Читать книгу O Napoleão de Notting Hill - Гилберт Честертон, Gilbert Keith Chesterton, Лорд Дансени - Страница 3

Livro I
O Homem de Verde

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Poucas palavras são necessárias para explicar por que a Londres de daqui a cem anos será muito parecida com a de agora, ou melhor, dado que devo falar a partir de um passado profético, por que Londres, quando a minha história começa, é muito parecida daquela dos dia invejáveis enquanto ainda estava vivo.

A razão pode ser expressa em uma frase. As pessoas tinham perdido absolutamente a fé em revoluções. Todas as revoluções são doutrinárias, tais como a francesa, ou a que introduziu o cristianismo. Pois para o senso comum não se pode virar todo o existente, os costumes e compromissos, a menos que acredite-se em algo transcendente, algo positivo e divino. Agora, a Inglaterra, durante este século, perdeu toda a crença nisso. Passou a acreditar em algo chamado Evolução. E disse: “Todas as mudanças teóricas acabaram em sangue e tédio. Se mudarmos, temos de mudar lentamente e com segurança, como os animais fazem. As revoluções da natureza são as únicas bem-sucedidas. Não houve reação conservadora em favor das caudas.”

E algumas coisas mudaram. Coisas em que não se reparava muito sumiram de vista. Coisas que aconteciam poucas vezes passaram a não acontecer de todo. Assim, por exemplo, a força física real de governar o país, os soldados e policiais, ficaram cada vez menores, até quase desaparecer. As pessoas combinadas poderiam ter varrido os policiais que restaram em dez minutos: mas não o fizeram, porque não acreditavam que isso iria fazê-las algum bem. Elas tinham perdido a fé em revoluções.

A democracia estava morta, porque ninguém se importava qual classe governante governava. A Inglaterra era agora praticamente um despotismo, mas não hereditário. Alguém na classe oficial era nomeado rei. Ninguém se importava como e ninguém se importava quem. Ele era apenas um secretário universal.

Desta forma, tudo em Londres estava bem quieto. Aquela vaga e um tanto quanto depressiva confiança nas coisas acontecendo como sempre acontecem, que é para todos os londrinos um estado de espírito bem familiar, tinha se tornado uma condição constante. Não havia realmente nenhuma razão para qualquer homem fazer qualquer coisa além do puro hábito.

Portanto, não havia qualquer razão pelo qual três jovens que sempre caminharam em conjunto até o escritório do governo não deveriam caminhar juntos nesta manhã de inverno. Tudo nesta era tornou-se mecânico, principalmente os secretários do governo. Todos esses funcionários se reuniam regularmente em seus postos. Três desses funcionários sempre andavam para a cidade juntos. Toda a vizinhança os conhecia: dois deles eram altos e um baixo. E nesta manhã o secretário baixo estava apenas alguns segundos atrasado para se juntar aos outros dois que passavam por sua porta: ele poderia ultrapassá-los em três passos, ele poderia chamá-los facilmente. Mas não o fez.

Por alguma razão, que nunca será entendida até que todas as almas sejam julgadas (se é que elas serão julgadas, a ideia era, neste momento, classificada como culto fetichista), ele não juntou-se aos seus dois companheiros, mas caminhou firmemente atrás deles. O dia estava cinza, sua vestimenta era cinza, tudo era cinza, mas por algum impulso estranho ele andou rua após rua, distrito após distrito, olhando para as costas dos dois homens, que teriam virado-se ao som de sua voz. Agora, há uma lei escrita no mais escuro dos Livros da Vida, e é esta: Se você olhar para algo novecentas, noventa e nove vezes, você está perfeitamente seguro, se você olhar pela milésima vez, você está sob o terrível perigo de vê-lo pela primeira vez.

Assim, o funcionário do governo mais baixo olhava para as caudas dos casacos dos funcionários do governo mais altos, e rua após rua, esquina após esquina, vendo apenas caudas, caudas, e novamente caudas – quando, sem saber o porquê, algo aconteceu aos seus olhos.

