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VIII
SUCCESSO DO SALTO SANTO ANTONIO

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Entretanto o coronel Baez, vindo do Brazil, tinha-se reunido a nós com perto de duzentos homens de cavallaria.

O general Medina reunia as suas forças, e nós esperavamol-o de dia para dia. Com effeito, a 7 de fevereiro de 1846, recebi uma mensagem d'elle que, me avisava que no dia seguinte se acharia sobre as alturas de Zapevi com quinhentos cavalleiros.

Pedia noticias do inimigo, e um soccorro em caso de ataque.

O seu mensageiro levou o aviso de que a 8 eu estaria com forças suficientes, para proteger sua entrada no paiz, nas alturas do Zapevi.

Em virtude d'isto pelas nove horas parti com cento cincoenta homens da legião e duzentos cavalleiros, costeando o Uruguay.

Dirigimo-nos ás Laperas, a tres leguas pouco mais ou menos do Salto, flanqueados por quatrocentos inimigos pertencentes ao corpo do general Servando Gomes, unicas forças, que n'aquelle momento se achavam em observação no Salto.

A nossa infanteria tomou posição sob um zapère– um zapère é um tecto de palha suspenso por quatro paus – o qual não nos offerecia outra vantagem senão de nos livrar dos abrasadores raios do sol.

A cavallaria, commandada pelo coronel Baez e o major Carvalho, estendia-se até ao Zapevi.

Anzani tinha ficado em defeza do Salto, doente de uma perna, e com elle doentes tambem trinta ou quarenta soldados.

Alem d'isto uma duzia de homens estavam de guarda á bateria.

Eram perto das onze horas da manhã; vi avançar, das planicies do Zapevi para as alturas onde eu me achava um consideravel numero de inimigos a cavallo; quasi ao mesmo tempo apercebi-me de que cada cavalleiro trazia um soldado de infanteria na garupa. E com effeito a pouca distancia das alturas em que me achava, os cavalleiros se alargaram e pozeram em terra seus companheiros os quaes logo se prepararam a marchar sobre nós.

A nossa cavallaria abriu fogo contra o inimigo; mas, como a sua superioridade de numero era muita foi posta promptamente em fuga.

Fugindo a nossa cavallaria, se dirigiu para o zapère ao qual já chegavam as ballas inimigas.

Então, comprehendendo que a verdadeira resistencia era com os meus bravos legionarios, e que onde elles estivessem estaria a victoria, corri em sua direcção; mas, quando chegava ás primeiras fileiras no meio do fogo inimigo, senti repentinamente que o meu cavallo me faltava debaixo do corpo, e cahindo me arrastava comsigo.

Minha primeira idea foi que vendo-me cahir, a minha gente ia julgar-me morto e que esta supposição poderia pôl-os em desordem. Quando cahi tive, pois, a presença de espirito de tirar uma pistolla dos coldres, e alevantando-me logo, desfechei-a para o ar, afim de que se visse que estava são e salvo.

Defeito, haveria apenas tempo de me vêr em terra quando já estava levantado e cercado dos meus.

Entretanto o inimigo avançava sempre, com mil e duzentos homens de cavallaria e trezentos de infanteria.

Abandonados pela nossa cavallaria, tinhamos ficado ao todo cento e oitenta e dois. Eu não tinha tempo de fazer um longo discurso; além de que tambem não era esse o meu forte. Elevei a voz e não disse senão estas palavras:

– Os inimigos são numerosos; nós somos poucos; tanto melhor! quanto menos somos tanto mais glorioso será o combate. Socego e não façamos fogo senão no fim e carreguemos á bayoneta.

Estas palavras eram ditas a homens sobre os quaes cada uma d'ellas fazia o effeito de uma faisca electrica.

Além disso, qualquer outra determinação teria sido funesta. A perto de uma milha sobre a direita tinhamos o Uruguay com alguns pequenos bosques; mas uma retirada em tal crise, teria sido o signal da perda de todos; tinha-o já comprehendido por isso não pensei em tal.

Chegada quasi a sessenta passos de nós a columna inimiga fez uma descarga que nos causou grande damno; mas os nossos lhe responderam por uma fuzilaria muito mais mortifera, tanto mais que as nossas espingardas eram carregadas não só de ballas, mas ainda de outros projectis.

O commandante da infanteria cahiu mortalmente ferido; as filas abriram-se, e, á frente dos meus bravos com uma espingarda na mão eu os metti n'uma carga pronunciada.

Era tempo: a cavallaria estava já sobre os flancos, e na rectaguarda.

