Читать книгу Empréstimo Mortal - Elizabeth Spann Craig - Страница 3

Capítulo Um

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Eu estava terminando de liberar o empréstimo de alguns livros de receitas para uma jovem mãe quando as portas da biblioteca se abriram e dois meninos encharcados passaram correndo pelo balcão de atendimento. Levantei imediatamente por conta do estado em que se encontravam.

– O que está acontecendo? – perguntei.

O menino mais velho estava tão ofegante que falou algo incoerente, e então o mais novo disse: – Tem um gato lá fora! Está no bueiro. Vai se afogar!

– Pode ir. Eu atendo o balcão – disse o outro bibliotecário.

Saí apressada, tentando acompanhar os meninos enquanto abriam a porta e saíam correndo para a chuva torrencial. Fazia algumas horas que chovia sem parar. Fiquei encharcada e senti um calafrio, observando a água correr em ondas pela calçada.

– Onde ele está? – perguntei aflita. Era quase certo que um gato não seria capaz de se segurar na vala de um bueiro por muito tempo com a quantidade de água que estava jorrando. Ouvi um forte trovão e estremeci.

– Aqui! Quando nossa mãe nos deixou, ouvimos um gato chorando – gritou o menino mais velho, que parecia estar recuperando o fôlego.

O bueiro ficava em uma área baixa de um lado do estacionamento e a água escorria para dentro dele. A última coisa que eu precisava era que as crianças fossem arrastadas pela correnteza. – Obrigada, meninos. Qual o nome de vocês?

Agradeci novamente quando eles se apresentaram. – Entrem e usem o telefone da biblioteca para ligar para a mãe de vocês e pedir que ela traga roupas secas.

– De jeito nenhum! – disseram os meninos em coro.

O mais velho, que parecia teimoso, acrescentou: – Ficaremos afastados, mas queremos ver o que vai acontecer.

Ajoelhei com cuidado para espiar o bueiro de concreto. De fato, havia um gato laranja preso dentro do cano. Ele me olhou com os olhos verdes astutos e soltou um miado parecido com um lamento.

Agora com a calça ensopada até os joelhos, me inclinei e estendi a mão para o gato. – Venha aqui, querido – sussurrei.

Os gato olhou para a direita, miou outra vez, mas não se moveu.

– Vamos, querido. Está seguro agora. Venha comigo. – Rastejei com cuidado para dentro do enorme bueiro, sentindo a água subir pelo meu corpo e mantive a mão firme na lateral do cano. Então parei e semicerrei os olhos enquanto olhava mais adiante. Havia um segundo gato dentro do cano preso entre folhagens, enquanto a água continuava fluindo cada vez mais rápido.

– Algum de vocês pode pedir ajuda na biblioteca? Tem outro gato aqui – gritei. – E peçam a um dos bibliotecários para trazer a lanterna que está no depósito.

Pelo que pude perceber de dentro do bueiro, os dois correram em direção ao prédio como se fossem uma pequena manada de elefantes.

Continuei tentando convencer o gato laranja a se mover. – É por isso que você não sair? Seu amigo está aí? Você é um bom amigo, querido.

O gato deu outro miado triste e senti um aperto no coração. Estremeci de novo e estendi a mão para os gatos. Nenhum dos dois se moveu.

Ouvi as crianças correndo de volta e desta vez havia vozes de adultos. Wilson, o diretor da biblioteca, vinha apressado em minha direção, segurando uma lanterna e um ancinho. Ele sempre teve uma aparência distinta, com cabelos prematuramente brancos, óculos sem aro e o mesmo estilo de terno. Uma senhora idosa muito elegante, nossa cliente eventual, vinha logo atrás, segurando um guarda-chuva aberto e outro fechado.

– Por que trouxe o ancinho? – perguntei.

– As crianças disseram que os gatos estavam presos nas folhagens. O zelador achou que podia ser útil – respondeu Wilson, me entregando o ancinho.

– Boa ideia. Embora eu ache que o ancinho vá assustá-los ainda mais. Vou ter muita dificuldade em alcançá-los do jeito que estão.

