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ABANDONO DO POMBAL

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O Domingo tinha sido uma loucura para Maria de Jesus. Houvera festa em Santo Antonio, branco oratorio que de cima do outeiro sorria de ingenuo, aos arvoredos e aos cevadaes. E Maria de Jesus que era buliçosa e sadia, no pleno desabrochar de uns dezoito annos magnificos, tinha ido mais as primas, gozar no adro sonoro de bailados e cantigas, da estranha harmonia perfumada e larga, d’aquella tarde primaveral. Em março, o cahir do sol deixa nos campos ainda, reminiscencias humidas do longo inverno, tão enfadonho de passar nas herdades e aldeias; o chão está esponjoso ainda pela infiltração da agua; relvas perladas afogam os pés em frescuras doentias; passa um friosito cortante nas ramadas nuas das figueiras e sobreiraes, e o mesmo luar de pallor indefinivel, tem o quer que seja de um gelo de sudario estendido sobre o cadaver da terra, e todo pregado com alfinetes de estrellas. O bando de raparigas desceu tarde do outeiro, quando já os bailaricos desmanchavam e os ceus esmaeciam de amor. No silencio da vereda, que entre piteiras e silvados, vinha entroncar na estrada da villa, as vozes timbradas de juventude e cascalhando em risinhos, tinham um acalentar gracioso, e quebrando-se, subindo, smorzando, saltitavam de valle em valle e corrego em corrego, tornando musica a exhalação torporosa das plantas. Maria de Jesus pouco afeita áquelles passeios do campo, deixava-se penetrar do encanto tonico d’essa frescura que lhe fazia picadas nos pulmões, dando-lhe uma embriaguez de vida sem egual.

Chegaram á villa já noite, em tropel, chailes nos braços, tranças cahidas e braçados de flôres, um remoinho de palavras e risos, que não era já palestra, mas lhes vinha como resultante d’aquella avigorentação de seiva e mocidade, provocada pela travessia dos campos. Só em casa, ella reparou que molhára as botinas, tinha a garganta presa, e por vezes sentia um peso estranho de cabeça.

—É fadiga do passeio! dizia a rir, contando a alegria da festa, os promenores dos bailaricos e a garridice sem exemplo do Santantoninho da ermida. Precisava porém de ouvir-se para estar bem, e a cada silencio sem saber porque, cerravam-se-lhe as palpebras, a espinha dorsal cahia-lhe dorida, e uma tristeza vaga, feita de estupor e devaneio, entorpecia-a toda, em narcotismos de banho russo.

Foi agitado o dormir, essa noite. O Santo Antonio tomava-lhe no sonho dimensões colossaes, e de olhos estoirados, barretina na cabeça, corria a ameaçal-a com a cruz, bramindo com a sua rude voz de pregoeiro.

Não podia estar na cama, voltava-se, sentava-se, bebia agua, e vinham-lhe oppressões teimosas, pasmos fugitivos, um tremor febril de membros. Por duas vezes cuidou que estava um vulto embuçado aos pés da cama, a encaral-a do fundo de um grande capuz negro, barba fulva, onde lagrimas corriam.

E de manhãsinha, annunciou-se a tosse, a grande fadiga continuava, e um fio de sangue correu-lhe a um canto da bocca. A mãi fizera-se branca áquelle terrivel signal, que ia dizer com outro mais terrivel ainda, apparecido no dia anterior sobre o leito da pobre pequena—uma pennita de pombo, toda negra, immovel sobre o travesseiro.

Queriam dissuadir a pobre velha e chamal-a ás coisas praticas, não haveria nada, tolice acreditar em signaes... Mas os olhos d’ella, fitos no pombal não viam senão esses casaes brancos ou cinza, alguns manchados de côres, alguns de pescoço irisado, dois ou tres todos negros, enormes como corvos, arrulhando altivamente nos beiraes da casa, voando contra as ventanas do pombal, ou vindo a espaços bater nas vidraças, com azas funestas, de que abalavam ao vento, pequeninas plumas agourentas.

