Читать книгу A cidade do vicio - Fialho de Almeida - Страница 5
NOITE NO RIO
ОглавлениеTinha-se afogado de todo no poente a ultima tinta paludosa da tarde, e uma sombra egual, atravessada de scintillas de estrellas e palpitações de atomos, cahia de cima dissolvendo os contornos das coisas, e escorregando na agua do rio, que se fizera densa e viva como uma carne de annelideo, gelatinoso e murmuro. A guiga em que nos mettemos, leve como uma penna, toda esguia ondulando á menor arfagem da onda, dir-se-hia um pequenino tumulo branco e ouro, em que seria delicioso partir coroado de lichens e algas, para os reinos do coral, no fundo d’esses paizes submarinos, em que as cidades são feitas de galeões submersos, as cupulas de conchas côr de saphira, e as columnatas de phantasiosas incrustações de molluscoides. Emquanto Lia se punha ao leme, n’um deshabillée de noite em crepe da China, a alta golilha afogada acolchetando no pescoço por alamares de contas e rasgando fenetre no seio, uma nudez de braços polida, cinzelada na brancura das carnes hystericas, e abrindo alabastros luminosos entre a dragona a contas do corpete e canhão rugoso das luvas de ponto, ia eu de remos em punho, aventurando o barco bem para lá do caes, áquella hora adormecido. O meu vestuario não era bem o d’um barqueiro, nem era bem o d’um banhista. A camisola escarlate sem mangas, deixava-me os braços livres e nús; tinha o chapeu de palha, com abas reviradas, cahido á banda, e descoberta uma pouca de espadua fulva, onde pannos musculares contrahidos, avincavam por vezes a sua estriada dentadura, de luctador glorioso. O homem é vaidoso da sua força, se dos olhos da mulher que adora, desce uma especie de radiação voluptuosa, como a vestir-lhe a nudez. Lia, que era ardente pelo sangue da sua raça, tinha pela fórma mascula o culto altivo das zagalas biblicas, que nos velhos tempos atravessavam sósinhas desertos e tribus hostis, para vir desposar o sonhado do seu coração, pastor como ellas, herculeo e timido, olhos obliquos e dôces, onde n’um fulgor amoroso se rimava todo o poema do paiz das palmas, dos figueiraes e dos lagos. Fôra a sua agulha que espalhára na flanella que me cobria o peito e o ventre, esses relevos exoticos de flôres vivas, n’um labyrintho de grinaldas, que se enroscavam em torno de ninhos, symbolisando dizia ella, a tenacidade do seu amor e a aspiração infinita da sua alma, que era ser mãe. E era ella quem, na ferocidade da sua ternura, se entregava comigo ás ondas por aquella noite calida, na leve guiga branca, que os meus remos faziam voar. Não imaginam talvez, que orgulho eu tinha d’aquelles ciumes de leôa fecunda, em cujos dedos a certas horas, sentia crispações de garras, e em cujos olhos inexprimiveis, de tão singular expressão, que n’elles podia lêr a emoção mais vaga, desde a que se traduz na voz pelo grito, pela palavra ou pela phrase, até á que a linguagem articulada não póde dar, e quando muito se crystallisa dos labios pelo sorriso, dando uma perola ou uma estrophe—em cujos olhos, dizia eu, ás mesmas horas vibrava n’um galvanismo instantaneo, a intima dolora de uma alma perlada de juventude e paixão. Sabia bem quantos ficavam para sempre feridos no rastro da sua belleza e quantos desejariam apunhalar-me n’um antro, dizendo-me criminoso, porque era feliz.
Lia não tinha nada da esculptura antiga, linhas consagradas de modelo napolitano, seios altos, tinta baça, nariz grego, cabeça de Juno, onde torvelinhassem cabellos de noite. Era uma rapariga tão fresca como uma creança e tão branca como uma camelia. As linhas do seu corpo instrumentavam uma symphonia purissima, sem relevos superabundantes ou energias lubricas. Musical, toda essa organisação de que um tepido perfume de morbideza excentrica, se escapava em risos, sobresaltos e canções! Sob a coloração da sua pelle luminosa, tão fina que me dava calafrios ao contacto, e sob a fragilidade etrusca da sua cinta tenra e dos seus punhos magnificamente moldados, ninguem podia sonhar sequer a tenacidade altiva, a rija vontade e teimosia d’esse espirito jactitante, todo incoherente de pequenos requintes e anckilosado dos mais estranhos prejuizos. De feito, era necessario vir de uma raça atormentada e tenaz, grandiosa na sua miseria e filtrando por seculos sem numero, através dos cataclysmos da terra e das maldições do Deus irado, hoje errante nas asperezas do captiveiro, depois prosperando sob os reinos da edade gothica, após azorragada para o exilio, logo entregue ao carrasco e á fogueira, roubada, espesinhada e maldita, para assim engastar como joia rara, no fragil involucro de um corpo adolescente, esse genio caprichoso, que parecia tecido dos vôos da andorinha, do angelus de Massenet, de gottas de luar, e do travor bravio dos fructos silvestres, genio que era bom e mau ao mesmo tempo, luminoso e negro, leve, rhythmico, vivo até á doidice, mas que por vezes, vinha bater a aza de uma melancolia negra—talvez a hereditaria saudade d’essa patria ideal, perdida na bruma dos longiquos continentes, onde contemplativas repousam as ruinas dos templos, sobre cujos capiteis destroncados eternamente dorme a sombra do Sinay!
