Читать книгу A Estrutura Da Oração - Diego Maenza, Diego Maenza - Страница 10
ОглавлениеCircula no ar, evaporando-se gradualmente, fugindo, divertindo-se e depois espreitando com timidez, voltando a manipular o meu olfato com o seu poder e com a impertinência da sua aparição. Recebo a fragrância e sinto como se os músculos do meu rosto se esticassem num sorriso de prazer. Satisfaço a minha necessidade de sentir o cheiro, infiltrado nas minhas narinas, do ar balsâmico carregado, acalmo a pressa odorífica inalando mais fundo e perco-me no suor das flores. Ao abrir os olhos, a imagem do rosto do menino junto de mim, devolve-me à realidade dos meus olfatos rotineiros, pois ao cumprimentá-lo, recebo o ar que mudou o aroma das suas bochechas para o cheiro horrível do meu hálito matinal.
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Decidi que o menino deveria continuar de repouso, portanto, celebrei a missa sem a sua ajuda. Neste momento, a sua ausência parece-me mais tolerável. Justifiquei o movimento pendular do incensário, cujo fumo marcou a minha pele, com uma essência de resina. Agora vejo-o recostado contra o sofá, assoando o nariz num lenço caqui enquanto uma dose variada de desenhos em movimento transitam pelo ecrã. Vou para a rua, rumo ao mercado.
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Malecón está completamente deserta. A frescura do rio brinda-me com um cheiro de água doce que se mistura com o simples aroma das palmeiras que adornam os seus contornos. O trânsito está fraco. O mesmo beco de sempre me acolhe com o cheiro a cerveja, a urina implantada pelos cantos despreocupados, com postes manchados de pestilência. Acelero o passo enquanto observo o nome de um estabelecimento novo, escrito em letras maiúsculas e em itálico. “Um lugar de perdição, Senhor, e ainda por cima no meu beco favorito”.
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O mercado é um turbilhão de odores. Os legumes e as ervas aromáticas, os grãos e o marisco, os alimentos processados e as frutas, todos eles espalham uma extensa gama de sensações que invadem o olfato. Conduzo o meu corpo até à banca das especiarias. Fico impregnado com o cheiro da canela, dos cominhos, do cravo-da-índia, do pimentão-doce. Pago as especiarias com algumas moedas que Isaac, o vendedor, solteiro e com rosto carnudo, recebe em gesto de simpatia.
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Corto o robalo em fatias grossas que primeiro passo por água e depois, com a carne já limpa, passo pelo sal e pelo limão. Refogo e coloco a comida num prato de porcelana. O seu aroma é forte e apetecível, tanto que Tomás abandonou o seu posto diário de batalha para me controlar com a sua língua esfomeada ao pé da cozinha, facto que talvez contradiga o meu ceticismo sobre a capacidade do seu nariz. Moo as bolinhas de pimenta, os paus de canela, o cravo-da-índia e os cominhos. Adiciono vinagre. Um líquido lacrimal percorre-me os olhos e atiro as cebolas picadas para dentro da frigideira com o seu doce aroma. Acrescento o peixe com um pouco de xerez. Tapo e deixo a cozer em lume brando.
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Voltei uma vez mais a implorar pelo perdão divino. “Estou arrependido de ter pecado por pensamentos e palavras, atos e omissões. Senhor, acolhe este pobre pecador para que volte para o Teu caminho e possa ser salvo por Ti”.
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Ali estão eles, a dançar com alegria na podridão. Encantados com a sensualidade. A luxúria satisfaz-se na armadilha do regozijo carnal e na concupiscência. Os prazeres desonestos sublimam-se em peixes horrendos, em conchas abismais e outras merdas. Cabras, camelos, cavalos e aves ansiosas pelo gozo sustentado pela devassidão. O espaço fede a pecado, a luxúria. Corrompem o ambiente com uma praga emanada do lado mais negro do nosso ser. Deixo de observar o quadro e certifico-me dos poucos minutos que disponho para o descanso antes que os sinos comecem a tocar.
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Estou prestes a celebrar a missa com um enorme cansaço muscular. Bebo dois copos de água que abafam o ruído do meu fígado, ou pelo menos é isso que imagino, ou desejo. Coloco a batina. Sinto-me mais puro.