—Os pombos, os pombos!... dizia n’um fundo d’assombro a pobre, como se ante ella surgisse alguma evocação pavorosa.

Dia agreste, cheio de incertezas no alto, com alternativas de sol e contramarchas de nuvens, que muito baixas, deixando farrapos pelos cabeços, a espaços truncavam a cordilheira, embaciando a transparencia viva das verduras. Nos esqueletos das arvores punha a rajada volitações de folhas, vinha um frio doloroso dos longes; e por massas, na opacidade do ar, troncos cruzados, ramadas vibrantes na symphonia dos ventos, toda a confusão regelada dos bosques que vão rebentando a medo, davam uma sensação de amargura e d’abandono. Como iam grossas as aguas por esses barrancos e corregos, alagavam-se os terrenos baixos, exhumavam-se radiculas tortuosas côr de ferrugem, das barreiras que resistir queriam ao turbilhão, e vinha das relvas zurzidas pela enxurrada, das attitudes contrafeitas e bruscos gestos do arvoredo, uma fadiga imbecil e attonita dôr, que quasi trahiam impotencia. Terrenos fóra alastravam-se ainda calvas aridas, bocados de chão velho hirsutos de cans vegetaes, aqui e além pintalgados de germinações timidas, pallidas, finas, caminhando em filões, com o effeito de pinceladas ao acaso. Por toda a banda começava o cevar de hyena, da herva nova que se lustra, engorda e alimenta do cadaver da herva velha, e em vaidades de debochada, a vai pisando, humilhando e roendo, com uma especie de implacavel ciume.

Cada pequenina folha rebentando, trazia ao mesmo tempo, herdadas lascivias secretas, como uma ancia nupcial que alongava os peciolos em pescoço para os beijos do amor frenetico, revirava os apices como linguas á descoberta d’alguma nova sensação, irritando em titillações mysteriosas sobre os reversos das folhas, as villosidades e pellos, no doido prazer esbanjado de uma kermesse. Do entresolo dos bosques vinham susurros de catadupas, azenhas trabalhando, gemidos de caules vergastados, ou ultimos idyllios de folhas outoniças que esvoaçam já mortas. N’essa transição de quadra, a natureza chorava melancolias lyricas, e se o bocejo da nevoa rasgada, deixava contemplar por momentos algum florão de ceu brunido a reverberos de sol, viam-se no azul pallido, sobre o engaste do horisonte, os dulcissimos furta-côres que teem certos nós da madreperola, tons de nacar, junquilho, turqueza e oiro, fundindo em maravilhosos reflexos.

Nas setteirás da grande chaminé provinciana, larga e alta como um torreão de solar, o vento bramia em todos os tons, da raiva á supplica, querendo a todo o transe assaltar a vivenda, implorando, dizendo segredinhos, batendo pancadas humildes, e quedando-se após como salteador, na esperança que fossem abrir.

De noite, uma chuva batera as vidraças e cahira sonoramente nas telhas, sob os golpes da ventania inclemente. Tempo que desalentava os trabalhadores e embebia de tristuras a alma fragil das mulheres!

Pelos vidros da alcova, via-se um bocado do jardim, pimenteiras verdes fazendo oscillar ao vento o seu pranto de folhitas oblongas, eloendros sem flôr, cedros anões, pyramidaes e bojudos, canteiros de anemonas, rainunculos, goivos, rosaes e alfazemas, toda a flora chinfrim dos quintalorios de provincia. E alongando os olhos, Maria de Jesus via mesmo deitada, os queridos arbustos que os pardaes debicavam, e todas essas flôres mal abertas, que nos canteiros punham mosaicos de irregulares coloridos.

