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Capítulo 1

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«Não fales, faz o que te dizem e vai correr tudo bem».

Tinham-na raptado… em plena luz do dia, no Aeroporto Internacional de Ezeiza em Buenos Aires, à vista dos seguranças do aeroporto.

O estômago de Zoe Collingsworth saltou quando o helicóptero virou e voou num ângulo singular em direcção à terra.

Agarrou-se com tanta força ao banco, que os nós dos dedos lhe doeram. Ele tinha-lhe dito que não falasse e não o tinha feito, mas tinha muito medo. Aquilo não lhe podia estar a acontecer… tinha que ser um pesadelo…

– Vamos aterrar dentro de minutos.

O som da voz sobressaltou-a. Era a primeira vez que falava nas duas horas que estavam no helicóptero. Jamais tinha ouvido uma voz tão baixa; vibrou através dela como um comboio de carga que se movia lentamente.

– Para onde é que me leva? – sussurrou com mãos trémulas.

Olhou-a fugazmente com olhos semicerrados.

– Isso não importa.

Ficou com a garganta seca e o medo deixou-a fria. Tocou no cinto de segurança para comprovar a tensão, como se a pequena tira que lhe cruzava o regaço pudesse protegê-la do que lhe fosse acontecer.

Queria dizer algo duro e desafiante, queria ser valente porque era assim que Daisy encarava os problemas. Mas Zoe não era uma guerreira e estava dominada por um terror inimaginável. Nunca tinha saído de Kentucky e na sua primeira viagem era… era…

Raptada.

O coração batia-lhe com tanta força que acreditava que ia explodir. Observou o seu raptor. Tinha a cara pregada ao vidro, na paisagem que escurecia. O crepúsculo sumia tudo nas sombras.

– O que é que quer de mim? – finalmente captou a sua atenção. Olhou-a e umas pestanas compridas e escuras ocultavam-lhe os olhos; a sua expressão era curiosamente dura. Não havia nada de gentil nas feições sombrias. – Vai… vai fazer-me mal?

Ouviu o tremor da sua voz, o espaço entre as palavras, que revelava medo e extenuação. Também ele captou aquilo e a boca firme fechou-se com mais força, endurecendo.

– Não faço mal a mulheres.

– Mas, rapta-as? – estava à beira do histerismo. Há vinte e quatro horas que não dormia e começava a perder o controlo.

– Só se mo pedirem – respondeu quando o helicóptero desceu. Olhou pela janela e anuiu com satisfação. – Vamos aterrar.

Quando o piloto pousou o aparelho no chão, o seu raptor abriu a porta e saiu.

– Vamos – estendeu uma mão.

– Não – Zoe recusou o contacto. Não pôde ver a sua cara no escuro, mas percebeu a impaciência.

– Não é uma escolha. Vamos!

Devagar, tremendo de medo, desceu do helicóptero. Tinha as pernas dormentes e rígidas.

A noite era quente, muito mais do que tinha esperado. À sua frente, brilhavam umas luzes. Com o coração a martelar, contemplou a casa e as dependências iluminadas. Mas mais além do círculo imediato de luz, só havia escuridão. Um mundo de escuridão. Perguntou-se onde é que estaria e o que é que aquele homem pretenderia fazer-lhe.

Ele desapareceu no interior do habitáculo e tirou a mala de Zoe do helicóptero e um saco de viagem, que ela imaginou serem os seus.

Fechou a porta do aparelho e este, imediatamente, subiu na noite estrelada.

As hastes giratórias despentearam-na; cambaleou para trás com a intenção de fugir do barulho e do ar e tropeçou nas malas. Mas umas mãos impediram a queda.

Sentiu a pressão dura do seu corpo e as mãos que se fecharam nela ao pô-la de pé. Afastou-se imediatamente, mas aquela fracção de segundo foi mais do que o que podia suportar. Tinha sentido como é que a força e o calor dele penetravam na roupa, na pele, até chegar aos seus ossos. Era um homem duro e inflexível. Aquele simples contacto queimou-a.

«Que Deus me ajude», rezou em silêncio. «Faz com que volte ilesa para casa».

Com a mão trémula afastou uma madeixa de cabelo da cara. Sentia-se física e emocionalmente fragmentada.

– Por aqui – indicou ele com rudeza, tocando-lhe no cotovelo. Aquele segundo contacto foi pior do que o primeiro. A súbita rigidez do seu corpo doeu-lhe. Cada vez que ele lhe tocava, tremia. Cada vez que o fazia, queimava-a.

O barulho do helicóptero começou a perder-se na distância. O ar quente da noite envolveu-a.