Dois dragões negros estavam andando para trás na frente dele. Os dois dragões negros estavam olhando para ele com olhos malignos. Era verdade que dragões estavam caminhando para trás, mas eles mantinham os olhos fixos nele. Os olhos que ele viu eram, na verdade, apenas os dois botões na parte de trás de uma casaca: talvez alguma memória tradicional da insignificância dos botões deu um destaque imbecil ao olhar. A fenda entre as caudas era a linha do nariz do monstro: sempre que as caudas agitavam com o vento do inverno os dragões lambiam seus lábios. Foi apenas uma fantasia momentânea, mas para o pequeno funcionário ficaria gravada em sua alma para sempre. Ele nunca poderia voltar a pensar em homens vestidos de casacos, exceto como dragões andando para trás. Ele explicou depois, com bastante tato e cortesia, a seus dois amigos oficiais que (enquanto sentia uma consideração inexprimível para com eles) ele não poderia seriamente considerar o rosto deles como qualquer coisa exceto uma espécie de cauda. Era, ele admitiu, um belo rabo, uma cauda elevada no ar. Mas se, segundo ele, qualquer verdadeiro amigo deles desejasse ver seus rostos, para ver dentro dos olhos de suas almas, que ao amigo deve ser permitido andar com reverência atrás deles, de modo a vê-los por trás. Lá, ele veria os dois dragões negros com os olhos cegos.

Quando pela primeira vez os dois dragões negros saltaram no nevoeiro sobre o pequeno funcionário, tiveram meramente o mesmo efeito de todos os milagres – eles mudaram o universo. Ele descobriu o fato que todos os românticos sabem – que aventuras acontecem em dias sombrios, e não nos ensolarados. Quando a corda da monotonia é tensionada ao máximo, então arrebenta com o som de uma música. Ele mal havia notado o clima antes, mas com os quatro olhos mortos fixos nele, olhou em volta e percebeu o estranho dia morto.

A manhã estava invernal e turva, não enevoada, mas escureceu com a sombra da nuvem ou neve que impregna tudo num crepúsculo verde ou cobre. A luz que existe em tal dia não parece vir dos céus claros mas de uma fosforescência apegada às próprias formas. A carga do céu e das nuvens é como uma carga de água, e os homens movem-se como peixes, sentindo que eles estão no fundo de um mar. Tudo numa rua de Londres completa a fantasia, as carruagens e táxis lembram criaturas da profundeza com olhos de fogo. Ele ficou assustado inicialmente ao encontrar dois dragões. Agora descobriu que estava entre dragões marinhos que possuem o fundo do mar.

Os dois jovens que estavam na frente eram, como o pequeno, bem vestidos. As linhas de seus casacos e chapéus de seda tinham a luxuriante severidade que torna o almofadinha moderno, horrível como ele é, num exercício favorito do desenhista moderno: esse elemento que o Sr. Max Beerbohm admiravelmente expressa em falar de “certas harmonias entre o roupas escuras e a perfeição rígida do linho”.

Eles andavam com a marcha de uma lesma afetada, e falaram em largos intervalos, soltando uma frase a cada seis postes.

Eles passavam pelos postes de luz, sua fisionomia tão inabalável que numa descrição fantasiosa quase se poderia dizer que os postes de luz passavam pelos homens, como em um sonho. Então o homem pequeno, de repente correu atrás deles e disse:

– Quero cortar meu cabelo. Sabe de alguma pequena loja em qualquer lugar onde cortam seu cabelo propriamente? Continuo a cortá-lo, mas sempre volta a crescer novamente.

Um dos homens altos o olhou com o ar de um naturalista aflito.

– Ora, aqui é um lugar – gritou o pequeno homem, com uma espécie de alegria imbecil, quando a janela brilhante abaulada de um elegante salão de cabeleireiro brilhou abruptamente no nevoento crepúsculo.

– Sabe, frequentemente encontro cabeleireiros quando ando por Londres. Vou almoçar com vocês em Cicconani. Sabe, sou um grande apreciador de cabeleireiros. São muito melhores do que os desagradáveis açougueiros – e desapareceu pela porta.

O homem chamado James continuou a olhar, com um monóculo encaixado no olho.

– Que diabo fazemos desse sujeito? – perguntou ao seu companheiro, um jovem pálido com um nariz elevado.