– Use isto. Também é do zelador. – Ele tirou algo de dentro da capa de chuva e me entregou.

– Perfeito! Me lembre de dar um beijo nele em agradecimento. – Apoiei o ancinho na perna enquanto pegava o par de luvas de couro.

– Vou tentar protegê-los da chuva – disse a senhora com propriedade.

Era tarde demais para isso, mas fiquei agradecida. Pelo menos os meninos, aparentemente não querendo ficar ainda mais molhados do que já estavam, se amontoaram com ela, sob o guarda-chuva. – Depressa! – implorou o mais velho.

Wilson e eu olhamos para dentro do bueiro novamente. O gato laranja me olhou com tristeza e virou a cabeça para olhar para o outro gato e depois voltou a me olhar, com uma expressão desesperada.

– Muito bem – falei, fingindo uma confiança que não sentia. – O plano é o seguinte… Vou tentar tirar o gato que está mais afastado primeiro. Acho que o gato laranja não vai sair sem o outro, mas como estão muito longe, vou usar o ancinho para puxar um pouco da folhagem.

– Devagar – disse cliente, saindo debaixo do guarda-chuva para em seguida se abrigar outra vez ao ser era atingida pelas gotas.

– Vou tomar cuidado – disse baixinho. Afinal, era apenas mais um dia normal na vida de uma bibliotecária em Whitby, Carolina do Norte.

Abaixei e sorri, na esperança de fornecer algum conforto para os gatos antes de me sentir completamente ridícula. Será que gatos reconheciam expressões faciais? Em vez disso, disse apenas: – Muito bem. Aguentem firme!

O gato laranja confiou em mim e se agarrou firme. O outro gato, ainda parcialmente visível, gemeu de angústia enquanto eu me arrastava bem devagar para dentro do bueiro, o máximo que podia e mais devagar ainda, estendi o ancinho para a folhagem. Finalmente, depois do que pareceram horas, consegui enganchar o ancinho atrás da pilha de galhos, palha de pinheiro, lixo e gravetos e puxar com cuidado na minha direção. Depois fiz o mesmo do outro lado, conseguindo trazer toda a sujeira alguns metros mais perto.

Ainda assim, eu precisava me aproximar mais. Desisti de continuar agachada e deitei de barriga para baixo.

– Posso segurar seus pés – disse Wilson com relutância, olhando para o terno impecável como se estivesse se resignando a mergulhá-lo na água do ralo. – Não preciso que um dos meus bibliotecários seja arratado pelo sistema de drenagem pluvial. – Ele pressionou os lábios. Trabalhei com vários diretores, mas nunca com um tão tenso quanto Wilson.

– Acho que consigo dar conta – falei, imaginando cair de cara no chão durante o processo, considerando que eu não era uma pessoa com ótima coordenação motora. A essa altura, parecia uma boa ideia acalmar Wilson tanto quanto os pobres gatos. – Mas pode tentar me agarrar se eu começar a flutuar? Não acho que a folhagem me impediria de ser arrastada.

Wilson se abaixou na entrada do bueiro, pronto para agarrar minhas pernas se fosse necessário. E, para piorar, a chuva ficou ainda mais forte.

Rastejei em direção aos gatos, falando baixinho. Acariciei de leve o gato laranja, que ronronou, mas permaneceu firme no galho. Voltei a atenção para o outro animal, estendendo a mão. Seus olhos eram enormes, e eu estava preocupada que estivesse ferida e pudesse atacar em defesa. Tirei uma luva para fazer cócegas em seu queixo peludo e ela semicerrou os olhos em retribuição. Recoloquei a luva e continuei deslizando para a frente na água que jorrava.

Quando consegui me erguer o suficiente, coloquei as duas mãos sob as patas dianteiras. Ela deu um miado tão alto que me fez estremecer. As crianças e a cliente também se assustaram.

– Temos uma gata ferida. Alguém pode ligar para um veterinário?

– Vou ligar agora – disse a senhora, a voz ansiosa.

