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Capítulo 2 — O Filho Abandonado
ОглавлениеÉ de calcular a educação que tal homem daria aos filhos; nem dele se podia esperar outra conduta do que a observada com o primogénito, a quem abandonou, não por maldade ou passados agravos conjugais, mas por verdadeiro esquecimento. Enquanto o pai se entregava a impingir a todo o mundo choros e lamentos, e a tornar a sua casa no mais grosseiro dos bordéis, crescia a terna criança sob os cuidados de Grigory, o velho e fiel criado da família graças ao qual escapou de completo desamparo e miséria.
Porque, ao princípio, todos, até a família de sua mãe, se afastaram. Morto o avô, a viúva refugiou-se em Moscovo, onde uma grave doença a retinha. As tias, casadas, só podiam dar atenção aos próprios filhos e Mitya teve que passar um ano inteiro com Grigory no pavilhão destinado aos criados. Ali o deixaria Fedor se se recordasse que tinha um filho, pois não vamos admitir que o esquecimento da sua paternidade fosse eterno, nem que quisesse que a criança fosse testemunha dos seus vícios vergonhosos. Isto não pôde, no entanto, ser comprovado, porque, de Paris, chegou um primo da mãe de Mitya.
Pyotr Alexandrovitch Miusov, que havia de passar grande parte da vida no estrangeiro, era já um moço que se destacava na família pela cultura e certas boas maneiras europeias, adquiridas à sua passagem pelas principais capitais. Declarara-se abertamente partidário do liberalismo que explodia nessa altura, honrando assim a amizade que no decorrer da sua carreira o uniu aos homens mais cultos e avançados da época. Conhecera pessoalmente Proudhon e Bakunin e, durante a velhice, agradava-lhe bastante relatar as jornadas da revolução de fevereiro de 1848, deixando transparecer nas suas palavras a glória que lhe coube nas barricadas de Paris. Esta data guardava, sem dúvida, as recordações mais gratas da juventude. Era dono e senhor de umas mil almas (para designar a sua propriedade à moda antiga) num feudo que, no fim dos arrabaldes da cidade, estava ligado às terras de um famoso mosteiro a cujos monges levantou uma ação interminável logo que entrou na posse da herança, não sei se sobre certo direito de pescar no rio ou de cortar lenha no bosque. O necessário era cumprir o dever de cidadão e de homem culto, e atacar os clérigos de qualquer modo.
Quando soube da morte de Adelaide Ivanovna, por quem sentira uma doce inclinação, e o vergonhoso viver de Mitya, quis intervir, ainda que todo o seu sangue jovem fervesse de indignação e desprezo por Fedor Pavlovitch. Visitando este último, expôs-lhe plenamente o desejo de tomar o encargo da educação do filho. Contava, mais tarde, com uma particularidade surpreendente que, quando começou a falar de Mitya, Fedor Pavlovitch o olhou por longo espaço de tempo como se não compreendesse de que rapazinho pudessem estar a falar e se mostrou surpreendido ao saber que tinha um filho em casa. Poderá haver certo exagero nisto, mas aproxima-se muito da verdade.
Fedor Pavlovitch passava todo o tempo atuando no palco da vida, ansioso por representar um papel surpreendente, embora destoasse sempre com as circunstâncias episódicas que vivera e sempre com desvantagem para a sua pessoa, como no caso a que nos referimos. Na verdade, este pormenor caracteriza grande número de mortais que põem na sua atuação mais ou menos destreza.
Pyotr Alexandrovitch tratou do assunto com energia e conseguiu ser nomeado cotutor com Fedor. Mitya, a quem cabia uma pequena propriedade da herança materna, passou à custódia do tio; mas como o célebre cavalheiro se apressou a regressar a Paris para assegurar as rendas dos seus domínios, deixou o rapaz à guarda de umas primas de Moscovo, e a vida parisiense e os dias agitados da revolução de fevereiro, que tão definitivamente o impressionaram para o resto da vida, distraíram-no até esquecer por completo a tutela. Morta a tia de Moscovo, Mitya foi para casa de outra e creio que continuou a mudar de asilo mais quatro vezes; mas não posso deter-me nesta peregrinação quando me resta tanto para dizer do primeiro filho de Fedor Pavlovitch. Limitar-me-ei a apontar os factos essenciais que me permitam entrar plenamente na minha história.
Digamos, antes de mais, que este Mitya, ou melhor, Dmitri Fedorovitch, foi o único dos três irmãos que cresceu planeando emancipar-se com a sua fortuna ao chegar à maioridade. A mocidade transcorreu-lhe tão desordenada como a infância. Malogrou a carreira empreendida ao entrar numa escola militar; foi enviado ao Cáucaso e obteve promoções; bateu-se em duelos, foi degradado, recuperou as «estrelas» e levou sempre uma vida turbulenta e dispendiosa. Conheceu então o pai, junto de quem o levou somente o propósito de esclarecer a herança.
Estas relações não provocaram o menor afeto filial na sua alma nem foram duradouras. Apressou-se a partir logo que conseguiu determinada soma e a promessa de futuras remessas dos rendimentos das suas terras, acerca de cujas rendas e valor — caso digno de se notar — não conseguiu quaisquer informações do pai. É também de notar que, naquela altura, começou o pai a perceber os vagos e exagerados planos que o filho forjava para os bens que possuía, o que o contentou grandemente pelo muito que lhe ia facilitar os seus avessos planos. Pensou que o moço, frívolo, arrojado, impetuoso, desleixado e impaciente se daria por muito feliz — pouco lhe importava que passageiramente — por receber dinheiro. Em consequência, resolveu tirar partido desta vantagem, enviando-lhe de quando em quando pequenas somas por conta. E quando, quatro anos mais tarde, Mitya regressou devorado pela ansiedade de regular definitivamente a questão com o pai, soube em terrível sobressalto que nada lhe restava, que recebera já toda a herança em dinheiro, que por vários acordos formulados de antemão, segundo o seu expresso desejo, não tinha direito de esperar nada, etc., etc. Mitya deixou-se abater, receando traições e fraudes que o traziam fora de si. Esta deceção iria provocar a tragédia que consistiu o assunto, ou melhor, a essência da primeira parte da minha obra. Mas, antes, digamos qualquer coisa dos outros dois filhos de Fedor e da esposa de quem os teve.