O jovem pálido refletiu conscientemente por alguns minutos, e então disse:

– Acho que bateu na cabeça quando era criança.

– Não, não acho que é isso – respondeu o honorável James Barker. – Às vezes imaginava que ele era uma espécie de artista, Lambert.

– Bobagem! – gritou o Sr. Lambert, brevemente.

– Admito que não sei que julgamento fazer dele – retomou Barker, distraído. – Ele nunca abre a boca sem dizer algo tão indescritivelmente imbecil que chamá-lo de bobo parece a mais fraca tentativa de caracterização. Mas há outra coisa que é um pouco engraçada. Sabe que ele tem a maior coleção de laca japonesa da Europa? Já viu os seus livros? Todos os poetas gregos, medievais franceses e esse tipo de coisa. Já esteve em seus quartos? É como estar dentro de uma ametista. E ele move tudo e fala como… como um nabo.

– Bem, dane-se todos os livros. Os seus almanaques também – disse o ingênuo Sr. Lambert, com uma simplicidade amigável. – Você deve entender dessas coisas. O que você acha dele?

– Está acima da minha capacidade – retornou Barker. – Mas como você perguntou a minha opinião, digo que ele é um homem com gosto pelo absurdo, nonsense, como eles chamam, brincadeiras artísticas, e todo esse tipo de coisa. Acredito seriamente que já falou tantas bobagens que confundiu a própria mente e não sabe a diferença entre a sanidade e a insanidade. Foi dar uma volta no mundo mental, por assim dizer, e encontrou o lugar onde o Oriente e o Ocidente são um, e onde extrema idiotice é tão boa quanto a razão. Mas não posso explicar esses mecanismos psicológicos.

– Você não pode explicá-los para mim – respondeu o Sr. Wilfrid Lambert, com candura.

Enquanto passavam as longas ruas para seu restaurante, o crepúsculo de cor de cobre mudou lentamente para um amarelo pálido, e pelo tempo que chegaram estava discernível uma tolerável luz invernal. O honorável James Barker, um dos funcionários mais poderosos do Governo Inglês (por esta altura rigorosamente um funcionário), era um homem jovem magro e elegante, com um rosto branco bonito e tristes olhos azuis. Ele tinha uma grande quantidade de capacidade intelectual, do tipo peculiar que leva um homem de trono a trono até deixá-lo morrer carregado de honras sem ter nunca entretido ou iluminado a mente de ninguém. Wilfrid Lambert, o jovem com o nariz que parecia empobrecer o resto do rosto, também pouco contribuía para o alargamento do espírito humano, mas ele tinha a honrosa desculpa de ser um tolo.

Lambert poderia ser chamado de tolo; Barker, com toda sua esperteza, poderia ser chamado de estúpido. Mas mera burrice e estupidez afundavam na insignificância, na presença dos terríveis e misteriosos tesouros da loucura aparentemente armazenados na pequena figura que estava esperando por eles fora da Cicconani. O pequeno homem, cujo nome era Auberon Quin, tinha uma aparência composta de um bebê e uma coruja. Sua cabeça redonda, olhos redondos, parecia ter sido desenhado pela natureza brincando com um par de compassos. Seu escuro cabelo liso e a absurdamente longa sobrecasaca davam-lhe algo do olhar de um Noé criança. Quando ele entrava na sala de desconhecidos, confundiam-no com um menino pequeno, e queriam colocá-lo de joelhos, até que ele falasse, quando percebiam que um menino seria mais inteligente.

– Tenho esperado muito tempo – disse Quin, suavemente. – É muito engraçado finalmente vê-los subindo a rua.

Lambert olhou fixamente e perguntou:

– Por quê? Você nos disse para vir aqui mesmo.

– Minha mãe costumava dizer às pessoas para vir a lugares – disse o sábio.

Eles estavam prestes a entrar no restaurante com um ar resignado, quando seus olhos foram apanhados por algo na rua. O tempo, embora branco e frio, estava agora bastante claro, e no marrom maçante do pavimento de madeira e entre os terraços de cinza fosco estava se movendo algo que não podia ser visto nos arredores por milhas – que não podia ser visto, talvez, em toda Inglaterra – um homem vestido em cores brilhantes. Uma pequena multidão aglomerou-se ao redor.

