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OS NOVILHOS

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Vespera de S. João, na aldeia.

As doze pancadas do sino acabavam de dar por uma quente noite de estio, luminosa de lua e perfumada de fenos. Nada mais dôcemente calmo, que a contemplação da paizagem de vinhas e olivedos que se gozava na ladeira da aldeia, caminho da fonte. No cimo da encosta, a fachada da egreja estendia sobre o azul pallido, as agulhas brancas das torres, onde, attenta a santidade da hora e da vespera, nem as corujas soltavam pio.

Conforme o uso, quando a ultima badalada tocou, as raparigas em cabello, capellas de jasmins no penteado, de que pendiam pequenas ameixas rosadas e peras de Santo Antonio, saias curtas garridamente enfeitadas de vermelho, pés ligeiros e um borboletear de cantigas que envergonhavam nos campos os rouxinoes das balseiras, puzeram ao quadril as quartas de barro, e aos pares, trocando confidencias, desceram pelo corrego até á fonte. A fonte era o monumento da aldeia, com o seu largo boccal de feição biblica, boa pedra vincada pelos fundos dos cantaros, amplos cadeirões de granito em redor para quem chegava cansado, uma dorna inclinada onde bebia o gado, e meia penumbra tremula, de chorões e pimenteiras.

Vespera de S. João á meia noite, a agua das fontes é santa, santa como os remedios efficazes, como a benção nupcial que um velho padre estende aos noivos, como os vestidos e os bentinhos das imagens, como a cruz dos adros desertos, como os mentrastres das ermidas distantes e os cordeiros dados de fogaça pelas festas da paschoa. Quem a bebe, viva áquella hora, junto da fonte onde o luar se espelha, e em cujo fundo dormem suavemente os reflexos das estrellas, é feliz todo o anno, fecundo se é mulher e bom trabalhador se é homem.

Bom S. João, todo risonho e nú, no seu altar da egreja, cordeirinho branco a um lado, bandeirola do outro, e a polpuda mãosinha de creança abençoando com graça innocente as cabeças que se lhe curvam deante!...

As raparigas passavam em volta das quartas de Extremoz, os baraços de tirar agua, e na limpidez da fonte, sentia-se o plhau! sonoro de vasos mergulhando. Tão fresca a agua, tão sapida de philtros de luar e perfumes de amor! Oh, como é bom ser novo!

Toca a encher as enfusas. Algumas das moças entravam nas vinhas a colher parras para ornar de grinaldas as cintas finas, as cabeças loiras e os bojos porosos dos cantaros arabes. E aos pares, ondulando os quadris, iam subindo a encosta cheias de esperanças e radiosas de sonhos, e o rumor das cantigas fluctuava no tranquillo ar da meia noite, em cuja limpidez o S. João benevolente, estendia as suas mãos cheias de promessas.

Ora a Rosaria só desceu da herdade á uma hora, a grande preguiçosa! E sósinha por entre as arvores, n’uma pallidez de audacia que lhe ficava bem! Tudo no monte ficára a dormir, o pae estiraçado na eira, a mãe resonando na alta cama de casamento, os rapazes por cima das moreas de trigo, bois deitados por baixo das azinheiras da pastagem. Dois novilhos sómente, quasi bois feitos, retouçavam nos fenos, pulando, rebolando-se, furtando-se os corpos vigorosos, n’uma alegria de titans em bacchanal. E todos brancos, mansissimos e perfumados, dir-se-hiam principes encantados, esquecidos dos seus palacios de oiro, n’aquella metamorphose exigida por alguma velha fada rabugenta.

Rosaria ainda esteve um bocado a miral-os.

Era o novilho da vacca Mourisca, mais a novilha do visinho Pedro, pastor da herdade proxima.

—Diacho, disse ella a rir para comsigo, cantaro ao quadril, tão novitos ainda, e já namorados. E a cantar desceu a ladeira. Que luar que fazia, que silencio se alastrava!... Nem um ai de rouxinol noctivago, nem um echo de cantigas esmorecendo nas quebradas. Um pouco além, no cabeço do outeiro, o portal formidavel de um dolmen negro, desenhando como um branco de olho malicioso, rebolado em fervores de lascivia. E atravessando n’um feixe esse portal, a poeirada fina da lua, vinha em aureola cercar de uma vaporisação phantastica, esse perfil de zagala israelita. Quando chegou á fonte viu a clareira coberta de ovelhas, que empurrando-se em silencio, furando, cahindo e mordendo o pó que levantavam, tinham pressa em chegar á grande pia de pedra, para beber. Em pé sobre as lages da fonte, o pastor tirava agua com um grande balde de cobre, enchendo a pia, que logo tornava a ficar sem gotta. Rosaria ergueu a voz:

—Eh lé, visinho Pedro.—O pastor parára de chapinhar na agua. Gritou-lhe:

—Eh lê, Rosaria!