– E agora? – perguntou, erguendo-se na totalidade do seu metro e setenta e cinco de altura. Não serviu de muito. Ele era muito mais alto e grande. Devia medir um metro e noventa aproximadamente, de estrutura forte, musculada como a de um futebolista profissional da liga dos Estados Unidos; embora estivesse de casaco comprido, camisa e calças pretas, podia pertencer a uma máfia.

– Vamos para dentro. Vamos jantar. E depois vais para o teu quarto para passar a noite.

Fez com que parecesse quase civilizado. Mas isso não a acalmou. Tinha ouvido que os homens mais violentos eram também os mais sofisticados. Podia estar a brincar com ela antes de…

«Pára! Tens que deixar de pensar dessa maneira. Não podes permitir que a tua imaginação brinque contigo. Vais ficar louca».

Havia demasiadas incógnitas, demasiadas possibilidades aterradoras. Devia manter a calma, a cabeça fria, como costumava dizer o seu pai.

Engoliu em silêncio.

– Muito bem. O jantar parece-me bem – iria passo a passo. De uma maneira ou de outra, iria superar aquilo. Ele pegou na sua mala e no saco e dirigiu-se para casa, deixando-a para que o seguisse. Mas não podia segui-lo, não imediatamente. Como é que ia poder entrar dentro daquela casa por vontade própria?

Zoe permaneceu no mesmo sítio, virou-se para a pista de cimento e o ar da noite rodeou-a. A terra era lisa e aberta com um pequeno grupo de árvores à distância. Nada se levantava no horizonte. Nenhuma montanha, nenhuma luz de cidade. Só um espaço vazio e limpo.

«As pampas», pensou para consigo ao lembrar-se dos postais que Daisy lhe tinha enviado.

A estância dos Galván também estava nas pampas. Talvez estivesse perto de Daisy, mais perto do que alguém imaginava.

Virou-se outra vez para casa. Ele estava à sua espera na porta. Avançou, mas parou. Podia sentir a impaciência dele e isso assustou-a. O que é que lhe iria acontecer assim que entrasse em casa?

Ele esperou outro momento antes de encolher os ombros e desaparecer da vista. Depois de uma longa pausa, Zoe obrigou-se a continuar.

Subiu as escadas e chegou à porta de madeira escura que permanecia aberta. O homem reapareceu.

Tinha tirado o casaco e desabotoado a camisa. Quando os seus olhos se encontraram, ela pensou que os dele eram mais claros do que tinha imaginado, embora o nariz dominasse o seu rosto. Tinha uma pequena cicatriz entre os olhos e outra no seu queixo quadrado. Era um rosto que dava a impressão de ter recebido mais do que uma tareia. De um boxeador de rua. Ou de matador.

Reparou no nó da garganta. Engoliu a saliva e o terror fez com que sentisse como se as extremidades pendessem sobre pedaços de cristal.

– Não vais entrar? – perguntou ele.

Esteve quase a matá-la o facto de ter que forçar um som pela garganta.

– Não se importa se ficar cá fora?

– Agora que estamos aqui, podes fazer o que quiseres.

– Sim?

– Não há telefone nem comunicação com o exterior. Nem visitantes, nem estradas, nem incómodos nem interrupções. Estás a salvo.

Ela cerrou os dentes e umas lágrimas ardentes queimaram-lhe os olhos.

– A salvo?

Ele esticou a mão para lhe tocar no início do pescoço, mesmo por baixo do queixo e os dedos mexeram-se sob a pele que não lhe tapava a gola virada da camisola.

– Perfeitamente a salvo.

Estremeceu e sobressaltou-se com o contacto aceso e doloroso.

– Não há mais ninguém aqui?

– Só uma criada velha, mas não fala inglês e não te vai incomodar.

Levantou o dedo do pescoço e Zoe sentiu como se a tivesse partido ao meio. O contacto tinha sido leve, mas tinha acendido uma bomba por baixo da sua pele, fazendo que no centro dela explodisse o calor e que o fogo lhe sulcasse as veias. Quis gritar, embargada pela intensidade da sua reacção.

– Entra. Estás cansada.

– Tenho medo.

– De quê? – pôs a cabeça de lado.

A voz baixa palpitou dentro de Zoe. Odiava-o, temia-o e, no entanto, também lhe parecia estranhamente carismático. «Era só o que me faltava», pensou, mas não se atreveu a manifestá-lo em voz alta.

Ele devia ter-lhe lido os pensamentos, porque esboçou um leve sorriso.

– Considera isto uma pequena aventura – depois afastou-se para a deixar entrar.

Uma aventura? Estava louco.

Os particulares olhos claros do desconhecido olharam-na enquanto esperava, sem falar nem apressá-la. Ia deixar que escolhesse.