Era um homem alto e imponente, vestido com um uniforme militar verde brilhante, salpicado com grandes revestimentos de prata. A partir do ombro balançava um manto verde de pelo curto, um pouco como a de um hussardo, o revestimento brilhava constantemente numa espécie de carmesim fulvo. Seu peito brilhava com medalhas; em volta do pescoço estava a fita vermelha e a estrela de alguma ordem estrangeira, e uma espada longa e reta, com uma empunhadura flamejante, que era arrastada e ecoava ao longo do pavimento. Nesta época, o pacífico e utilitário desenvolvimento da Europa tinha relegado todos os trajes como este para os museus. A única força restante, a pequena mas bem organizada polícia, se vestia de forma sombria e higiênica. Mas mesmo aqueles que se lembravam dos últimos guardas e lanceiros que desapareceram em 1912 devem ter reconhecido num relance que este não era, e nunca tinha sido, um uniforme inglês. E esta convicção teria sido aumentada pelo rosto aquilino amarelo, como de um Dante esculpido em bronze, que surgia, coroada de cabelos brancos, do colarinho verde militar. Era um rosto vivo e distinto, mas não um rosto inglês.

A grandiosidade com que o cavalheiro vestido de verde caminhou até o centro da estrada é difícil de expressar na linguagem humana. Pois, foi com uma simplicidade e arrogância enraizada, algo no mero mover da cabeça e do corpo, que fez os modernos comuns na rua olhar atrás dele, mas isto teve relativamente pouco a ver com gestos ou expressões realmente conscientes. Em matéria desses movimentos apenas temporários, o homem parecia estar bastante preocupado e curioso, mas estava curioso com a curiosidade de um déspota, e preocupado como que com as responsabilidades de um deus. Os homens que descansavam e perguntavam-se dele o seguiam com espanto pelo seu uniforme brilhante, em parte por causa desse instinto que nos faz seguir qualquer um que parece um louco, mas muito mais por causa desse instinto que faz todo homem seguir (e idolatrar) qualquer um que escolhe comportar-se como um rei. Ele tinha de tão sublime forma a grande qualidade da realeza, a inconsciência quase imbecil dos outros, que as pessoas iam atrás dele pela mesma razão que seguem os reis, para ver o que seria a primeira coisa ou pessoa que ele iria notar. E o tempo todo, como já dissemos, apesar do seu esplendor silencioso, havia sobre ele um ar como se estivesse procurando alguém, uma expressão de inquietude.

De repente, aquela expressão de inquietude desapareceu, ninguém podia dizer o porquê, e foi substituída por uma expressão de contentamento. Em meio a atenção da multidão de desocupados, o magnífico cavalheiro verde desviou-se do seu curso direto para o centro da estrada e caminhou para o lado desta. Ele chegou a uma parada em frente a um grande cartaz de mostarda Colman erguido sobre um tapume de madeira. Seus espectadores quase prenderam a respiração.

Ele tirou um pequeno canivete de uma pequena bolsa em seu uniforme, com que fez um corte no papel. Completando o resto da operação com os dedos, fez uma tira de cor amarela e de contorno totalmente irregular. Então, pela primeira vez, o grande ser dirigiu-se a seus espectadores-adoradores:

– Alguém pode – disse ele, com um agradável sotaque estrangeiro – emprestar-me um alfinete?

Lambert, que era o mais próximo, e que carregava inúmeros alfinetes com a finalidade de prender inumeráveis lapelas, emprestou-lhe um, que foi recebido com reverências extravagantes mas dignas e hipérboles de agradecimento.

O cavalheiro em verde, então, com toda a aparência de estar gratificado, e até mesmo orgulhoso, fixou o pedaço de papel amarelo ao adornos de seda verde e prata no seu peito. Então ele voltou seus olhos novamente, procurando insatisfeito.

– Algo mais que eu possa fazer, senhor? – perguntou Lambert, com a polidez absurda do inglês quando envergonhado.

– Vermelho – disse o estranho, vagamente – , vermelho.