A casa ficava d’alto, sobre uma ondulação dos saibros, por fórma que das janellas acima mesmo da parede do quintal, podiam dominar-se todas as perspectivas agricultadas do valle. Eram renques de castanheiros á orla do rio barrento, que a planura repartia em veigas ferteis, laranjaes, olivaes, latadas e quintarolas cingidas por sebes de piteiras e sabugueiros, cantos de courella onde pascia a indolencia fulva dos bois, jumentos e ovelhas roendo pellugens nos vallados. Mais para lá, grandes amphitheatros de outeiros, hirsutos de matto e crenelados de penhas lugubres, armavam escadarias de cyclopes contra a nevoa ondulosa dos ceus—e nitidamente cortados em brancos de caliça violentos, sem claro-escuro, fins de aldeia iam-se esbatendo nos primeiros planos, collina abaixo, casas terreas com chaminés sahindo em torrella das frontarias, esbracejos de parreiras por cima dos muros, medas de azinho e serras de palha em cathedral, carros de matto erriçados de fueiros, portões de adegas com mariolas provando o tinto, mulheres fazendo meia nos poiaes das portas, gallinhas e porcos revolvendo as estrumeiras podres, ruidos de bigorna, cantos de gallos, e no cotovêlo da estrada, já distante, dois paus em cruz historiando um assassinato.

No quintal, por cima do palheiro, a um lado, havia um mirante com balaustrada de louça, a que se subia por uma escada de tijolo, orlada de craveiros e cachos de fuchsias. Entre palheiro e mirante era o pombal.

A cama da doentinha ficava n’um angulo da alcova, e por entre as cortinas podia ella, mesmo deitada, alongar a vista contra a residencia das queridas aves, que em grupos na cimalha do mirante, nos angulos do telhado, ou á porta das pequeninas moradas, se agachavam tristes, pennas em tufos, cabecinhas debaixo da aza, ou bico alto, espreitando a hostilidade parda do ceu. Um ou outro pombo audacioso voava ás vezes por cima do mirante, em arrulhos timidos, saltitando nos balaustres, cauda em leque n’um gracioso movimento de subida e descida, e esse debicar de volatil ocioso, que procura distrahir-se fazendo mal.

A rajada porém fazia-o volver logo ao ninho, impotente para o vôo, de cabeça baixa e azas molhadas. Mesmo tossindo, face irritada de rosetas funebres, guela secca de febre, Maria de Jesus seguia as sortidas dos seus amiguinhos, cheia de dó porque elles soffriam.

Esse dia foi cruel para todos! Ás duas horas, a febre trouxera desvario, e o Santo do Outeiro, com a barretina ao lado e cruz em riste, mais o embuçado de aos pés da cama fazendo rolar pela barba fulva, grandes lagrimas silenciosas, volveram a encher de scenas tragicas a mente da pobre criança, walsando, passando, estacando, esgrimindo gestos de todas as fórmas, e descobrindo á luz uma face em que se repintavam todas as emoções e momices. Tão alto o resfolegar, que se ouvia nos quartos proximos, arquejante, estriduloso, acabando por vezes em silvo. A pelle secca, de contactos asperos, queimava como se fôra uma braza, e no peito que tomára tons amarellos, o animal feroz do coração, comprimido na jaula, batia de encontro ás paredes, pondo na carne solavancos temerosos de vêr. Ao mesmo tempo, espicaçava-lhe o tronco o cinto de causticos que lhe fôra applicado; machinalmente os seus beiços diziam—agua!—e escancarados n’um pasmo vitreo, os olhos erravam no tecto á procura de um ponto tranquillo, onde não chegasse em galope o djerid de phantasmas traiçoeiros. Bateram Trindades, já os ultimos ares do dia eram absorvidos na sombra dos aguaceiros, e da alcova esclarecida a luz de lampada, nada se descortinava sobre o pombal ou sobre o jardim. Mas os vidros da janella tremeram de leve, uma grande mão de dedos esguios bateu devagarinho, bateu...

Dôces e tristes, os olhos da velha mãi reconheceram na treva, a aza do pombo negro fatidica e implacavel, a que o indeciso da noite dava proporções desmesuradas. A tremer chegou-se á filha, viu-lhe um riso suavissimo, espiritualisado de angustia e todo luminoso de innocencia. Cahira o arquejar da respiração, as palpebras cerravam-se-lhe repousando, e no desenho do corpo indeciso nas penumbras do quarto, a pallidez da cara sómente, punha em redor o divino clarão de uma aureola de martyrio.