O que é que devia fazer? Ficar cá fora, na escuridão das pampas infinitas, ou entrar no resplendor quente da casa?

Com o coração nas mãos, entrou.

Lazaro viu Zoe Collingsworth assim que atravessou a porta naquela tarde. Jovem, loura, linda. Com olhos semicerrados, tinha seguido os seus movimentos enquanto ela procurava na mala de pele os seus óculos de sol.

As mãos tremiam-lhe ao acomodá-los no nariz recto e pequeno. Podia ter sido uma estrela de Hollywood. A camisola de gola alta parava mesmo por baixo do queixo, acentuando a cara branca e suave e o longo cabelo louro.

Muitos olhos se viraram para observar os seios voluptuosos sob a fina camisola preta e as ancas tão femininas metidas nas calças de lã de uma cor camelo muito tentadora. O cabelo era natural, como o da sua irmã Daisy, só que mais dourado. De facto, eram muito parecidas.

Dois anos depois de ter casado com o conde Dante Galván, Daisy já era considerada uma grande beleza nos círculos sociais de elite da Argentina, mas Zoe possuía uma beleza diferente… mais suave.

Lazaro fechou a porta do rancho, mas não se incomodou em trancá-la. Zoe não tinha nenhum sítio para onde ir.

Observou-a naquele momento, enquanto entrava no corredor, os olhos azuis muito abertos e apreensivos. Estudou o interior, como se procurasse uma porta oculta ou uma câmara de tortura secreta.

– Não há nada de sinistro aqui – indicou com calma. – Nada de facas, armas de fogo, chicotes ou algemas. É somente um rancho.

Ela levantou o queixo e apertou os lábios.

– Já enviou o pedido de resgate?

– Não.

Viu-a pestanejar. Era tão jovem. Quase doze anos mais nova do que ele. Separava-os uma vida inteira. A diferença de idade devia ter aplacado a atracção. Mas não.

Desde o primeiro momento em que a viu no aeroporto, as entranhas tinham-se-lhe encolhido. A reacção que despertava nele atordoava-o. Era muito primitiva, tão física que se sentia em carne viva. Mal controlado.

O desejo palpitou naquele instante e o corpo voltou a contrair-se.

Sentia-se faminto. Como uma criatura pré-histórica renascida dos mortos. Algo nela fazia com que a desejasse, que se sentisse faminto. Implacável.

Queria senti-la, prová-la, possui-la. E numa parte distante do cérebro sabia que o faria.

Algum dia.

Quando tivesse esmagado os Galván.

Quando tivesse conseguido a sua vingança.

Mas aquele não era o momento. Nesse instante, ela estava esgotada e receosa, e era uma convidada na sua casa.

– Dá-me o casaco – indicou, suavizando a voz, já que sabia que tinha uma voz e uns modos duros. Não era conhecido pela sua sensibilidade ou cortesia.

Estendeu uma mão, mas ela deu um passo para trás, assustada.

Zoe esteve quase a gritar quando ele lhe esticou a mão. Não podia deixar que lhe tocasse outra vez. Não podia permitir que se aproximasse, que conseguisse que se sentisse presa, impotente, demasiado vulnerável. Havia algo nele que emanava força, não só em termos de musculatura, como de controlo… de poder.

Fechou o casaco fino em torno do corpo.

– Gostaria de ficar com ele.

– Vais recuperá-lo – levantou as sobrancelhas.

Gozava com ela. Corou e levantou o queixo.

– Tenho frio.

– Então, aproxima-te do fogo. Vais ficar mais quente.

Conduziu-a desde do hall de tecto alto a um salão surpreendentemente espaçoso, com vigas escuras, tão rústicas como a lareira de pedra que ia do chão ao tecto. No entanto, os móveis eram luxuosos, desde a alcatifa de umas vibrantes cores em tons de escarlate e ouro que cobria o chão de madeira até aos sofás e cadeirões distribuídos em pequenos grupos. Nas paredes havia quadros grandes de pinceladas vivas num azul eléctrico, vermelho sangue e amarelo aceso.

Não era um simples rancho.

Passou junto da mesa de centro em ferro forjado e vidro para ficar perto da lareira. Sentia as pernas frágeis, os músculos tensos.

Com um olhar fugaz em direcção à biblioteca, esticou uns dedos trémulos para captar algum calor do fogo.

«Raptada» repetiu em silêncio. Tinham-na raptado. Ainda não tinha acabado de assimilar aquilo. Alguma vez o faria?

Lembrou-se de descer do avião e sair com os outros passageiros, para descobrir uma sala cheia. Lembrava-se de ter observado as pessoas à procura de Dante ou de um motorista. Dante tinha-lhe prometido que alguém iria recebê-la. Mas não viu o seu cunhado nem ninguém que tivesse um cartaz. Havia mães com os seus filhos, homens de negócios com os seus telemóveis… mas ninguém que a fosse buscar.

