

6 Da cava, que banhava amargo pranto.

De almas vi turba, pelo val rotundo,

Que taciturna vinha e lacrimosa

9 Ao passo usado em procissões no mundo.

Mirei mais baixo e cada desditosa

Notei que fora o mento retorcido

12 Do colo ao começar: cousa espantosa!

Para o dorso era o rosto seu volvido:

Só recuando caminhar podia;

15 Que em frente olhar estava-lhe tolhido.

Talvez por força já de par’lisia

De alguém o corpo ao todo se torcesse;

18 Não vi: crê-lo difícil me seria.

Que te seja, Leitor, a Deus prouvesse

Proveitosa a lição! Pensa, atilado,

21 Quanto em mim, vendo, a compaixão crescesse,

O parecer humano tão mudado,

Que o pranto, que dos olhos derivava

24 Banhava o tergo a cada condenado.

Do rochedo eu a um ângulo chorava

Com tanta dor, que o Mestre de repente

27 — “Insensato és também?” — me interrogava.

“Aqui piedade é morte em toda mente:

Quando Deus condenou, quem mais malvado

30 Do que esse, que ternura por maus sente?

“Alça a fronte, alça, atento ao condenado,

Que ante os Tebanos se abismou na terra.

33 Gritavam-lhe: — Como andas apressado,

“Anfiarau? Como assim foges da guerra? —

Ele tombava entanto, ao val descendo,

36 Onde Minos os réprobos aferra.

“Pelo futuro penetrar querendo,

Tem o dorso adiante em vez do peito,

39 E a recuar caminha, atrás só vendo.

“Eis Tirésias, o que mudara o aspeito,

Femíneas formas e feições tomara,

42 Sendo-lhe o que era varonil desfeito.

“Ao sexo seu tornou, quando encontrara,

Inda uma vez, travadas serpes duas

45 E outra vez com bordão as separara.

“Volta-lhe Arons ao ventre as costas nuas:

De Luni em monte, aos agros iminentes,

48 Onde o Carrara ergueu moradas suas,

“Teve em gruta marmórea permanente

Estância, donde contemplar podia

51 As estrelas, as ondas livremente.

“Essa mulher” — continuou meu Guia —

“Que o seio oculta em traça flutuante

54 E de velos a pele tem sombria,

“Foi Manto, que vagara incerta e errante

Até pousar na terra, em que hei nascido.

57 No que ora digo irei um pouco avante.

“Vendo o pai já da vida despedido

E a cidade de Baco em jugo triste,

60 O mundo largo tempo há percorrido.

“Junto ao Alpes na bela Itália existe,

Além Tirol, já perto da Alemanha,

63 Um lago, que chamar Benaco ouviste.

“Veia de fontes mil, que a plaga banha

Entre Garda, Camônica e Apenino,

66 De águas conduz ao lago cópia manha.

“Ilha há no meio, em que o Pastor trentino,

E com ele os de Bréscia e de Verona,

69 Possuem de benzer juro divino.

“Onde é mais baixa do Benaco a zona,

A Bérgamo fazendo e a Bréscia frente,

72 Pesqueira, forte em bastiões, se entona.

“É dali que das águas o excedente,

Que ter em si não pode o lago, brota

75 Em rio e cobre os prados largamente.

“Quando prossegue, outro apelido adota,

Chama-se Míncio, perde o nome antigo:

78 No Pó junto a Governol, há fim sua rota.

“No verão à saúde traz perigo;

Em vasto plaino o álveo dilatando,

81 Forma paul, das infeções amigo.

“Manto, a virgem selvage ali passando,

Terreno viu desabitado, inculto

84 Naquele pantanal, que o está cercando

“Esquiva a humano trato e estranho vulto,

Fez ali de suas artes oficina

87 E viveu té sofrer da morte o insulto.

“Povo, ao diante, para ali se inclina,

Em torno esparso, e abrigo, o julga forte:

90 De águas cercado com pauis confina.

“Onde aqui o elegeu colhera a morte,

A cidade erigiram, que chamaram

93 Mântua, do nome seu sem tirar sorte.

“Os habitantes lá mais avultaram,

Quando ainda os ardis de Pinamonte

96 De Casalodis a insânia não fraudaram.

“Ciente fica, pois: se de outra fonte

A pátria minha originar quiserem,

99 A mentira à verdade nunca afronte”. —

— “As cousas, que tuas vozes me referem,

Tão certas são” — disse eu — “que me parece

102 Carvão extinto o que outros me disserem.

“Mais dize, ó Mestre: acaso não merece

Dos que avançam nenhum reparo ou nota?

105 Na mente de o saber desejo cresce”. —

— “Aquele, a quem do mento ao dorso brota

Barba esquálida, um áugur se dizia,

108 Quando de homens a Grécia tal derrota

Teve, que infantes só no berço havia.

Em Áulide com Calcas indicara

111 Tempo, em que a frota desferrar devia.

“Eurípilo chamou-se: assim narrara

Num dos seus cantos, a tragédia minha,

114 Bem sabes, pois tua mente a arrecadara.

“Esse, que, tão delgado, se avizinha,

Miguel Escotto foi, que, certamente,

117 Perícia em fraudes da magia tinha.

“Olha Guido Bonati, encara Asdente

Que cuidar só devera da sovela:

120 Arrepende-se agora inutilmente.

“Das tristes ora a turba se revela,

Que, desdenhando a agulha, a horrível arte

123 De encantos infernais acharam bela.

“Mas no limite, que hemisférios parte,

É Caim com seu fardo, o mar tocando,

126 Lá de Sevilha além do baluarte.

“A lua, a face plena já mostrando

(Te lembras?) ontem viste na sombria

Selva, em que te ajudou seu fulgor brando”. —

130 Assim falando, a passo igual seguia.

34. Anfiarau, que morreu no sítio de Tebas, e prevendo a sua morte tentara esquivar-se de tomar parte nesse sítio. — 40. Tirésias, adivinho tebano, que foi transformado em mulher e depois retornou homem. — 46. Arons, adivinho lembrado na “Farsália” de Lucano. — 55. Manto, filha de Tirésias, que a tradição diz ter fundado a cidade natal de Virgílio, Mântua. — 63. Benaco, hoje lago de Garda. — 95-96. Quando ainda etc. Pinamonte dei Bonacolsí para apoderar-se de Mântua induziu o governador Alberto de Casalodi a praticar atos violentos que revoltaram o povo contra ele. — 110. Calcas, adivinho da antiguidade. — 112. Eurípilo, outro célebre adivinho.— 116. Miguel Escotto, célebre adivinho do tempo de Frederico II. — 118. Guido Bonati, astrólogo do conde Guido de Montefeltro. — Asdente, sapateiro e adivinho de Parma.

Dante Alighieri: A Divina Comédia

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