– Desculpe?

– Peço-lhe desculpas, Señor – disse o estranho fazendo uma reverência. – Estava imaginando se algum de vocês dispõem de algo vermelho com vocês.

– Algo vermelho conosco? Bem, realmente… Não, não acredito que tenha… Já usei uma bandana vermelha, mas…

– Barker – perguntou Auberon Quin, subitamente – , onde está sua cacatua vermelha? Onde está a sua cacatua vermelha?

– O que você quer dizer? – perguntou Barker, desesperadamente. – Que cacatua? Você nunca me viu com qualquer cacatua!

– Eu sei – disse Auberon, vagamente tranquilizado. – Onde ela esteve esse tempo todo?

Barker virou-se, não sem ressentimento.

– Lamento, senhor – disse ele, breve, mas civilmente – , nenhum de nós parece ter nada vermelho para emprestar-lhe. Mas para que, se posso perguntar.

– Agradeço-lhe, Señor, não é nada. Posso, já que não há outra opção, suprir minhas próprias necessidades.

E de pé, após um segundo de pensamento com o canivete na mão, ele esfaqueou a palma da mão esquerda. O sangue descia com um fluxo tão cheio que atingiu as pedras sem gotejar. O estrangeiro tirou o lenço e arrancou um pedaço dele com os dentes. O pano foi imediatamente embebido em escarlate.

– Uma vez que é tão generoso, Señor, outro alfinete, talvez.

Lambert retirou outro, com os olhos salientes como de um sapo.

A roupa vermelha foi fixada ao lado do papel amarelo, e o estrangeiro tirou o chapéu.

– Tenho que agradecer a todos vocês, senhores – disse, e envolvendo o restante do lenço na mão sangrando, retomou a sua caminhada com uma imponência esmagadora.

Enquanto o restante parou, um tanto atônitos, o pequeno Sr. Auberon Quin correu atrás do estranho e o interpelou, com o chapéu na mão. Consideravelmente para o espanto de todos, dirigiu-se a ele no mais puro espanhol:

– Señor – disse na língua espanhola – , perdoe a hospitalidade, talvez indiscreta, para aquele que parece ser um distinto, mas solitário hospede em Londres. Honraria a mim e a meus amigos, com quem acabou de conversar, acompanhando-nos em um almoço no restaurante ao lado?

O homem com o uniforme verde demostrou grande prazer no mero som de sua própria língua, e aceitou o convite com uma profusão de reverências que mostra, no caso das pessoas do Sul, a falsidade da noção que cerimônia não tem nada a haver com sentimento.

– Señor, a sua linguagem é a minha, mas todo o meu amor para o meu povo não pode levar-me a negar a sua a posse para um anfitrião tão cavalheiresco. Deixe-me dizer que a língua é o espanhol mas o coração é inglês – e foi com o restante para o Cicconani.

– Agora, talvez – disse Barker, após os peixes e o xerez, intensamente polido, no entanto ardendo de curiosidade – , talvez seja rude perguntar por que fez aquilo?

– Fez o quê, Señor? – perguntou o convidado, que falou em um inglês muito bem, embora de uma forma indefinivelmente americana.

– Bem – disse o inglês, com alguma confusão – , quero dizer rasgou uma tira fora e … er … cortou a si mesmo … e …

– Explicar isso, Señor – respondeu o outro, com um certo orgulho triste – , envolve meramente dizer quem eu sou. Eu sou Juan del Fuego, o presidente da Nicarágua.

A forma com que o presidente da Nicarágua inclinou-se para trás e bebeu xerez mostrou que para ele essa explicação cobria todos os fatos observados e muito mais. No entanto, a testa de Barker ainda estava um pouco cerrada.

– E o papel amarelo – começou, com ansiosa simpatia – e o pano vermelho …

– O papel amarelo e o pano vermelho – disse Fuego, com grandeza indescritível – são as cores da Nicarágua.

– Mas a Nicarágua… – começou Barker, com grande hesitação – A Nicarágua não é mais um…

– A Nicarágua foi conquistada como Atenas. A Nicarágua foi anexada como Jerusalém – exclamou o velho, com um fogo incrível. – O Yankee, o alemão e os poderes brutos da modernidade pisaram nela com cascos de boi. Mas a Nicarágua não está morta. A Nicarágua é uma ideia.

