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Capítulo 4 — Aliocha

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Por esta altura contava vinte anos, seu irmão Ivan tinha vinte e três, e vinte e sete o mais velho, Dmitri. Declaro que este Aliocha não era fanático e ainda estou convencido de que não chegava a místico. Prefiro dar a minha sincera opinião desde o princípio, dizendo que era simplesmente um precoce filantropo e que elegeu a vida monástica porque o seduziu então como uma porta que se lhe abria nas trevas da iniquidade mundana às claridades da paz e do amor. E levou-o a lançar-se-lhe com júbilo o ser extraordinário que, lá dentro, lhe estendia os braços: o nosso famoso e venerável Zossima, a quem se ligou com todo o afeto do seu ardente coração. Não negarei que, por esses tempos, era dominado por um caráter muito raro e que foi original desde o berço. Já afirmei que manteve toda a vida a recordação do rosto da mãe e das suas carícias: «Parece que a estou a ver a meu lado.» É sabido que tais recordações se podem guardar desde uma idade muito tenra, mesmo a partir dos dois anos, mas só como vislumbres nas trevas da vida, como fragmentos de um quadro que escapou aos agentes que borravam o resto da pintura. Assim se guardavam dentro de si. Recordava uma janela aberta à ténue brisa de uma tarde de verão; os fracos raios do Sol poente foi o que melhor impresso ficou na sua mente. Num recanto da sala, uma imagem bendita ante a qual ardia uma lamparina e se prostrava sua mãe, agitada por soluços, como que atacada de histerismo, em pranto clamoroso, segurando-o nos braços, apertando-o contra o seio a ponto de o magoar, rogando pela criança à Mãe de Deus e erguendo-o depois até à imagem como que para pô-lo sob a proteção da Virgem... e logo aparecia uma criada que o arrancava com terror do regaço maternal. Era este o quadro. O rosto da mãe, naquele transe, estava iluminado pelo delírio, mas formosíssimo, segundo confessava o filho aos raros confidentes desta visão retrospetiva.

Desde criança mostrou-se muito pouco expansivo. Detestava tanto a loquacidade quanto amava o silêncio, e não por desconfiança, mau humor ou misantropia, mas por certa preocupação íntima e pessoal que em nada se relacionava com o próximo, mas tão arreigada que ameaçava afastá-lo de todos. E a verdade é que queria tanto ao próximo que se bem que ninguém pudesse tomá-lo por bobo ou incauto, parecia ter-lhe confiado implicitamente toda a sua vida. Certas delicadezas de trato deixavam transparecer que não se permitia julgar os demais, que nunca tomaria o direito de criticar os atos alheios nem condenar ninguém por coisa alguma. Vivendo aos vinte anos no lar paterno convertido num asqueroso lugar abominável, retirava-se em silêncio quando a sua pureza não suportava certas cenas, mas sem deixar sequer antever que mereciam desprezo e maldição. O pai, que além de ser impertinente e brigão recordava os próprios anos de parasita, olhava-o a princípio com receio e resmungando sempre: «Nada diz, mas cisma muito.»