Embalei a gata com cuidado em meus braços e comecei o estranho processo de retorno. Desta vez, sentei no chão do bueiro e avancei um centímetro por vez, com a água quase no peito. Virei para olhar o gato laranja, que agora parecia mais relaxado e feliz. Não pude deixar de sorrir quando ele deu um pequeno miado. Era encantador.

Quando consegui sair, os meninos e a senhora comemoraram. Wilson pareceu aliviado por não ter que entrar com um pedido de indenização por invalidez.

– O veterinário está a caminho – disse a senhora.

– Wilson, pode segurar esta gata enquanto volto para pegar o outro? Ela pode ficar na sala de convivência. Tenha cuidado, acho que a pata está machucada.

Ele fez que sim com a cabeça e a coloquei em seus braços. A gata estava com a respiração pesada.

– Vocês têm toalhas velhas ou qualquer coisa para deixá-la confortável até o veterinário chegar? E também para secar a coitadinha – perguntou a senhora.

Wilson sorriu com os dentes cerrados quando a gata malhada lhe arranhou o ombro em defesa quando ele a acomodou no colo. – Vou ver o que posso encontrar no armário dos produtos de limpeza.

Abri caminho outra vez em direção ao bueiro enquanto Wilson voltava para a biblioteca. O gato laranja estava alerta e parecia querer me ajudar enquanto a chuva continuava jorrando através do cano. – Você consegue… – sussurrei. Quando estendi os braços, ele se lançou sobre mim e aninhou a cabeça peluda encharcada no meu pescoço. – Oi, docinho – sussurrei. Então rastejei de volta com cuidado, para mais aplausos.

– Vou ver se Wilson encontrou as toalhas. Caso contrário, posso correr até a loja de utilidades e comprar toalhas de mão – disse a cliente e em seguida, saiu trotando, carregando o guarda-chuva.

O guarda-chuva não era mais necessário porque os meninos e eu estávamos encharcados até os ossos, assim como o gato laranja. Não poderíamos ficar mais molhados do que já estávamos. Os meninos estenderam a mão para acariciar o gato, que ronronou alto.

Corremos de volta para dentro do prédio e descobrimos que nosso progresso havia sido descoberto por todos na biblioteca. As pessoas observavam pelas muitas janelas do prédio e nos aplaudiram quando entramos. – Uma salva de palmas para nossos heróis de hoje: Noah e Mason!

Os meninos, encantados com os aplausos, fizeram reverências.

– Filmei o resgate no celular! Vou marcar a biblioteca e postar na internet – disse uma das clientes.

– Isso seria incrível! – Sorri em agradecimento. Nada como um adorável casal de gatos em um vídeo cheio de ação para movimentar para as redes sociais da biblioteca.

Wilson desenterrou o que pareciam ser toalhas de praia antigas e fez o possível para secar a gata ferida. Ele me entregou uma toalha e começou a secar o gato laranja, que ronronava em agradecimento.

– Posso ir buscar um pouco de ração de gato e uma caixa de areia – disse outro cliente que observava em silêncio perto da entrada.

– Seria ótimo. O veterinário está a caminho, mas não tenho certeza de quanto tempo os gatos precisarão ficar aqui. Mesmo que os dois precisem passar a noite na clínica, é bom termos um pouco de ração e areia.

Wilson ergueu as sobrancelhas quando o cliente se afastou. – Muito bem, Anne. Qual é o objetivo de tudo isso?

Me inclinei para fazer cócegas sob o queixo da gata malhada. A última coisa que eu queria era assustar Wilson, mas aquilo era uma excelente ideia. A Biblioteca Whitby seria um lugar incrível para um gato morar. Em vez disso, falei: – O que você acha? Ainda não tive a chance de pensar a respeito. Estava preocupada em tirar os gatos do bueiro.

Wilson me olhou por cima dos óculos enquanto terminava de secar o gato laranja. – Devemos nos concentrar em encontrar bons lares para eles.

– Por acaso você não estaria precisando de um gato de estimação? – perguntei de forma descontraída quando o gato laranja rolou de costas e ronronou.