—Os pombos! tornava surdamente a velha, os pombos!...

E era toda a sua queixa.

Pelo dia seguinte a esperança estava perdida. Os tecidos flaccidos abandonaram-se a uma lassidão tenaz, sem resposta a estimulos de qualquer ordem. Mal se sentia a respiração da doente, e como um pendulo que faz em cada vez oscillações de menor arco, assim o impulso do coração, successivamente enfraquecia. Ao chegar de manhã o velho doutor Patricio, inda sentiu sob os dedos nodosos, o pulso vermiforme que ondulando fugia n’um fio tenuissimo. Ás dez, a onda partida do coração era menos viva já, e mal chegava abaixo do cotovêlo.

Depois fez-se inda mais curta, e lembrava assim o exercito em retirada que lentamente desguarnece um acampamento. Mal lhe sentiu frias as extremidades, e n’um desvairamento de morte, pôde estudar no rosto da filha a anatomia mortificada e plumbea, que é o toilette do corpo para as bodas do cemiterio, a pobre velha desatou a bradar pelas casas como doida, tropeçando nos moveis e despedaçando as roupas da sua misera viuvez.

Corriam ao appello os velhos amigos da casa, e as santas mulheres que tinham visto nascer a pobre Maria. E um chôro cortado de lamentos, enchia a casa, fazendo alarme nas ruas. Alguem notára desusada actividade no pombal. Os chefes entravam pelas casinholas e picavam raivosamente as femeas no agasalho do choco, fazendo-as abalar dos ninhos; e em revoadas doidas por cima do mirante, a turba frenetica afugentava alguma coisa dos ares, parecendo perseguir um inimigo occulto, sem arrufos, sem arrulhos, mas por uma fórma incansavel. Na vertigem da debandada eram profanados os ninhos, rolavam os ovos do alto, ou vinham-se esmigalhar nos tijolos da escadaria os pobres borrachos, brutalmente investidos pelos paes. Por vezes toda a buliçosa legião pousada nos cimos do mirante, armava linha de batalha com graça marcial, em que faziam mosaico as armaduras de plumas dos peitos, e o furta côres dos pescoços levianos. O pombo negro, que dir-se-hia ter crescido pela noite, parecia commandar o veloz regimento, e no extremo da fileira, cabeça alta e olhos inquietos, estudava o horisonte tumultuoso das nuvens, que um dardo de sol ensanguentava a espaços.

Ia pela abobada uma decoração dantesca, profusa em contrastes de negro e branco, com fumaradas errantes que o vento acossava de onde a onde. Por instantes condensada em cupula, ou rachando em zig-zagues de oiro sob o choque dos bulcões em peleja, uma felpa de negro electrico, pastelava ameaçadoramente a amplidão, n’um tom unido azul d’aço, felpa que era como o grosso do invencivel exercito de nuvens. Não havia ainda trovões, e o ar rarefeito transmittia sons difficilmente. Além d’isso, dava-se nos sêres e nas coisas uma suspensão de assombro, recolhimentos de plateia á escuta d’um lance tragico.

Viam-se chegar galopando os ultimos esquadrões da tormenta, ao de manso, n’um pittoresco de emboscada, com as suas provisões d’agua e fogo. Aquillo galgava por cima das montanhas, ennovellando-se em musculaturas titanicas como nos despenhados de Milton, e subindo a tomar fileira na formidavel ordenação da batalha. Alguns medonhos athletas ficavam por momentos em pé sobre os morros crenelados da cordilheira, alongando os braços n’uma selvageria de fórmas. E arrojando ao largo os capacetes e escudos, pousavam de cabelleira em floresta, a provocar em volta esses anões terrenos que se agachavam de medo.