Pela agua irritada de fremitos, a guiga corria em silencio, fóra do quadro aduaneiro. Lia tivera a ideia de uma pescaria nocturna, que nos furtasse n’aquella noite de Casino, á convivencia de banhistas pretenciosos e mulheres fatigadas. A noite estagnava n’uma quietação abafadiça, sem brisas e toda uniforme no seu lucto. Da cidade, o gaz traçava na sombra como um plano de edificio monstruoso, pontuações vermelhas que se alongavam em formidavel escala, desde a Torre de Belem cravada na ponta de uma linha arenosa e curva, até á outra balisa, que o accumulado das casas de Alfama parecia occultar. E de tamanha fabrica, vinha um fervor de respiração convulsa, que á flôr da agua se afinava com subtilezas acusticas, estremando cada ruido na sua gradação, e decompondo por espaços através dos sons, toda a vida complicada da cidade, desde o hausto de uma valvula de fabrica, até ao grito indistincto de um vendedor de jornaes. Olhada assim de longe, d’aquelle fundo de sombra salgada, Lisboa tinha o ar de uma grande cidade entregue á nevrose tragica do vicio, pois que se apagavam na noite as frontarias dos edificios burguezes, as architecturas hybridas dos palacios e dos templos, a uniformidade das ruas geometricamente alinhadas, e no tremeluzir dos lampeões se podia evocar alguma d’essas necropoles torvas, onde as festas resumiam a vida, as carnes das mulheres se cobriam de lhamas de ouro em purpuras radiantes, a musica embalava a embriaguez dos soldados e capitães, e do homem nada vivia senão a besta, tripudiando em concupiscencias phenomenaes.
Em meio do rio e nos torvos concavos na nevoa gordurosa, esgarça aqui e além pelos caprichos do ar e da noite, os barcos ganhavam dimensões temerosas, e de vela frouxa sobre as varas curvas dos mastros, faziam pensar em azas mortas de albatrozes escorregando na agua negra, que se ia somnolentamente contra o mar.
Á força de prescrutar as sombras, a retina falseava as imagens alargando-as, enchendo com ellas os ares, fazendo-as mover entre crepes n’um rhythmo funebre, e esboçando assim carvões rembranescos, d’uma energia desconforme. N’esse pavor do negro, perdia-se ao leme o perfil de Lia, n’um fugitivo albor, immobilisado em singular recolhimento.
Ás vezes as suas mãos mexiam distrahidamente no regaço, havia o resoar das contas agitadas—e se o froco descahia um pouco, o marmore dos braços abria claridades eburneas no lucto do deshabillée.