E ambos immoveis, sem querer avançar, ficaram a olhar-se no turbilhão do rebanho.

—Bonita noite, disse um.

—É verdade, fez o outro.—E um grande silencio.

—Então vens á de S. João?

—Tal e qual!

—Pois isto é tarde por aqui, juntou vagarosamente o pastor.

Rosaria teve um sobresalto, o monte ficava longe, não andava viv’alma, e tão fóra de horas!... Então olhando para si, reparou que estava em collete, braços nús, pernas núas, as primeiras redondezas do seio em evidencia. N’isto, os novilhos brancos romperam na clareira, ás cambalhotas.

—Tambem!... disse o pastor. E sobre o lagedo da fonte, ficára immovel, bebendo o largo, narinas frementes, circulação de novilho nas fórmas athleticas que tinham á lua, soberbos detalhes de musculatura.

As ultimas ovelhas tinham já bebido, e ainda por duas vezes, o Pedro mergulhou na agua santa o grande balde de cobre, para encher o cantaro de Rosaria. Tremula e muda, a pobre achegava-se sem ousar fital-o, receando a primeira palavra, qualquer ousadia permittida pelo abandono do sitio. Eram quasi da mesma edade, tinham brincado creanças, esfarrapados e trigueiros, rolando-se nas relvas com essa alegria selvagem dos que convivem longo tempo com o gado, e sem saber o imitam nas suas cabriolas. Sem o menor resaibo de amargura, a voz do Pedro disse-lhe:

—Hontem estavas a fallar com o boieiro do Monte-de-Trigo. Diz que não?

—Estava, sim. A irmã tem andado doente. E como é rapariga da minha aquella...

—Olha cá, para que vieste só, a esta hora? Diz, anda.

—Estava a dormir. E vai, fez-se tarde.

—Sabes, moça? Se encontrasse ahi algum, não o deixava comer mais pão. Não me salve!

—Não ha medo, homem. É procurar!

Á medida que através as interpellações bruscas do Pedro, ella lhe sondava os receios, adivinhando o culto em que era tida, ia recuperando socego. Sentindo-o vencido então, a deixar vêr nas ameaças surdas o receio que o esmagava, era Rosaria quem fallava alto agora, pujante da sua felicidade e orgulhosa de dominar. Assim estiveram encostados no boccal da fonte, immoveis, olhando sem scintillas um para o outro, como se já tivessem dormido. Em roda, as ovelhas ajoujavam-se aqui e além, fartas do repasto da noite e cansadas de cabriolar nas encostas. Vigilantes, nos longes do arraial, os dois rafeiros iam e vinham, encalmados e tropegos, fazendo tilintar enormes colleiras erriçadas de gumes, e farejando os mattos, de orelha fita, á procura.

—Já fallei c’o teu pai outra vez, disse o Pedro.

—O anno vai mau, aventurou a rapariga, sabendo o que elle ia dizer.

—E a gente fica assim toda a vida?

—Ai, não! Mas quem faz casa, necessita que lhe metter dentro. Tu bem sabes, Pedro. Inda que uma creatura, sim, seja pobre, ninguem casa sem arranjos. Cá da minha banda, pouco falta.

E ia dizendo, uma por uma, as peças do enxoval—lençoes de estopa, duas fronhas de renda, coberta encarnada, seis toalhas, dois vestidos, e camisas, uma arca nova...