Auberon Quin sugeriu timidamente:

– Uma ideia brilhante.

– Sim – disse o estrangeiro, pegando a palavra. – Você está certo, generoso inglês. Uma ideia brilhante, um pensamento que queima. Señor, perguntou-me por que, no meu desejo de ver as cores do meu país, arranquei papel e sangue. Não consegue entender a santidade antiga das cores? A Igreja tem as suas cores simbólicas. E pensar o que essas cores significam para nós.. Pense da posição de alguém como eu, que não pode ver nada mas essas duas cores, nada mas o vermelho e o amarelo. Para mim todas as formas são iguais, todas as coisas comuns e nobres estão em uma democracia de combinação. Onde quer que haja um campo de calêndulas e o manto vermelho de uma velha, ali está a Nicarágua. Onde quer que haja um campo de papoulas e uma mancha amarela de areia, ali está a Nicarágua. Onde quer que haja um limão e pôr do sol vermelho, ali está o meu país. Sempre que vejo uma caixa de correio vermelha e um por do sol amarelo, há batidas do meu coração. Sangue e um pouco de mostarda podem ser minha heráldica. Se há lama amarela e lama vermelha na mesma vala, é melhor para mim do que estrelas brancas.

– E se – afirmou Quin, com igual entusiasmo – há vinho amarelo e vinho tinto no mesmo almoço, você não pode se limitar ao xerez. Deixe-me pedir algum borgonha, e completar, por assim dizer, uma espécie de heráldica da Nicarágua no seu interior.

Barker estava brincando com sua faca, e estava, evidentemente, decidindo se iria dizer algo, com o intenso nervosismo de um inglês que quer ser amável.

– Devo entender, então – disse enfim, com uma tosse – que você, ahem, era o presidente da Nicarágua quando fez sua – er- deve-se, é claro, concordar, heroica resistência a – er..

O ex-presidente da Nicarágua acenou com a mão.

– Não precisa hesitar ao falar comigo. Estou completamente ciente de que a tendência geral do mundo de hoje está contra mim e contra a Nicarágua. Não consideraria nenhuma descortesia se disser o que pensa dos infortúnios que puseram minha república em ruínas.

Barker pareceu imensamente aliviado e satisfeito.

– É generoso, presidente – disse, com alguma hesitação sobre o título – , e vou aproveitar a sua generosidade para expressar as dúvidas que, devo confessar, nós, modernos, possuímos sobre – er- a independência da Nicarágua.

– Assim, suas simpatias estão – disse Del Fuego, calmamente – com a grande nação que…

– Perdoe-me, perdoe-me, presidente – disse Barker, calorosamente – , minhas simpatias não estão com nação nenhuma. Acho que entende mal o intelecto moderno. Não desaprovamos o fogo e extravagância de repúblicas como a sua para que se tornem mais extravagantes em uma escala maior. Não condenamos a Nicarágua porque pensamos que a Grã-Bretanha deveria ser mais nicaraguense. Não desencorajamos nacionalidades pequenas porque queremos que as grandes nacionalidades tenham sua pequenez, a uniformidade de sua perspectiva, o exagero de seu espírito. Se diferimos com o maior respeito do seu entusiasmo da Nicarágua, não é porque uma nação ou dez nações estão contra você, contra vós está a civilização. Nós, modernos, acreditamos em uma grande civilização cosmopolita, uma que deve incluir todos os talentos de todos os povos…

– O Señor vai me perdoar – disse o presidente. – Posso perguntar ao Señor como, em circunstâncias normais, pega um cavalo selvagem?

– Nunca pego um cavalo selvagem – respondeu Barker, com dignidade.