Em espiralitas claras, cortados muito curtos, os cabellos faziam-lhe capoul á banda, sobre a testa baixa, d’onde o nariz serio e sem proeminencias, um pouco obliquo de azas, nascia dôcemente, como n’uma mascara de sphinge. Em volta, no drama errante das sombras, as arestas tocavam-se ás vezes de uma luz, filetes tenues de phosphorencia rolando no dorso da onda, reticulos argenteos espelhados das estrellas, gottas perola vogando como algas de luz nos palpos da maré, alguma coisa de fogos-fatuos ou pyrilampos d’agua, esvoaçando n’uma vida abrazada e inquieta, de vertice em vertice e foco em foco, para subtilmente bordarem como inconstantes melodias, por todo esse claro-escuro. No entanto o ceu tinha formigueiros de estrellas, retalhados com os regatos de tinta das nuvens lançadas por camadinhas obliquas. E a cada passo ella dizia uma palavra guttural, vestindo n’essa estranha musica a fugitiva ideia que lhe pipiára na mente. O estranho dialecto, sifflante, torvelinhando, cheio de breves, do aspirados em ah, e eth, vibrava na voz de Lia com expressão metallica, fina, viril, cheia de paixão. Era a lingua em que ella me insultava nos seus periodos de orgulho judeu, de ardencia, de desejo, de embriaguez e de amor. Cahida do meu pescoço pelos seus braços em collar, quasi núa e cingida a mim, os pés rojando, crespos cabellos em nimbo na pureza impeccavel da testa, narinas debatendo-se d’ancia, e a bocca em momo escaldando n’esse terrivel escarlate dos sangues orientaes, muitas manhãs eu lhe ouvira palavras d’aquellas, primeiro ciciando divinos segredos, e a cabecita escondia-se na minha, cahindo-me no hombro desnudado. Depois a respiração subia n’um começo de cyclone, estrangulava-lhe a voz, e o seu dizer era offegante e frenetico. E d’alli para cima, que coleras fuzilavam por ella! Cada molecula da sua pelle era um centro de sensação tumescido em fluidos de amor e rebentando por descargas de gozo, sob a fecundação de cada beijo.
Essa radiação de mulher adolescente transfigurada ao calor de um homem, ganhava de subito energias do deserto, reminiscencias de estado barbaro, sensualidades tigrinas, cujo ardor a agua do baptismo parece ter resfriado nas christãs. E como faisca espadanando no embate violento das fragas, aquella linguagem mesclada, indefinivel, obscena talvez, e encantadora, fazia-me lavas no sangue como um ultimo requinte de voluptuosidade!
E a guiga vogando manso, como n’um pedaço de lenda rhenana, sem ruido, tendo a mulher de negro ao leme...
Evitavamos os navios ancorados, como conspiradores em perigo; uma vez ou outra porém, tinhamos de contornar alguns d’esses cetaceos immoveis, que affrontados pela prôa pareciam crescer desmedidamente nos ares, multiplicando a confusão de vergas, escadas e cordagens, e accendendo pelos oculos das camaras, fulgores sanguinolentos de olhos estoirados, sem movimento e sem palpebra.
—E a pesca? disse Lia, em voz baixa. Aproximámo-nos da outra margem. Cahiam de cima as arestas dos montes, fazendo trevas na sombra. A maré descia vagarosamente, embalando no dorso das ondas alastramentos de algas verde-negras. Accendi á pôpa um archote, e fizemos alto. Em volta, a chamma abria uma photosphera geometrica, raios que se quebravam na agua, torvelinhando em rêdes de sangue, e na penumbra da noite se amorteciam, á medida que se alongavam. Immovel no seu banco, Lia tinha a cabeça distrahida, envolta n’um froco atado por baixo da barba, a narina quieta, e uma serenidade de face a cada passo desmentida pela caustica dos seus olhos de hebrêa.
—E a pesca?—foi em toda a noite o unico portuguez que disse, n’um fluido de abstracção monotona, sem sentido e sem alma, com voz que era antes um echo. Nem um instante porém, esses olhos me largaram, spasmos n’um deslumbramento de luz, a principio tranquilla e dôce, depois tenaz, depois feroz, e inquietadora por fim. Não sei explicar, nem ha coisa alguma que o explique, por que vibrações infinitesimas iam passando as fibrilhas d’essa iris, que dentro de mim illustrava com illuminuras divinas todo o fulvo poema de uma paixão selvatica. Parecia-me, na incoherencia em que oscillava, o seu amor uma serpente que se enroscava frenetica a mim, inoculando peçonhas no meu sangue e loucura no meu cerebro, invertendo a polarisação dos meus instinctos e contaminando a nobreza dos meus ideaes, tornando-me feroz, grosseiro e cobarde, e deixando pela algidez da minha vida, um rastro de maldição e estupor! E por mais esforços que fizesse, a contemplação d’esse typo de Herodiade, embaraçava-me, cançava-me, fundia-me! Em pleno rio e longe do bulicio, a sua figura transfigurava-se de immovel, e através d’ella eu via irem desfilando em procissão phantastica, tunicas de linho ao vento, cabellos ornados de sequins, e olhos de terrivel belleza, todos os estranhos typos da judia lendaria, desde Maria, a suprema innocencia, até Thamar, a suprema culpa!
—E a pesca? hão de os senhores perguntar. Bom Deus, nem me recordo!... Nem sei inda agora explicar, porque o archote se apagou sem nós sentirmos, e o primeiro sol nos veio surprehender abraçados no fundo da guiga!
Oh! a deliciosa pescaria!...