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O menino faz-me uma pergunta que me deixa pasmado. Obriga-me a retroceder até que caio vencido no sofá. Incentivo-o a sentar-se do meu lado. Concorda, mas não sem antecipar um gesto que me adverte da disposição de não transgredir o seu propósito. Acaricio uma mescla de cabelo que escorrega da sua cabeça e coloco-a atrás da orelha, lugar onde pertence. Sinto o seu olhar carregado de expectativa. Tento não dececioná-lo e digo-lhe que Deus é bom e misericordioso, que não o podemos conhecer fisicamente ou imaginá-lo com os perfis anatómicos aos quais estamos habituados, mas esta aula de catequese não satisfaz a sua curiosidade. Mostro-me forte. Digo-lhe a verdade, que é preciso amar a Deus mesmo sem conhecê-lo. Diz-me, com uma cara de derrota e resignação, que Deus é complicado. Só me sinto vivo ao experimentar o doce aroma a almíscar que fica impregnado no meu nariz enquanto ele afasta as suas nádegas do móvel. Chamo-o. Volta-se com um olhar luminoso, com aquele olhar que me incita a agarrar-lhe pelas bochechas e a satisfazer os meus impulsos. Mas peço ao Senhor que me ajude, porque a ele nada é impossível, e então, com as forças renovadas, encaminho o menino para o meu quarto. Digo-lhe que é um segredo. Revelo-lhe que conheço a Deus. E mostro-lhe.
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Deus não é pequeno, embora o pareça a olho nu. Está distante para poder ter uma maior perspetiva do mundo, é só isso. O seu olhar, como sabemos, é omnipresente. Sentado no seu trono, a sua cabeça está coroada por uma coroa e nas suas pernas, descansa o livro sagrado. As suas costas estão protegidas por uma longa capa imperial. Consigo vê-la agora, enquanto o Padre Misael me mostra esta pintura peculiar. A escuridão do quadro causa-me medo. Contudo, resisto. No horizonte, por trás da névoa que cobre o céu, fechado no vidro côncavo, está Deus, e consigo vê-lo. Agora já o conheço. E vejo o seu sorriso.
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Preparo-me para dormir com o cheiro perfumado que provém da sua nuca. Rezamos juntos, corpo a corpo, e pedimos a Deus que nunca nos afaste do seu caminho, a fim de nos poder exultar nos seus preceitos. Há algo no ar que me impede de respirar normalmente. Tenho a absurda premonição de que estou a ponto de cair num pesadelo do qual não poderei despertar. Lá fora, começou a chover, muito suavemente.
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A manhã está fria. A chuva refrescou o ambiente. Dormi tranquilamente, em paz com o meu espírito e protegido pela infinita misericórdia de Deus. Fico mais descansado por saber que os pesadelos terminaram o seu trabalho de tortura noturna e que deram espaço para uma trégua. O meu otimismo não me garante que os derrotei. Uma parte de mim, sabe que conseguirei sair desta batalha contra o demónio, mas outra, a mais frágil, indica-me a dimensão do meu fracasso, pois a cada momento a minha mente sucumbe à tentação e cada parte do meu corpo infringe essa lei que exige a minha alma.
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Decidi tomar um banho. Tive a sensação de impureza na minha pele, não só pelo fedor das minhas axilas, mas também pela montanha de obscenidades que carrego no pensamento. Devo estar purificado antes de subir ao altar. Refrescar-me um pouco não me fará mal, de modo que começo a ensaboar a minha pele. Também lavo a minha alma com orações.
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A temporada de inverno aproxima-se e já é possível sentir o seu cheiro. Qualquer mortal o pode fazer, mas sobretudo os seres que estão habilitados da melhor forma para tais necessidades. Por isso, Tomás, ao contrário do que o clérigo pensa, sabe disso melhor do que ninguém. Reconhece como alheio o aroma etéreo que destila o solo perto da amendoeira. Por isso demarca o seu território com frequência. A estação do verão, já a terminar, é vencida pela humidade elemental dos ciclos. O cheiro da terra emerge e inunda o portal com o seu éter. Os antigos diziam que o petricor era o sangue dos deuses, a essência que corria nas suas veias. Hoje não passa de um aroma aclamativo que, de vez em quando, e desde que a sua qualidade de fuga não se desvaneça, causa-nos um pequeno desconforto, sem nos apercebermos de que é e sempre foi, ao longo de várias épocas, o verdadeiro suor desta terra, o seu cheiro aflorado. Tomás o compreende. O seu nariz não se desgastou até ao ponto de o mundo lhe ser indiferente. Ele percebe alguma coisa de odores. Compreendeu algo na sua longa vida de cão. Por isso deixa de urinar na amendoeira e tende-se a uma postura mística rara, já derrotado pelo clima, sobre as folhas húmidas que formam um colchão natural. O seu olfato realçou-lhe a sagrada condição das estações. Agora, finalmente, uma nuvem esquiva brinda-o com um pouco de sol que a sua pele agradece.
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Encontrei um velho amigo no mercado. Tivemos uma conversa agradável, mas breve.