– Exatamente – disse o outro – , e aqui termina a sua absorção dos talentos. É disto que me queixo do seu cosmopolitismo. Quando diz que quer todos os povos unidos, realmente quer dizer que deseja que todos os povos unam-se para aprender os truques do seu povo. Se beduínos árabes não sabem ler, algum missionário ou professor inglês deve ser enviado para ensiná-los a ler, mas ninguém diz: “Este professor não sabe como montar em um camelo, vamos pagar um beduíno para ensiná-lo.” Você diz que sua civilização irá incluir todos os talentos. Vai? Realmente quer dizer que no momento em que um esquimó aprender a votar em um Conselho Municipal, você aprenderá a caçar uma morsa? Recorrendo ao meu exemplo: na Nicarágua tínhamos uma maneira de capturar cavalos selvagens lançando as patas dianteiras, que era supostamente a melhor na América do Sul. Se você vai incluir todos os talentos, faça-o. Se não, permita-me dizer o que sempre disse, que algo do mundo se perdeu quando a Nicarágua foi civilizada.

– Alguma coisa, talvez – respondeu Barker – , mas algo que era uma mera destreza bárbara. Sei que não poderia lascar pedras como um homem primitivo, mas sei que a civilização pode fazer facas que são melhores, e confio na civilização.

– Está bem acompanhado – respondeu o ex-presidente da Nicarágua. – Muitos homens inteligentes confiaram na civilização. Muitos babilônios inteligentes, muitos egípcios inteligentes, muitos homens inteligentes no fim do Império Romano. Pode me dizer, num mundo onde é flagrante os fracassos das civilizações, o que torna a sua particularmente imortal?

– Acho que não entende muito bem, Presidente, o que é a nossa civilização – respondeu Barker. – Julga como se a Inglaterra ainda fosse uma ilha pobre e combativa; esteve fora da Europa faz muito tempo, muitas coisas aconteceram.

– E em que – perguntou o outro – se resume essas coisas?

– O resumo dessas coisas – respondeu Barker, com grande animação – é que nos livramos das superstições, e não somente das superstições que, com mais frequência e entusiasmo, são assim descritas. A superstição das grandes nacionalidades é ruim, mas a superstição das pequenas nacionalidades é pior. A superstição de reverenciar nosso próprio país é ruim, mas a superstição de reverenciar países de outras pessoas é pior. É assim em toda parte, e em uma centena de maneiras. A superstição da monarquia é ruim, a superstição da aristocracia é ruim, mas a superstição da democracia é a pior de todas.

O velho abriu os olhos com alguma surpresa:

– Então, a Inglaterra não é mais uma democracia?

Barker riu.

– A situação convida o paradoxo. Somos, em certo sentido, a mais pura democracia. Nós nos tornamos um despotismo. Não percebeu como continuamente na história a democracia torna-se despotismo? As pessoas chamam isso de decadência da democracia. É simplesmente o seu cumprimento. Por que ter o problema de numerar, registrar e emancipar todos os inúmeros John Robinsons, quando você pode lidar com somente um John Robinson com o mesmo intelecto ou a falta de intelecto de todo o resto? Os antigos republicanos idealistas fundaram a democracia baseado na ideia de que todos os homens são igualmente inteligentes. Acredite em mim, a democracia sã e duradoura é fundada no fato de que todos os homens são igualmente idiotas. Por que não devemos escolher um dentre eles como qualquer outro. Tudo o que queremos para o governo é um homem que não seja criminoso ou insano, que pode rapidamente olhar sobre algumas petições e assinar algumas declarações. Pense no tempo que foi desperdiçado discutindo a Câmara dos Lordes, os conservadores dizendo que deveria ser preservada porque era boa, e os radicais dizendo que deveria ser destruída porque era estúpida. Mas ninguém viu porque era estúpida, pois essa turba de homens comuns jogados lá por acidente de sangue era um grande protesto democrático contra a Câmara Baixa, contra a eterna insolência da aristocracia de talentos. Estabelecemos agora na Inglaterra, o que todos os sistemas têm tateado vagamente, o maçante despotismo popular sem ilusões. Queremos um homem à frente do nosso Estado, não porque ele é brilhante ou virtuoso, mas porque ele é um homem e não uma multidão vibrante. Para evitar a possibilidade de doenças hereditárias e coisas desse tipo, abandonamos a monarquia hereditária. O rei da Inglaterra é escolhido como um jurado em uma lista oficial de rotação. Além de que todo o sistema é tranquilamente despótico, e ninguém sequer levanta um murmúrio.