Wilson não percebeu que eu estava brincando e empurrou os óculos para cima do nariz, impaciente e franziu a testa. – Não preciso de um gato. De jeito nenhum. Mas você provavelmente precisa, não é, Ann? Morando sozinha…

– Se eu quisesse ver o gato, teria que mantê-lo aqui. Passo praticamente todos os dias e finais de semana na biblioteca. Um gato seria bastante negligenciado na minha casa – bufei.

Wilson suspirou. – Está bem. Vamos fazer o seguinte… Deixamos o veterinário levar os gatos para a clínica e os traremos de volta para cá depois que estiverem medicados e postaremos fotos para tentar encontrar um lar para eles.

Estendi a mão e acariciei o gato laranja. – Perfeito. Vou tentar convencer os clientes que demonstrarem interesse, já que conheço a maioria deles.

Wilson se levantou, tirando o pelo de gato da calça, parecendo aliviado. – Está resolvido, então. Espero ter orçamento para pagar o veterinário.

Um dos outros bibliotecários abriu a porta do salão e apresentou a veterinária, que carregava duas caixas transportadoras de gatos. Wilson e eu nos apresentamos e gesticulei na direção da gata malhada: – É aquela que parece estar ferida.

A veterinária a examinou com delicadeza e assentiu. – A pata está quebrada. Vou precisar levá-la para a clínica. Ela se ajoelhou ao lado do gato laranja, o acariciou e conversou com ele enquanto o examinava. – Esse rapaz parece estar bem. É jovem e forte. Se eu tivesse que arriscar um palpite, diria que a gata ferida é a mãe dele.

Aquilo me surpreendeu. Havia algo nos animais que sempre me impressionou. – Ele não a abandonaria. Eu ainda não tinha visto a gata malhada e o gato laranja estava determinado a não sair até que a ajudássemos.

A veterinária se levantou e disse: – Parece um gato muito especial. Vou levá-lo também. Quero verificar se têm microchips de rastreamento e vaciná-los. E castrá-los, é claro, se ainda não tiverem sido esterilizados.

Wilson estremeceu um pouco, como se estivesse imaginando qual seria o valor da conta de todos os cuidados veterinários.

– Perfeito. Muito obrigada. – Fiz uma pausa. – Os gatos parecem muito apegados. Não tem problema separá-los?

– Acho que podem ser apenas as circunstâncias em que se encontraram. Normalmente, os gatinhos são separados de suas mães com cerca de dez a doze semanas de idade. O gato laranja é mais velho, provavelmente um ano a mais. Se te deixa mais tranquila, podemos reuni-los depois e ver o que acontece. E também monitorar como se comportam quando estão separados um do outro.

– Boa ideia. Muito obrigada. Não quero criar nenhum problema para essas doçuras.

A veterinária sorriu. – Não é problema. E não cobrarei pelo atendimento. Estou grata por você ter se arriscado e resgatado esses gatos.

Wilson agora parecia alíviado, o que me fez sorrir também.

– Tudo isso em apenas um dia de trabalho normal para um bibliotecária – brinquei. E eu não estava brincando. Nunca sabemos o que pode acontecer na biblioteca. Exceto que, na maioria das vezes as aventuras giravam em torno de uma copiadora emperrada e uma história entediante.

– Amanhã trago de volta o gato laranja – disse a veterinária, enquanto os colocava cuidadosamente nas caixas de transporte. – E talvez a gata malhada. Se ela estiver melhor.

– Tão rápido? – perguntei, franzindo a sobrancelha. Imaginei que os gatos precisariam de uma grande cirurgia, mas já tinha ouvido falar de pessoas que implantam marcapassos em consultórios, então…

– Ele vai ficar bem e estará dormindo por causa da anestesia. A gata malhada também. Precisam apenas de repouso. Tenho a sensação de que isso não será um problema aqui – acrescentou a veterinária, com um brilho nos olhos.

Wilson bufou. – Quando foi a última vez que esteve em uma biblioteca? Este lugar é um zoológico na maioria dos dias. Mesmo sem gatos.

A veterinária franziu a testa. – Prefere que fiquem comigo na clínica enquanto tento encontrar um lar para eles? Ou talvez trazer apenas o gato laranja de volta? Isso tornaria as coisas mais fáceis?