De repente, os olhos tinham-se-lhe humedecido ao recordar o desgosto que sentia. Geralmente algo assim não a afectava, mas não tinha sido um mês normal. O seu pai piorava de dia para dia. Já parecia ter esquecido tudo e era terrível vê-lo murchar diante dos seus olhos. Tinha sido um homem inteligente, carinhoso, sempre generoso com os outros.

Tinha procurado na mala os óculos de sol para ocultar as lágrimas. Já tinha chorado durante quase todo o voo e também nessa altura os óculos de sol lhe tinham sido úteis. A verdade é que tinha chorado tanto no último mês, que as lágrimas se tinham esgotado.

Respirou fundo e tentou concentrar-se em algo positivo. Tinha ido ver Daisy. Faltava pouco para rever a sua irmã. Assim que estivessem juntas, as coisas seriam melhores. Foi nesse momento que se aproximou dela um homem de preto, sério, de olhar penetrante e nariz afilado.

– Menina Collingsworth? – tinha perguntado com uma voz de impossível profundidade. Zoe lembrou-se que o seu agente de viagens lhe tinha dito que os homens argentinos, uma mistura de paixão latina e sofisticação europeia, tinham uma aparência letal. Embora não considerasse aquele homem de uma aparência clássica, era arrebatador… não, fascinante, de um modo primitivo.

– Sou Zoe – tinha respondido com o coração acelerado. Esteve acordada toda a noite e estava excessivamente cansada. Nunca tinha saído de Kentucky e tinha sentido emoções contraditórias sobre a viagem à Argentina. Queria ver Daisy, mas odiava levar o seu pai para um lar. A verdade é que só ia permanecer duas semanas, mas tinha sido terrível interná-lo.

– Tem alguma mala? – perguntou o homem.

– Só uma. É grande, por isso facturei-a.

– Se me der o papel, vou buscá-la.

Estendeu a mão larga, com dedos compridos e bem formados. Parecia relaxado e ela entregou-lhe o papel. Foram para a zona de bagagens e ele levantou a mala grande como se não pesasse nada. No exterior esperava-os uma limusina que os conduziu até ao helicóptero.

Só depois de descolar e de ela começar a fazer-lhe perguntas sobre Daisy e a gravidez, sobre a estância dos Galván, a vida nas pampas, é que ele lhe disse para deixar de falar.

De facto, as palavras exactas foram: «Não fales, faz o que te disserem e tudo correrá bem». Respirou fundo e contemplou o fogo, com as suas dançarinas chamas vermelhas e douradas.

Voltou a tremer, naquele momento com mais violência e o calor não bastava. Não podia parar. Era incapaz de controlar os nervos.

Ouviu-o caminhar atrás dela, o som de vidro, de líquido a escorrer, outra vez de vidro. Servia uma bebida. Que tipo de raptor tinha livros encadernados em pele, arte moderna e garrafas de brandi? Que tipo de homem é que era ele?

Lutou contra o medo. Tinha que haver uma boa explicação. As pessoas não raptavam as outras sem um objectivo, sem um plano.

– Bebe isto.

A voz fria e dura atravessou os seus pensamentos e fê-la levantar a vista do fogo para as suas feições talhadas de expressão inexplicavelmente sombria.

– Não bebo.

– Vais aquecer.

Observou o copo em forma de globo cheio com um líquido de cor âmbar e encolheu-se.

– Não gosto do sabor.

– Quando tinha a tua idade, também não costumava gostar. Estás a tremer. Vai ajudar-te. Confia em mim.

Confiar nele? Era o último homem na face da terra em quem confiaria. Tinha-a afastado de Daisy, de Dante, da reunião que tinha desejado. A sua garganta ameaçou fechar-se e a ira tomou conta dela.

Virou-se para ele com os braços cruzados.

– Quem és? Nem sequer sei o teu nome.

– Lazaro Herrera.

O nome saiu como algo fluido, complexo, sensual.

Lazaro Herrera.

Era um nome que encaixava com ele, que ligava com a música e o poder.

– Acho que vou aceitar a bebida – sussurrou.

Ao dar-lha, os seus dedos roçaram-se.

– Bebe devagar.

O contacto abrasou-a e esteve quase a deixar cair o copo.

– Porque é que fazes isto?

– Tenho motivos – encolheu os ombros.

– Mas o que é que eu fiz? Nem sequer me conheces.

– Não é por ti.

– Então, porque é? – elevou a voz.

– Por vingança.

Uma vingança  deliciosa

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