Onde quer que fosse, este moço conquistava logo a estima de quem com ele tratava. Quando chegou à casa senhorial do seu benfeitor Yefim Petrovitch Polenov, toda a família ficou presa a ele até ao ponto de o tratar como a um filho. A sua tenra idade permite atribuir isto aos desígnios de conquistar afeto com artifícios. Fazia com que lhe quisessem espontaneamente por uma virtude inata que brotava, por assim dizer, da sua alma e do seu sangue. E o mesmo sucedia na escola, embora se assemelhasse a um desses rapazes destinados a atrair a desconfiança, a burla e a malvadez dos companheiros, porque era meditabundo e apartadiço, e desde os primeiros anos gostava de se retirar para um canto para ler tranquilamente. Contudo, foi o favorito enquanto frequentou a escola e, embora raramente o vissem divertido ou jovial, ninguém lho levava a mal sabendo-o franco e bondoso. Nunca tentou distinguir-se entre os companheiros e talvez por isso não temesse ninguém. Os próprios rapazes compreenderam que não era orgulhoso de si mesmo e parecia não se precaver com o seu ânimo e valentia. Nunca se mostrou ofendido e quando isso se justificaria, dirigia a palavra ou respondia a quem o injuriava com tal confiança e candura que ninguém acreditaria que se tivesse passado alguma coisa. E não é que se esforçasse por esquecer a afronta, mas que não se considerava nunca ofendido. Isto cativava os companheiros. É de notar uma característica a que ficou a dever o facto de todos os rapazes se juntarem para rir de Alexey, mais por vontade de se divertir do que por malícia. Não podia ouvir certas palavras e conversas alusivas ao outro sexo. Há certas frases picantes tão arreigadas entre os estudantes que até rapazes puros de coração e pensamento, quase ainda crianças, mostram uma afeição desmedida em as referir em voz alta relacionando-as com pinturas e imagens, com tal à vontade que ruborizariam até um soldado. Muitos veteranos ignoram certos pormenores muito familiares aos jovens da nossa classe alta e intelectual. E não é depravação amoral ou cinismo, embora talvez pareça, que os envaidece como se se tratasse de uma prova de refinamento, de masculinidade, de agudeza, de algo estimável e digno de imitação. Mas Aliocha tapava os ouvidos para não ouvir obscenidades e então os seus condiscípulos afastavam-lhe as mãos à força e lançavam-lhe uma rajada de grosserias de cada lado, enquanto ele opunha resistência conforme podia, caía ao chão e tratava de se escapulir sem uma palavra de recriminação, suportando os insultos em silêncio. Acabavam por deixá-lo e até pararam de lhe aplicar a alcunha de «menina», vendo no seu recato natural uma debilidade digna de compaixão. É preciso ainda dizer que era dos mais aplicados, embora nunca alcançasse o primeiro lugar na classe.

Quando morreu Yefim Petrovitch, faltavam dois anos a Aliocha para acabar os estudos na academia da província. A inconsolável viúva partiu em seguida para uma grande viagem por Itália, em companhia das filhas, e Aliocha passou a viver com duas senhoras, parentes longínquas de Yefim a quem nunca vira. Isto pouco importava ao jovem; nunca o preocupou quem o mantinha. Oferecia um verdadeiro contraste com o irmão, Ivan, que lutou com necessidades durante os primeiros anos da sua carreira, mantendo-se com o próprio esforço e a quem amargurava, já em criança, pensar que vivia da caridade. Mas no meu entender esta particularidade de Aliocha não se deve criticar muito severamente, pois por pouco que se o conhecesse descobria-se nele um desses jovens do tipo dos religiosos entusiastas que, se entram de repente na posse de uma fortuna, não tardam a desfazer-se dela em obras de caridade ou em favor do primeiro malandro que lhes aparece. Ignorava o valor do dinheiro; claro que não num sentido literal, e quando obtinha algum, sem nunca o pedir, era-lhe igual gastá-lo num momento ou deixá-lo para sempre no bolso por não saber que fazer-lhe.

Anos atrás, Pyotr Alexandrovitch Miusov, homem muito impressionável no tocante a riquezas, dizia de Aliocha:

— É uma pessoa a quem poderíeis abandonar com os bolsos vazios entre um milhão de habitantes sem lhe causar grande dano; não morreria de fome nem de frio, embora não conhecesse ninguém. Alguém lhe ofereceria num momento amparo e alimentação e, quando não, ele mesmo encontraria, sem esforço nem humilhação, um protetor a quem, longe de se lhe tornar uma carga, proporcionaria verdadeiro prazer.

Um ano antes de terminar os estudos na academia anunciou às senhoras que partia para ver o pai a fim de resolver um assunto. As senhoras, ainda que desgostosas e cheias de pesar, não lhe consentiram que empenhasse o relógio, preciosa recordação do seu benfeitor, para a custosa viagem. Entregaram-lhe dinheiro de sobra e equiparam-no esplendidamente de roupa. Aliocha devolveu-lhes metade da quantia monetária, declarando o seu desejo de viajar em terceira classe. Ao chegar à cidade, e à pergunta do pai por que vinha sem acabar os estudos, não deu resposta e permaneceu algumas horas como que absorto. Logo se deu conta de que queria visitar a campa da mãe e, ao princípio, desejou veementemente que fosse este o único objetivo da sua viagem; mas era demasiado difícil admitir que não havia outro motivo. Provavelmente, o próprio Aliocha não compreendia ou não podia explicar que voz imperiosa se fazia ouvir na sua alma, obrigando-o a tomar uma senda nova, desconhecida, mas inevitável. Fedor Pavlovitch não sabia dizer onde se encontrava enterrada a segunda mulher. Desde que lançara os primeiros punhados de terra sobre o ataúde, não se preocupara em voltar mais ao cemitério, e com os anos esqueceu por completo o sítio onde fora aberta a cova.