– Por que não traz a gata malhada de volta como uma solução temporária? Talvez possamos tentar descobrir se pertencem a alguém. Na pior das hipóteses, vou ver se um de nossos clientes pode adotá-la – disse Wilson.

– Parece uma boa ideia. E, mais uma vez, não vou cobrar pelos cuidados médicos.

Wilson levou a mão à testa como se tivesse começado a ficar com dor de cabeça.

– Vou tirar algumas fotos e colocar nos quadros de avisos para ver se alguém os reconhece – falei.

Wilson fez uma careta. – Talvez tivesse sido melhor tirar a foto quando estavam aconchegados nas toalhas de praia e não agora que estão encolhidos nas caixas de transporte.

– Vou abrir a porta das caixas e usar o flash – expliquei. Tirei uma foto com o celular e olhei o resultado. – Nossa! – Tentei outra vez. – Tudo bem, está um pouco melhor. Independentemente disso, se as fotos não ajudarem a encontrar o verdadeiro dono, então ela pode ficar aqui na biblioteca enquanto se recupera e tenho certeza que alguém vai adotá-la.

Wilson e a veterinária pegaram as caixas e foram para o estacionamento enquanto eu pegava as toalhas e as colocava em um saco de lixo para lavá-las em casa mais tarde. Em seguida, imprimi panfletos escrito ‘Encontrado’ com as fotos dos gatos e os coloquei em vários lugares da biblioteca. Depois disso, como meus pés ainda estavam chapinhando nos sapatos, voltei para a sala de convivência.

Wilson voltou alguns minutos depois e me olhou em silêncio enquanto eu tirava os sapatos e tentava enxugá-los inutilmente com toalhas de papel.

– Acho que está esquecendo alguma coisa.

Aquelas palavras me fizeram prender a respiração. Se havia uma coisa que eu odiava era estar atrasada ou esquecer algo. – O quê? Não me diga que temos alguma leitura para crianças hoje à noite.

– Você tem aquele encontro às cegas esta noite – disse Wilson com uma risada. – Esqueceu que pediu para sair mais cedo? Não quer ir para casa se arrumar?

– Nããão! Esqueci completamente. – Uma coisa sobre ser solteira aos trinta e poucos anos é que havia muitos clientes bem-intencionados morrendo de vontade de lhe arranjar um namorado. Era fofo e ao mesmo tempo frustrante. – Tenho uma roupa aqui na biblioteca para usar em caso de emergência – respondi no modo automático.

– Não duvido. Sei como você é organizada. Me perdoe por dizer isso, mas seu cabelo e maquiagem estão deixando muito a desejar. Não estão apropriados para um encontro. É até discutível se estão apropriados para trabalhar em uma biblioteca.

Me estiquei para me olhar no espelho sobre a pia da sala de convivência. Wilson tinha toda razão. Meu cabelo, preto e com corte na altura dos ombros, estava preso no alto da cabeça, e as pontas ainda pingavam água da chuva na minha blusa preta e calça cáqui, já encharcadas. O rímel e delineador tinham escorrido, me fazendo parecer um guaxinim. Isso sem mencionar as pegadas enlameadas e pelos de gato por toda a minha roupa.

Sorri para Wilson. – Na verdade, isso é perfeito. Agora posso assustá-lo e não preciso ir a um segundo encontro.

Wilson bufou e balançou a cabeça. – Está está sendo boba, Ann. Esse homem pode ser alguém com quem você possa ter um relacionamento de verdade.

– É um encontro às cegas. Nada de bom surge de um encontro às cegas. Acredite, eu sei o que estou dizendo. Poderia escrever um livro sobre esses encontros, já fui a vários. Choveu o dia inteiro e tudo que quero fazer é ir para casa, vestir meu pijama e me aconchegar na cama com um livro. Além disso, não estou com a mínima vontade de dar uma chance a um relacionamento agora. Estou com trabalho demais na biblioteca.

