Читать книгу Todas As Cartas De Amor São Ridículas - Diego Maenza, Diego Maenza - Страница 10
ОглавлениеCARTA DOIS
Na manhã em que acordei com a inesperada revelação que indicava que estava verdadeiramente apaixonada por ti, vi-me surpreendida. Se calhar não tenho a imagem precisa e não consigo descrever a sensação exata, mas na minha memória ressurge quase nitidamente, como um déjà vu à espera de ser capturado. Naquela altura era apenas uma amiga para ti, uma companheira circunstancial a que recorrerias nos teus momentos de monotonia como a distração mais apropriada para qualquer adolescente.
A outra manhã reveladora, quando sofri a tua epifania, foi quando me deste aquele beijo inocente. Quando cheguei a casa prostrei-me na rede e enquanto o vento curto do baloiço roçava-me o rosto feliz, a lembrança do teu toque provocava-me sensações quase epiléticas, em sacudidelas interiores como insetos a agitarem o meu peito ou como vermes doces a remexerem-se nas minhas entranhas.
As manhãs... Talvez sejam premonitórias, ou algo parecido com sinais. As manhãs no liceu não eram agradáveis se não te encontrasse no recreio, mesmo que fosse apenas para que da tua boca saísse um ou outro murmúrio, porque eu devia (como to disse alguma vez) tirar pouco a pouco as palavras de ti, uma metáfora realmente apropriada para definir a tua realidade quando eras um rapaz pálido e calado. O importante era perceber as nossas figuras sentadas na berma da calçada, com as minhas pernas juntas e as minhas mãos no meu colo, e captar os meus arrepios que interagiam com o ritmo dos teus movimentos, como dois estranhos magnetos que querendo atrair um ao outro se roçavam num baloiço de tensão. Naqueles dias comecei a apaixonar-me por ti, pelas tuas longas pausas de silêncio, pelo teu olhar projetado no horizonte em busca de ideias e que me incitaram a explorar o enigma da tua prudência.
Foi uma manhã que me esperaste sob aquela chuva torrencial. Insististe em ir ao encontro, não percebendo que o mais prático era evitar o dilúvio e adiá-lo até à saída do arco-íris. Eram as manhãs que nos reuniam no parque da aldeia, no canto que batizámos com um nome extravagante e que usaríamos como secreto em ocasiões posteriores, sempre tendo presente que cada casal o tinha alcunhado com um nome que se adequava à sua relação. Foi uma manhã em que roçaste os meus seios com o despudor das tuas hormonas. Foi uma manhã (quero sonhar assim) quando acariciaste as minhas nádegas sobre o tecido de uma calça de ganga demasiado odiosa.
Foi uma manhã quando fizemos amor pela primeira vez, apesar de que o nosso amor já estava feito muito antes disso. Talvez porque naquela altura só contávamos com esses espaços nas primeiras horas do dia, quando o amanhecer estava a despontar e acordávamos ansiosos de que chegasse o momento do encontro. E depois viriam as tardes, que pode que não fossem tão premonitórias, mas muito especiais, de facto. Quando se aproximava o meio-dia e eu alegremente preparava-me para os encontros na cidade.
O nosso amor ia amadurecendo, e com ele nós, estas vidas tristes e arrependidas por causa da distância, mas felizes porque apesar de tudo nos sentíamos próximos.
Lembro-me do tempo em que não tínhamos telefone e trocávamos mensagens graças a um caderno de apontamentos e a um cúmplice momentâneo. E depois de toda esta feliz recordação, lembro-me das nossas situações contemporâneas, estas que estamos a construir e a destruir. Um russo fala que até os grandes reformadores da sociedade foram criminosos, porque ao promulgar novas leis, aboliram as antigas que eram mantidas como sagradas. É por isso que digo que para continuar a construir temos de demolir algumas coisas, exorcizar as nossas falhas, praticar uma purificação na nossa relação de modo a não a deixar morrer.
Talvez eu não consiga perceber-te totalmente, é muito provável. Mas continuo aqui, a tentar dizer-te que quero interpretar os códigos das tuas angústias e que tomemos um caminho de mãos dadas. Talvez não uma solução radical e imediata, mas uma solução que sirva para ajustar o equilíbrio desta relação que está a cambalear como um castelo de cartas no assento de uma locomotiva a todo o vapor.
Esta carta é um símbolo do meu compromisso. Sinto-me desconcertada porque sei que exigi muito de ti e na tua circunstância, não foste capaz de satisfazer os meus caprichos, não porque não o desejavas, mas sim porque a natureza da tua tristeza absorveu-te e não pude advertir-te senão até agora, quando amanhece o dia após esta madrugada de angústia.
Talvez as manhãs sim sejam premonitórias. Porque justamente agora chega-me a imagem dum futuro hipotético, com o teu corpo cálido descansando junto ao meu num abraço matinal, num despertar cheio de sonho, quando o orvalho tenha destilado o suor sobre as ervas próximas e o primeiro crepúsculo do dia evidencie o calor que não será do sol, mas sim do nosso despertar.
Tua hoje, amanhã e sempre.