– Quer dizer – perguntou o Presidente, incrédulo – que vocês escolhem um homem comum que esteja a mão e fazem dele um déspota, que confiam nas chances de uma lista alfabética…

– E por que não? – gritou Barker. – Metade das nações históricas não confiaram nas chances dos filhos mais velhos de filhos mais velhos, e metade delas não obtiveram resultados razoáveis? Um sistema perfeito é impossível; mas ter um sistema é indispensável. Todas as monarquias hereditárias foram uma questão de sorte: assim são monarquias alfabéticas. Pode encontrar um profundo significado filosófico na diferença entre os Stuarts e os Hanoverians? Acredite em mim, me comprometo a encontrar um profundo significado filosófico no contraste entre a negra tragédia de A, e o sucesso contínuo de B.

– E vocês arriscam? Embora o homem pode ser um tirano, um cínico ou um criminoso.

– Corremos o risco – respondeu Barker, com perfeita placidez. – Suponha que ele é um tirano, ainda deve lidar com uma centena de tiranos. Suponha que ele é um cínico, é de seu interesse para governar bem. Suponha que ele é um criminoso, removendo pobreza e substituindo por poder, colocamos em cheque sua criminalidade. Em suma, através do despotismo substitutivo impusemos controle total num criminoso e controle parcial sobre todo o resto.

O velho cavalheiro da Nicarágua inclinou-se com uma expressão estranha nos olhos.

– Minha igreja, senhor, me ensinou a respeitar a fé. Não quero desrespeitar qualquer um de vocês, mas realmente quer dizer que confia num homem comum, o homem que pode estar ao seu lado, como um bom déspota?

– Confio – disse Barker, simplesmente. – Ele pode não ser um bom homem. Mas ele será um bom déspota. Pois, quando se trata de um simples negócio rotineiro de governo, ele vai se esforçar para fazer justiça ordinária. Não assumimos a mesma coisa em um júri?

O velho Presidente sorriu.

– Não sei se tenho qualquer objeção particular em detalhes para o seu excelente esquema de governo. Minha única objeção é bastante pessoal. É que se me perguntassem se gostaria de participar disto, perguntaria em primeiro lugar, se não seria permitido, como alternativa, ser um sapo em uma vala. Isso é tudo. Não se pode argumentar com a escolha da alma.

– Da alma – disse Barker, franzindo o sobrolho – não posso falar nada, mas atendendo-se ao interesse público..

De repente, o sr. Auberon Quin levantou-se.

– Se me dão licença, senhores, sairei por um momento para tomar ar.

– Sinto muito, Auberon – disse Lambert, gentilmente. – Sente-se mal?

– Não mal exatamente – disse Auberon, contido – , bem, na verdade. Estranha e ricamente bem. O fato é que quero refletir um pouco sobre essas belas palavras que acabam de ser proferidas. “Atendendo-se” … sim, era essa a frase, “atendendo-se ao interesse público.” Não se pode tirar o mel de tais coisas sem ficar um pouco só.

– Será que ele está realmente fora de si? – perguntou Lambert.

O velho Presidente cuidava dele com olhos estranhamente vigilantes.

– Acredito que é um homem que não deseja nada, exceto uma piada. É um homem perigoso.

Lambert riu no ato de levantar macarrão à boca.

– Perigoso! Não conhece Quin, senhor!

– Todo homem perigoso – disse o velho sem mover-se – é o que só se preocupa com uma coisa. Eu mesmo já fui perigoso.

E com um sorriso agradável, terminou o café e levantou-se, inclinando-se profundamente, e entrou na neblina, que havia crescido novamente densa e sombria. Três dias depois souberam que havia morrido calmamente num alojamentos no Soho.

Em outro lugar, em meio ao mar escuro da névoa estava uma pequena figura abalada e com tremores, com o que poderia ser à primeira vista terror ou malária: mas que na verdade sofria de uma estranha doença, o riso solitário. Ele estava repetindo novamente para si mesmo com um rico sotaque – Mas, atendendo-se ao interesse público…

O Napoleão de Notting Hill

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