– Sempre temos trabalho demais na biblioteca. Se está esperando que isso mude, ficará solteira por muito tempo. Você está com 30 e poucos anos. Sei que costuma ter encontros, mas nunca a vejo ter segundos encontros. Não é ruim ser exigente, mas ás vezes parece que você está se enterrando na biblioteca em vez de se aventurar em busca de alguém com quem aproveitar a vida.

– Você está parecendo algumas das nossas clientes idosas. E os caras do clube de cinema da biblioteca – disse, erguendo uma sobrancelha.

– Além do mais, aquela cliente foi gentil em marcar um encontro, não acha? – perguntou Wilson, ignorando o meu comentário.

Suspirei. – Emily é um doce. Ela não consegue evitar essas coisas, mas tenho a sensação de que está pensando mais no sobrinho-neto do que em mim. Acho que esse encontro será um desastre. Mas você tem razão, talvez eu esteja inconscientemente tentando sabotá-lo.

– Como seu diretor, estou mandando você ir para casa se arrumar. – Ele fez uma pausa e continuou com uma rara demonstração de gentileza: – Temos ajuda de sobra hoje. Vai ficar tudo bem. E amanhã vamos receber a nova bibliotecária infantil, então teremos ainda mais ajuda.

Sorri. – Entendi. Está bem, vou embora. Estou levando as toalhas de praia molhadas para lavar. E você tem toda razão: será fantástico ter uma nova bibliotecária amanhã.

– É claro que vai. E você se saiu muito bem com as leituras infantis.

Contive um sorriso. É óbvio que não acreditei no que ele disse.

– Obrigada. Mas não acho que trabalhar com crianças seja exatamente o meu dom. – Eu estava empolgada com a literatura infantil. Adorei a experiência, desde Babar, o elefante até Don't Let the Pigeon Drive the Bus. Mas de alguma forma, as crianças sempre pareciam inquietas quando eu era a responsável pela leitura das histórias, posição que ocupei durante vários meses enquanto Wilson lutava para preencher o cargo de bibliotecário infantil.

Carreguei o saco de lixo com as toalhas de praia molhadas até meu velho Subaru e fui para casa. Felizmente, a minha casa ficava a apenas alguns minutos de distância, não que houvesse algum lugar muito longe em Whitby. É um belo vilarejo nas montanhas, com muitos edifícios antigos e árvores ainda mais antigas. É o tipo de lugar onde as famílias passam férias para fugir da cidade e ver as folhas de outono em Blue Ridge Parkway. Há também um lago tranquilo, próximo ao parquei, perfeito para pescar e relaxar em tardes preguiçosas.

Minha casa era mais um chalé, embora eu adorasse o lugar. Depois que minha mãe morreu, quando eu era bem pequena, minha tia-avó me acolheu e me criou lá. Quando ela faleceu há cinco anos, deixou a casa para mim. Havia uma profusão de roseiras, gardênias e azáleas. Vinhas floridas subiam pela fachada de pedra, dando a impressão de ser uma cena extraída de um livro de histórias. O que, como bibliotecário, me convinha perfeitamente.

Na maior parte do tempo, eu amava meu bairro. Era uma rua de casas antigas, mas com muita personalidade. Algumas eram casas de artesãos, o que achei muito legal. Todos tentavam manter o mesmo estilo de jardinagem, com graus variados de sucesso.

Tive sorte porque minha tia plantou um jardim incrível e a minha única tarefa era mantê-lo. Eu sempre pensava nela quando o admirava. As lembranças costumavam me dar uma pontada no peito, mas agora finalmente me faziam sorrir. Demorou um tempo até me acostumar com a sua ausência.

Durante a semana, passo algum tempo cuidando do jardim, mesmo que a princípio não soubesse o que estava fazendo. Melhorei bastante depois de consultar alguns livros e revistas na biblioteca, e mais ainda quando convidei um funcionário do condado para dar uma palestra sobre cuidados com arbustos e flores. Eu ainda tinha planos de um dia plantar uma horta no quintal, como minha tia costumava fazer todos os anos. Porém, depois de uma avaliação honesta da minha disponibilidade de tempo, resolvi deixar essa ideia de lado.