Além disso, Fedor Pavlovitch não estivera sempre na cidade. Três ou quatro anos após a morte da mulher viajou pelo Sul da Rússia e instalou-se em Odessa durante vários anos. Começou, segundo contava, relacionando-se com «uma porção de judeus maltrapilhos e toda a sua parentela, e acabou por ser admitido em casa dos mais endinheirados com a mesma consideração que na dos mais miseráveis». É de supor que nessa altura se desenvolveu nele uma pequena destreza para adquirir e amontoar dinheiro. Chegou à nossa cidade só três anos antes de Aliocha. As antigas amizades acharam-no terrivelmente envelhecido, ainda que muito distante da senilidade. O velho manhoso mostrava-se muito próspero a difundir a sua vaidade entre os outros; a sua depravação com mulheres era ainda mais repugnante e, em pouco tempo, semeou a comarca de tabernas. Dono de cem mil rublos, ou pouco menos, muitos vizinhos da cidade e conterrâneos lhe ficaram prontamente devedores e estavam, portanto, a bom recato. Mais tarde parecia muito inchado, mais irresponsável, mais vaidoso e incoerente; começava uma coisa, logo a abandonando para começar outra, como se estivesse transtornado. Cada dia eram mais frequentes as suas bebedeiras e, se não fosse o criado Grigory, que também envelhecera consideravelmente e o tratava como um tutor, ter-se-ia visto em gravíssimos apuros.

A chegada de Aliocha pareceu afetar a sua moralidade, como se despertasse qualquer coisa que, havia tempo, estava morta na alma daquele velho.

— Sabes que te pareces imenso com a pobre louca? — perguntava ao contemplar a semelhança entre o filho e a mãe.

E foi Grigory quem mostrou a Aliocha a campa da «pobre louca», como lhe chamava o viúvo. Acompanhou-o até ao cemitério e mostrou-lhe, num canto afastado, um modesto epitáfio de ferro fundido com o nome e a idade da defunta e a data da sua morte e, abaixo, uma estrofe segundo a moda antiga da classe média. Surpreendeu o jovem que tudo aquilo fosse obra de Grigory; este colocara o epitáfio sobre a sepultura da «pobre louca», pagando-o do próprio bolso quando se cansou de o pedir em vão ao amo antes da partida deste para Odessa sem ter cuidado da campa nem de nada. Aliocha não revelou grande emoção perante o espaço de terra onde jazia sua mãe e escutou cabisbaixo o relato solene e minucioso da construção do simples monumento, retirando-se em seguida sem articular palavra. E já não voltou ao cemitério senão depois de passado, pelo menos, um ano.

Este episódio tão insignificante influenciou Fedor Pavlovitch de maneira bem original. Num arrebatamento, pegou em mil rublos e deu-os ao mosteiro para que dissessem missas de requiem por sua mulher; não pela mãe de Aliocha, a «pobre louca», mas pela primeira, Adelaide Ivanovna, que parecia assombrá-lo. Embriagou-se naquela mesma noite e encheu de injúrias os monges, em frente de Aliocha. Longe de ser devoto, pode dizer-se que nunca na sua vida acendeu uma vela a um santo; mas com frequência se dão tais tipos a esses súbitos impulsos de sentimentalismo.

Já apontei que parecia inchado. Os traços do rosto eram testemunho fiel de toda a sua vida relaxada. Por entre os enormes papos que existiam nele viam-se uns olhos pequeninos que encaravam as pessoas sempre descaradamente, entre suspeitosos e irónicos; as rugas que sulcavam as faces e a nudez da garganta que se destacava em várias papadas sob a barba pontiaguda davam uma impressão repulsiva de sensualismo. A boca abria-se, demasiado grande e de lábios grossos, por onde espreitava a ruína de uma dentadura em péssimo estado. Começava sempre a falar arfando. Gostava de se servir do próprio rosto para gracejar, mas creio que o satisfazia possuí-lo; por qualquer coisa dedicava um cuidado especial ao nariz, de conspícuo e delicado perfil aquilino.

— Um perfeito nariz de romano — comentava com orgulho. — Com a minha barbicha, tenho todo o aspeto de um velho patrício na decadência.