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A senhora Salomé chegou enquanto estive ausente. Explica-me, em forma de justificativa, as suas penúrias. Digo-lhe que evite as preocupações, que compreendo a situação e que tire a semana de folga. Insiste em preparar o almoço de hoje como forma de compensação pela futura ausência. Não irei implorar. Fecho-me no meu quarto enquanto a senhora cozinha e tiro uma garrafa de vinho do meu lugar secreto. Começo a beber com longos goles.
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A garrafa está a metade e deixo-a sem qualquer precaução sobre a mesa de cabeceira. O vinho ingerido provoca-me uma leve sensação de tontura que pretendo expulsar com uma chávena de café. Imploro por um banho de água fria, mas a senhora Salomé diz-me que a comida está pronta. Engulo a sopa com ressentimentos. O calor acalma o vazio do meu estômago, o estranho desconforto causado pela bebida. Levanto-me da mesa olhando para o menino que come e dirijo-me aos meus aposentos com uma enorme vontade de dormir.
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Entreabro os olhos e a primeira imagem que vejo é a do mundo. A minha bebedeira não é adequada para perscrutar as delícias imundas do seu jardim. Imagino o corpo nu do menino com verdadeira luxúria e depois volto a adormecer. Quando acordo, apercebo-me de uma posição incomum do lado direito do quadro pintado. Suponho que alguém tenha revisto a pintura. A senhora Salomé está proibida de entrar nos meus aposentos e sempre foi respeitosa, portanto a minha única suspeita recai sobre a curiosidade do miúdo. Não me irrita, mas também não me agrada a sua invasão. E então, sinto a pastosidade que manchou as minhas cuecas durante o sono.
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Hoje vieram menos pessoas à igreja do que ontem. No entanto, os meus sermões foram mais extensos.
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O último livro da Bíblia anuncia um inferno repleto de fogo e enxofre como condenação para aqueles que traem as leis do Senhor. Um inferno de fetidez, de vapores fedorentos, seria um tormento insuportável, mesmo para qualquer alma alheia às debilidades do corpo. Defeco calmamente e com alguma dor. O meu esfíncter expulsa um gás em forma de um guincho agudo. Cheira mal, mas aspiro-o, imaginando um tormentoso inferno pestilento, saturado de eflúvios fedorentos e, aqui sentado, o cheiro sobreposto à imaginação incita-me à náusea. Abro um pouco da porta, permitindo que circule um pouco de ar fresco que sacuda os miasmas excrementícios, o ar viciado que contaminou o meu organismo.
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Tomás fareja-me a perna, provavelmente por ter sentido o cheiro a sabão no meu corpo após o banho. Começa a emitir grunhidos desagradáveis. Puxa-me pelo tecido do pijama e rasga-o, inundando-o com a sua baba. “Cão feio”. Agora vejo-o afastar-se, satisfeito com a sua brincadeira. Tiro o pijama e vejo-me nu em frente ao espelho. Não resisto a fazer uma carícia à zona dos meus testículos. Um fluxo elétrico faz-me tremer. O meu pénis incha num tom vermelho-escuro. Ao reagir, afasto-me do espelho com horror. Tiro outra roupa e tento esquecer os meus desejos.
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O Sinédrio dos sentidos acolhe com agrado a proposta de trair a alma.
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Tiro-lhe a camisa com uma serenidade que nem parece a minha. Mas são as minhas mãos que despem o seu tronco. Deito-o com o rabo virado para a minha cara, que afasto imediatamente, corando instantaneamente. Acaricio as suas costas que provavelmente estarão a queimar com o fresco do mentol. Os seus pulmões já o sentem, tenho a certeza, pois as minhas mãos esfriam ao ritmo das massagens. Contemplo pela última vez o seu rabo perfeito de jovem dominante. Volto-o com o seu rosto virado para mim. Meto o mentol sobre os seus peitorais e aproveito para apalpar os seus mamilos tímidos que emergem sem ousadia. O cheiro forte do eucalipto penetra-me.
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Esta madrugada, ambos dormem com o ruminar da chuva a açoitar a rua. Nem o Padre Misael teve o sonho da faca, nem o jovem Manuel a visão da besta. Talvez tenham desaparecido de vez. Estamos no limiar de um novo dia. No centro da cidade, a chuva arrasta todos os pivetes da rua do bilhar. A chuva forte limpa a velha árvore do pátio. Durante as chuvas, alguns ingénuos afirmam que é Deus a chorar por todos os pecados da humanidade. A imagem mais acertada não estaria simbolizada pelas lágrimas divinas que caiem sobre o mundo, mas pelo chiado da urina que nos encharca, como o de Tomás, que agora descasca a casca da velha amendoeira. De uma forma ou de outra, afinal é do corpo do Deus imaterial que provem o líquido que nos lava.