A refrega foi terrivel.

Alguns homens da infanteria inimiga deveram sua salvação a uma fuga rapida. Isto deu-me tempo de fazer frente á cavallaria.

A nossa gente rodou como se cada um houvesse recebido ordem de executar esta manobra.

Todos combateram, officiaes e soldados, como gigantes.

Uma vintena de cavalleiros então, conduzidos por um bravo official chamado Vega, tendo vergonha da fuga de Baez e da sua gente, que nos deixavam sós, voltaram a toda brida, estimando mais partilhar a nossa sorte que continuar uma retirada vergonhosa.

Vimol-os repentinamente atravessar pelo meio do inimigo e collocar-se a nosso lado.

Havia, eu vol-o affirmo coragem n'esta resolução.

Alem d'isto a carga que elles executaram juntando-se a nós, serviu-nos muito n'este critico momento porque separou e fez cahir o inimigo do qual uma parte se tinha posto em perseguição dos fugitivos.

Tambem na nossa segunda descarga a cavallaria vendo a sua infanteria destruida e vinte cinco ou trinta homens dos seus cahir debaixo do nosso fogo, fez um passo de retirada e poz em terra perto de seiscentos homens que armando-se de caravinas nos rodearam de todos os lados.

Tinhamos ao redor de nós um espaço de terreno coberto de cadaveres de cavallos e homens assim nossos como inimigos.

Poderia contar innumeraveis actos de bravura individual.

Todos combateram como os nossos antigos heroes do Tasso e de Ariosto; muitos estavam cobertos de feridas de toda a sorte, ballas, golpes de sabre, e pontadas de lança.

Um joven clarim de quinze annos que nós chamavamos o vermelho, e que nos animava durante o combate com o seu clarim, foi ferido com uma lançada. Largar o clarim, tomar o sabre e lançar-se sobre o cavalleiro que o tinha ferido, foi obra de um instante.

Só depois de o ferir, é que expirou.

Depois do combate os dois cadaveres foram encontrados agarrados um ao outro. O mancebo estava coberto de feridas; o cavalleiro tinha na coxa da perna o signal de uma profunda mordedura que lhe havia dado o seu inimigo.

Do lado dos nossos adversarios houve tambem actos de prodigiosa temeridade. Um d'elles vendo que a especie de curro ao redor do qual estavamos agrupados, se não era uma fortaleza contra as ballas, era pelo menos um abrigo contra o sol, tomou um tissão inflammado, correu a cavallo a toda a brida, e passando lançou como um relampago o tissão sobre o tecto de palha.

O tissão cahiu por terra sem preencher o fim do cavalleiro; mas o que tinha ali deitado tinha executado uma acção temeraria.

Os nossos iam atirar sobre elle; e eu impedi-os bradando:

– É preciso conservar os bravos; são da nossa raça.

Ninguem lhe fez fogo.

Era para ver-se como todos estes bravos me escutavam.

Uma palavra minha dava força aos feridos, coragem aos hesitantes, e redobrava o ardor dos fortes.

Quando vi o inimigo dizimado pelo nosso fogo, cançado da nossa resistencia, então sómente fallei de retirada, dizendo apenas: Retiremo-nos! mas:

– Retirando-nos não deixaremos um só ferido no campo de batalha.

– Não! não! gritaram todas as vozes.

Feridos eramos nós quasi todos.

Quando vi todos silenciosos e firmes, dei tranquillamente ordem de retirar combatendo.

Por felicidade não tinha uma beliscadura, o que me permittia de estar em toda a parte, e quando um inimigo se aproximava de nós temerariamente fazia-o arrepender da sua temeridade.

Os poucos homens sãos que havia entre nós cantavam hymnos patrioticos aos quaes os feridos respondiam em côro.

O inimigo nada d'isto comprehendia. O que nós mais soffriamos era falta de agua.

Uns arrancavam raizes e mastigavam-n'as; outros sugavam nas ballas; alguns beberam a propria ourina.

Emfim veiu a noite e com ella algum frescor.

Serrei os meus homens em columna, e colloquei os feridos no meio.

Sómente dois que era impossivel transportar deixei no campo de batalha. Recommendei muito á minha gente de não se dispersar, e de retirar na direcção de um pequeno bosque.

O inimigo tinha-se apoderado d'elle antes de nós, mas foi repellido d'ahi vigorosamente.