Mas outros mais arrogantes, vinham logo atraz d’esses na escalada emprehendida, cavalgando-os, cingindo-os em lucta singular, e subindo ás costas dos que vinham depois. E bagagens, animaes de ataque, leões em rebanhos, jaguares e pantheras, carbonosos elephantes armados de torres, carros de guerra com panoplias de tridentes... Ante essa invasão sem barreiras, a natureza amedrontada retrahia-se em fremitos. Nem um vôo, de arvore a arvore. Nos pinheiros, castanheiros, e oliveiras de troncos rocados, havia gestos de supplica e dôr centenaria. Por baixo da sua velha ponte romana, e todo cosido com os pedregulhos e juncos do leito, desertava o rio sem rumor. Um trovão principiou em surdina do extremo horisonte, veio vindo, vindo mais retumbante, como se quizesse fender essa basilica armada em funeral. O pombo negro abria n’esse instante as azas a pairar um segundo, e no mais alto do mirante pousou-se n’um grande vaso de cactos, como n’um miradouro de fortaleza cercada. Tinha a cabeça vibrante, bico no ar, o peito rufado—e com os seus olhos castanhos observava os ceus de lado, altivamente, no seu posto. Cahiam já grossas gottas de chuva, que o ar riscavam de arames parallelos, rolando pelo terreno em espheroides vestidos de poeiras fulvas.

Em magotes por essas azinhagas, enxada ao hombro, ramos de trovisco nos chapeirões, jumentos pela arreata, os trabalhadores recolhiam-se á villa, amedrontrados, recomeçando a Magnifica, um ar de deslumbramento estupido. E alongando os pescoços n’uma angustia, as vaccadas mugiam fundo, sob o peso da asphyxiante atmosphera. Branca de encontro á fuligem do ar, a villa resahia agora n’um minucioso desenho de casas lavadas, chaminés aggressivas, e portas carreteiras fechando por cancellões de ripa, como se um grande reverbero em meio da sombra a rembranisasse. Começavam ruidos subterraneos, vertigens bruscas de relampagos... Nuvemzinhas pallidas, gazes de tessitura fragil, punhos de valencienne, e plumas de leques rasgados em crispações de raiva, corriam, pousavam, debandavam, damasquinando os negrumes com phantasias niveas.

E o pombo negro não descançava nunca! Viam-no voejar em ellipsoides cada vez mais largas, investir bruscamente pelas ventanas do pombal, cuspindo de dentro a palha dos ninhos com turbilhões de pennugem.

A sua actividade tinha coleras e vertigens. Elle fazia debandar o batalhão dos guerreiros, ia e vinha allucinado, mais negro que nunca, reflexos de aço nas azas, e um alvoroto de pennugens na raiz do bico.

As mulheres menos maguadas, que para distrahir-se vinham olhar pelos vidros as arvores do jardim e a vida do pombal, espantavam-se de similhante tumulto de aves.

—Que terão os pombos? Que adivinharão os pombos? perguntavam fingindo ignorancia. Todas porém sabiam a historia da deserção. Era o agouro realisado, toda a familia de almas que ia emigrar, acompanhando ao céo a sua irmã, envolvendo-a na jornada, defendendo-a com as azas, alimentando-a com arrulhos, vestindo-a da brancura divina da sua pureza, e emittindo-lhe o esplendor da sua graça.

Quando o velho doutor chegou, a face de Maria cavára-se de todo, havia na sua testa diaphaneidades de cera, e um tom verde-negro raiando-lhe das fontes, afogava-lhe as feições n’um como luzeiro phosphorente. Nas azas do nariz vincadas a ferro, pontos fulvos depunham-se em crystallisação microscopica, como o pollen de uma funerea flôr desmanchada. E os olhos abertos, gelados de humores, perdida a transparencia, davam á physionomia uma singular expressão de acabamento, angustia e suavidade idiota, deixando vêr no terrivel relance, como o animal se ia transfazendo em coisa.

—Rezem, disse o velho em voz alta, pondo o chapeu para sahir, no meio dos choros renovados.

Os ultimos pombos abriam as azas, abalando por sua ordem, a installar-se na enorme serpente, que se desenrolava palpitando sob a irisação de um ultimo raio de sol doentio.

—Os pombos! os pombos!... dizia agora toda a gente.

A cidade do vicio

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