Havia apenas duas pessoas na rua que me incomodavam, e de maneiras diferentes. Uma delas era Zelda Smith, uma mulher mais velha, com cabelos ruivos tingidos de henna, e que fumava sem parar.

A outra pessoa era um cara que tinha acabado de se mudar. Ele parecia descontraído, espirituoso, bonito e tinha um olhar que me fazia derreter. Até então, eu nem tinha falado com ele, mas já o tinha visto interagir com outros vizinhos.

Parecia que o desafio hoje seria Zelda. Eu estava pegando a correspondência quando de repente ela se materializou do outro lado de um arbusto.

– Aí está você! – disse ela, com a voz rouca de fumante, me fazendo pular.

– Sra. Smith! – falei em tom de repreensão. – A senhora me assustou.

– Desculpe – disse ela, embora o brilho em seus olhos demonstrasse o oposto. – É muito difícil encontrá-la em casa.

– É porque raramente fico em casa – falei, tentando manter o tom leve. – Normalmente, estou na biblioteca. Já mencionei isso antes. A senhora é mais que bem-vinda para me encontrar no trabalho, se precisar falar comigo.

Zelda fez uma careta. – Eu não leio.

– Há vários outros motivos para ir à biblioteca. Temos ótimas áreas de estudo. E a senhora também pode ouvir músicas ou assitir filmes. Ou até mesmo fazer uma aula. Temos algumas opções interessantes. Ficarei feliz em lhe mostrar todas possibilidades que a biblioteca oferece. Temos alguns serviços fantásticos – continuei, de forma educada.

Era inevitável tentar convencer as pessoas à frequentar a biblioteca. No entanto, a minha propaganda não estava surtindo o efeito desejado. Zelda agora parecia ainda menos inclinada a visitar o local.

– Agradeço, mas não tenho interesse – disse ela, em tom de indiferença. – Queria falar com você sobre a associação de moradores.

Aparentemente, a missão de vida de Zelda era me pressionar para fazer parte do conselho da associação de moradores do bairro.

No entanto, isso não estava nos meus planos. Se eu não tinha tempo para plantar uma horta, certamente não teria tempo para participar da associação de moradores. Além disso, vários vizinhos reclamaram comigo sobre o conselho e suas políticas intrusivas.

Todos concordavam com muitas das regras, como ensacar o lixo, recolher as lixieras após a coleta e manter os pátios limpos. Mas também decidiram sobre a construção de casas. . . se eles tinham permissão para construir um deck ou uma varanda ou até mesmo uma casa na árvore no quintal. Isso pareceu irritar meus vizinhos e foi outro motivo pelo qual eu não queria ter um lugar no conselho.

– Acho que já discutimos isso, Sra. Smith. Reconheço a importância da associação, mas o conselho merece ter um membro que tenha tempo para se dedicar e continuar a fazer um bom trabalho. Eu simplesmente não tenho tempo para isso. Trabalho em horário integral, tanto à noite quanto nos finais de semana. E não assumo um compromisso a menos que tenha certeza que farei um ótimo trabalho.

Zelda Smith estreitou os olhos. – É a sua vez, Ann. Sua falecida tia, que Deus a tenha, era uma lenda no conselho. Que dom ela tinha! E tenho certeza que ela gostaria que você assumisse a posição.

A menção à minha tia foi um golpe baixo. – Não acho que ela gostaria que eu desperdiçasse todo o meu escasso tempo livre, Sra. Smith. Gostaria de poder falar mais sobre esse assunto, mas preciso ir. – Hesitei por um momento. Como bibliotecária, meu único foco sempre foi ajudar as pessoas. Era muito, muito difícil alguém pedir ajuda e eu não colaborar. Então, disse: – Temos um novo vizinho na rua. Não sei o nome dele, mas talvez ele esteja interessado em fazer parte do conselho.

– Aquele jovem? – A expressão de Zelda indicava sua opinião sobre a juventude em geral. E também mostrou que ela não me considerava parte daquele grupo, embora eu tivesse certeza de que eu e o rapaz tínhamos mais ou menos a mesma idade. – Alguém me contou que ele era DJ. – Ela pronunciou as palavras como se música fosse algo potencialmente venenoso.