Poucos depois, Aliocha comunicava-lhe sem preâmbulos o seu maior e mais santo desejo de entrar no convento, onde já o aguardavam os monges de braços abertos, e pedia-lhe a necessária autorização. O astucioso velho, que adivinhava quão vivamente o venerável Zossima, que vivia num retiro no eremitério, impressionara o seu «belo rapaz», escutou o pedido pensativo e em silêncio, e sem deixar antever a menor surpresa começou em jeito de sermão:

— Este é o mais honrado dos monges, desde já. Bem! Com que então queres viver com ele, meu belo rapaz!...

Estava quase bêbado e gesticulava com esses gestos lentos em que o alcoólico parece tentar uma infeliz luta.

— Bem! Já pressentia que acabarias com qualquer coisa nesse estilo. Acreditas em mim? E fazes bem, caramba! Já tens os dois mil rublos que serão o teu dote; além disso, nunca te abandonarei, meu anjo; darei por ti tudo o que me pedirem, se mo pedirem. Mas claro que se nada pedem, porque havemos de nos atormentar? Não te parece? Afinal tu não gastas mais do que um canário, dois grãos por semana. Bom! Sabes que junto de um convento há sempre um lugar onde nem as crianças ignoram que vivem as «mulheres dos monges», como lhes chamam? Trinta fêmeas, creio! Eu mesmo as vi. Digo-te que são de primeira, pois que na variedade está o gosto. O mal é que todas são russas de respeito; não há francesas. Claro que lhes sobra dinheiro para as poderem trazer quando quiserem. Se soubessem como é bom, fá-las-iam acudir de todo o lado. Bom, aqui não há nada disso: os monges não têm amigos, vivem honestamente e jejuam, concedido... Bom, bom... Com que então desejas fazer-te monge? Digo-te que me causa verdadeira tristeza a nossa separação, Aliocha. Queres acreditar que te idolatrava? Bem, és uma dádiva da providência; tu rogarás por nós, pecadores, porque se pecou muito, muito nesta casa. Sempre me preocupei sem saber quem quereria rezar por mim e duvidava se encontraria alguém no mundo que quisesse encarregar-se desse trabalho, porque se me vens com rezas e pregações tenho que confessar-te que sou um solene estúpido! Não fazes ideia!... Um solene estúpido! Mas repara; por parvo que seja em assuntos celestiais, pensei neles. Pensei algumas vezes, não julgues que foi sempre. É impossível que, quando morrer, os diabos não deixem de me arrastar com as suas cadeias. E o que me intriga são as cadeias. De onde as tiram? De que são? De ferro? Em que lugar se forjam? Possuem lá uma forja? Os monges do mosteiro devem crer que no inferno há um teto, por exemplo. É mais distinto, mais explicável, mais luterano, isso é. Depois de tudo, pouco importa que haja ou não haja teto; mas esse teto implica uma endiabrada questão, sabes? Se lá não existem fábricas, não pode haver cadeias, e se não há cadeias vem tudo por água abaixo e não temos mais em que pensar; o que também é inverosímil porque, então, como me arrastariam para o inferno? E se não me arrastam para o mais fundo, que justiça há neste mundo? Seria preciso inventá-las, estas cadeias, mesmo que só para mim, porque se tu soubesses, Aliocha, que patife eu sou...

— Mas ali não fazem falta as cadeias! — assegurou Aliocha, olhando seu pai com doçura e seriedade.

— Sim, sim; já nem há sombras das cadeias. Já sei, já sei. Ouve como um francês pinta o inferno: J'ai vu l'ombre d'un cocher, qui avec l'ombre d'une brosse frottait l’ombre d'une carosse. Mas quem te disse que não existem tais cadeias, querido? Quando estiveres entre os monges, dançarás a outro compasso. Parte e procura a verdade, e então vem dizer-me o que há de certo. Qualquer caminho para o outro mundo nos será mais cómodo se soubermos o que ali se passa. Além disso, é mais conveniente para ti a companhia dos monges do que a de um velho bêbado e a de mulherzinhas... embora, como és um anjo, nada te manche. Era capaz de jurar que nem lá diminuirá a tua pureza; deixo-te ir, porque assim o espero. Agora pões nesse teu desejo todos os sentidos, toda a inteligência. Ao princípio arderás até te consumires, mas em se acabando a tua fogosidade voltarás para casa. Aqui te aguardarei; vejo que és a única pessoa no mundo que não me condena. Acredita em mim, meu filho, que o adivinho; não posso deixar de o adivinhar.

E começou a choramingar. Era um sentimental; tão malvado como queiram, mas um sentimental.

Fiódor Dostoiévski: Os Irmãos Karamazov

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