O Pedro não ia tão bem, não! Todo o anno a velha estivera de cama, algumas seis cabras mortas, a damnada inverna sem largar a sementeira, o favalito cheio de alforra. Quem nasce para burro, com licença, nunca chega a cavallo. E os dous suspiravam. Mas cada vez mais perto, os novilhos se perseguiam e acariciavam, n’uma febre de primeiro amor, espicaçado pela resistencia da femea, que de patas estendidas se punha á espera que o macho formasse salto. E sentindo-lhe o focinho nas ancas, furtava de repente o corpo para deante, fazendo-o cahir nos pastos. Aquillo succedia-se por dezenas de vezes. Cansado então, o novilho parava afastando as pernas, resfolegar sibilante, a baba correndo em grandes fios da focinheira, que um laivo rosa sombreava em tons de carne sadia. E de cabeça alta quedava-se a fital-a, mugidos surdos, repassados de uma ternura physica que parecia deleitar a femea, cuja cauda voluvel açoutava de manso, a bella anca roliça. Nada era mais lascivo, ondulante e gracioso, que a anatomia agil da vaquinha branca, orelha e narina moveis, esboçando attitudes de uma graça infinita, saltos de pequena fera, bruscas contracções de pannos musculares, espreguiçamentos de desafio e vagas ternuras de esperança. E essa scena de tentação, que primeiro passára desapercebida ao pastor, ia-lhe agora despertando attenções minuciosas e complicadas ideias. De olhos avidos elle seguia o jogo teimoso da novilha, que se difficultava á medida que a raiva do macho ia crescendo, crescendo. E um alvoroço interior acudia-lhe em remoinho, fazendo-lhe bater as fontes e pondo lhe a saliva espessa. Não era bem Rosaria, a imagem com que elle, mentalmente, reproduzia a scena que estava vendo. Deante da rapariga, as suas audacias de homem quebravam-se, e as suas raivas de novilho mordiam o freio de uma virgindade montanheza e feroz, que os tinha defendido a ambos da culpa. Era sim, uma femea meio mulher meio vacca, constructura toda animal, harmonica com o seu instincto brutal de pastor, capaz de sentir e incapaz de pensar, vida rudimentar em corpo de redondezas duras e contactos bovinos, imposta pelas fatalidades da procreação. Rosaria que se contrahia sob a descarga das fulvas scentelhas, que saltavam dos olhos d’elle, dilatados em colera sob sobrancelhas frementes, teve um medo algido a invadil-a toda. E ao mesmo tempo, do fundo do seu sêr e do coração das mais pequeninas regiões do seu corpo, um esbrazeamento, uma angustia, uma incoherencia de gozos innatos, subiam-lhe á epiderme, alargando-se, chispando, occultando as suas vibrações fulminantes sob a mascara da tranquilla postura que tomára.

Pedro chegára-se mais contra ella. Os novilhos tinham-se enlaçado afinal e rolavam nos fenos, mugindo no exhuberante prazer de uma força esbanjada. Então Rosaria que o encarou de face, viu-lhe bem a rijeza das fórmas negras, o tronco arquejante, que pinhas de musculos disformes enfloravam, a redondeza núa dos deltoides cinzelando-lhe magnificamente os hombros de titan, bicipedes formidaveis contrahidos sob a tortura de um desejo esmagado, e na rude face de fundibulario celta, uma rigidez que apenas de longe em longe, o fulvo corisco das pupillas conseguia desmentir. Ella não pôde mais, e na meia nudez em que viera, atirou-se-lhe contra o peito, beijando dôcemente esse bronze latejante, mesmo sobre o coração. As mãos de Pedro apanharam-na pelas espádoas e cingiram-na pelos rins, hesitantes n’um delirio que o fazia cambalear como um touro ferido entre os cornos, e não sabendo se cingil-a até lhe fazer estalar os ossos, se arrojal-a lá para o largo, onde a não visse mais n’aquelle abandono desleixado.

Aquillo durou um instante, no final do qual os braços do hercules tinham novamente cahido, a iris ficára tranquilla e toda essa torre cessára de tremer.

—Adeus, disse-lhe elle um pouco triste. E baixo, n’um segredo de infinita ternura, em que chorava a rude voz, transfigurada pelos ardores da juventude:

—Quando formos casados, sim?

Agarrou no balde, esteve a enrolar a corda á cintura por um bocado, metteu dois dedos na bocca para assobiar aos rafeiros. E voltando as costas á fonte, poz-se a arrebanhar as ovelhas, enxotando-as com o grande cajado, pelas pastagens acima. E mais além a sua voz de montanhez cantava já, n’uma toada dolente, em que transparecia a tenacidade de um mesmo amor, idealisado por uma vida inteira de esperanças e sonhos castos.

Rosaria inda ficou a vêl-o, ladeiras acima, de manta ao hombro, desolada pela recusa e quasi cheia de desprezo por similhante honestidade. E caminho do monte ia furiosa, com ganas de se dar ao novilho branco da Mourisca. Ao passar na eira, entre duas moreas, o boieiro do Monte-de-Trigo, que estava de guarda aos calcadouros ergueu a cabeça.

E alli mesmo, esfaimada como uma bacora, Rosaria se entregou.

A cidade do vicio

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