– Não o conheço – acrescentei. – Apenas pensei que talvez valesse a pena contatá-lo. – Peguei minhas chaves e caminhei até a porta da frente com determinação. – Até logo, Sra. Smith.

Destranquei a porta e a abri com um suspiro de alívio, acendendo algumas luzes ao entrar. O ambiente alegre nunca deixava de me fazer sorrir, as poltronas e o sofá com estofado de algodão, os tapetes multicoloridos e as paredes repletas de livros.

Optei por um banho rápido, mais para me sentir aquecida depois de ter passado tanto tempo na chuva e ficado com as roupas encharcadas. Vesti uma calça preta e uma blusa cinza com manga três quartos. Prendi o cabelo em um rabo de cavalo frouxo, coloquei pequenas argolas de prata e o medalhão de ouro que sempre costumo usar. Parecia que eu estava prestes a voltar ao trabalho, mas queria usar algo conservador para o encontro que a cliente da bilbioteca havia marcado. Encorajar o rapaz não estava nos meus planos, apesar dos lembretes de Wilson para manter a mente aberta. Pelo menos uma coisa boa aconteceu: a chuva finalmente parou.

Não pude deixar de suspirar enquanto voltava para o carro. Teria sido tão bom ficar em casa, vestir roupas de ioga confortáveis, esquentar algumas sobras da noite passada e terminar de ler O Alquimista, que de alguma forma, eu nunca tinha tempo de ler. Então, disse a mim mesma para me controlar. Era apenas um encontro e isso deixaria Emily feliz. Além disso, era provável que meu pretendente estivesse tão relutante quanto eu. Talvez fosse algo que nos faria rir. Tentei lembrar o nome dele. Roger. Roger Walton. Repeti baixinho algumas vezes para ter certeza de que estava gravado em meu cérebro.

Uma coisa que achei bem estranho foi ele ter me convidado para jantar em sua casa. Se havia algo que aprendi durante minha longa e desastrosa experiência de namoro, foi que encontrar alguém para tomar um café ou almoçar era mais seguro. Rápido o suficiente para que você não se sentisse presa, mas longo o suficiente para se ter uma ideia de quem era a pessoa em questão. Isso me fez pensar se Roger não namorava há algum tempo. Talvez tenha se divorciado recentemente ou terminado um relacionamento longo. Emily, sua tia-avó, não havia fornecido muitas pistas.

Parei em frente a uma casa grande com um jardim bem cuidado. Parecia um daqueles projetos onde constroem uma casa enorme em dois lotes pequenos. O sol tentava aparecer por entre as nuvens, e eu podia ver os tons de roxo e cor-de-rosa do pôr do sol que se aproximava sobre os picos das montanhas. Saí do carro, alisando as roupas e os fios rebeldes do rabo de cavalo. Suspirei enquanto caminhava pela calçada em direção à casa. Emily tinha boas intenções e foi gentil em armar um encontro para nós dois. Mas nunca consegui entender por que todos estavam tão determinados a forçar pessoas solteiras a namorar. Respirei fundo, toquei a campainha e esperei, sentindo um friozinho na barriga.

Depois de um minuto, toquei a campainha outra vez, hesitante. Eu não queria parecer ansiosa, mas era a hora marcada que combinamos. Não era? Franzi a testa e verifiquei o celular para reler a mensagem de texto, caso eu tivesse enlouquecido. Mas lá estava… Às18h. Na casa dele.

Talvez a campainha não estivesse funcionando. Bati na porta alguns segundo depois, me mexendo de modo desconfortável e começando a me sentir uma idiota parada na porta por tanto tempo.

Então respirei fundo. Era cheiro de carvão? Talvez Roger estivesse planejando fazer um churrasco e tivesse esquecido de dizer para eu dar a volta até o jardim dos fundos. De qualquer forma, ele não estava atendendo a porta, então decidi entrar.

Quando dei a volta ao redor da casa, chapinhando no gramado lamacento, vi uma churrasqueira fumegando… e o corpo do meu pretendente no chão, com um espeto cravado no pescoço.

Empréstimo Mortal

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