Enviei então exploradores, que voltaram a dizer-me que o inimigo tinha quasi toda a sua gente em terra, e os cavallos andavam pastando. Sem duvida havia-se elle persuadido que a causa da nossa paragem era a fome e falta de munições; mas fome não a sentiamos; quanto a munições, tinhamos encontrado nos nossos adversarios mortos o que nos faltava.

Todavia o mais difficil ainda não estava feito.

O inimigo estava acampado entre nós e o Salto: depois de um descanço de uma hora, que lhe fez julgar que ficariamos toda a noite onde estavamos, ordenei á minha gente de se formar em columna, e a marche-marche lançámo-n'os impetuosos sobre elles.

Os clarins inimigos soaram dando o signal de pôr a postos; mas antes que cada homem se fixasse na sella e tomasse as rédeas, nós tinhamos já passado.

Dirigimo-nos de novo para uma especie de bosque. Uma vez abrigado entre as arvores dei ordem a todos os meus de se deitarem com o ventre para terra. O inimigo dirigia-se para nós, sem nos ver, tocando á carga.

Deixei-o approximar a cincoenta passos do bosque e então sómente gritei «Fogo» dando eu o exemplo.

Vinte e cinco ou trinta homens e outros tantos cavallos cairam; o inimigo voltou á brida, e reentrou no seu acampamento. Então disse aos meus:

– Vamos, meus filhos, julgo que chegou o momento de ir beber.

E costeando sempre o nosso pequeno bosque, levando nossos feridos, tendo a distancia os nossos mais implacaveis inimigos, que não queriam abandonar-nos, ganhamos a margem do rio. Á entrada da aldeia esperava-nos uma grande emoção: Anzani estava ali chorando de alegria.

Abraçou-me primeiramente e quiz abraçar todos os outros depois de mim.

Anzani tambem tinha tido seu combate: tinha sido com alguns homens atacado pelo inimigo, que antes do combate lhe tinha intimado de se render, dizendo-lhe que eramos todos mortos ou prisioneiros.

Mas Anzani havia respondido:

– Os italianos não se rendem; descampae todos ou então esmago-vos com os meus esquadrões. Em quanto eu tiver comigo um dos meus companheiros, combateremos juntos, e quando estiver só, então porei fogo á polvora e me farei saltar comvosco pelos ares.

O inimigo não quiz saber mais nada, e retirou-se. A minha gente que se achava no Salto encontrando tudo em abundancia dizia dirigindo-se a mim:

– Tu nos salvaste a primeira vez; mas Anzani nos salvou segunda!

No seguinte dia escrevi esta carta á commissão da legião em Montevideo:

«Irmãos.

«Antes de hontem tivemos nos campos de Santo Antonio, a legua e meia da cidade, o mais terrivel e mais glorioso de nossos combates. As quatro companhias da nossa legião e vinte homens de cavallaria, refugiados sob a nossa protecção, não sómente se defenderam contra mil e duzentos homens de Servando Gomes, mas destruiram inteiramente a infanteria inimiga que os tinha assaltado no numero de trezentos homens. O fogo começou ao meio dia e acabou á meia noite.

«Nem o numero dos inimigos, nem suas cargas repetidas, nem sua massa de cavallaria, nem os ataques de espingardeiros a pé, poderam nada contra nós; ainda e que não tivessemos outro abrigo mais que um curro arruinado sustido por quatro pilares, os legionarios repelliram constantemente os assaltos dos inimigos furiosos; todos os officiaes se transformaram em soldados n'este dia; Anzani que tinha ficado no Salto e ao qual o inimigo intimou ordem de se render, respondeu com o morrão na mão e o pé na bateria, ainda que o inimigo lhe havia assegurado que nós eramos todos mortos ou prisioneiros.

«Tivemos trinta mortos e cincoenta feridos; todos os officiaes foram feridos levemente, excepto Scarone, Saccarello mais velho e Traversi.

«Hoje não dou o meu nome de legionario italiano por um mundo de ouro.

«Á meia noite pozemo-nos em retirada sobre o Salto; ficámos pouco mais de cem legionarios sãos e salvos. Os que só haviam sido levemente feridos marchavam á frente para cortar o inimigo quando elle se adiantasse muito.

«Ah! é um combate o qual merece ser gravado em bronze!

«Adeus! D'outra vez serei mais extenso. Vosso,

José Garibaldi.

«P. S. Os officiaes feridos são Casana, Marochetti, Beruti, Remorini, Saccarello mais novo, Sacchi, Grafigna e Rodi.»

Foi esta a nossa ultima refrega importante em Montevideo.

Memorias de José Garibaldi, volume II

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