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I
ОглавлениеFestejavam-se á noite em casa do brasileiro Mendes os dezenove annos da menina Adelaide.
Toda ella se affogueava nos contentamentos intimos de rainha da festa, as faces carminando-se das exhuberancias humidas e quentes d'uma mocidade recatada e honesta, muito vaidosa do seu vestido novo, praguejando em frente do espelho, como um collegial estroina, contra aquella moda de penteado, que lhe não deixava pôr em relevo as longas tranças castanhas, tão espessas, que a natureza lhe doara.
Tinham-se convidado apenas as filhas do Gomes, as Bastinhos, a Ermelinda Silva, filha do Jorge director d'um banco, e umas poucas mais, ex-companheiras de collegio, muito intimas, com quem se não fazia ceremonia.
Rapazes viriam tambem.
O Juca, sobrinho do Mendes, tinha-se encarregado{8} de apresentar alguns amigos, e o brazileiro, muito popular nos estabelecimentos da Praça de D. Pedro, convidara alguns caixeiros—para irem beber um calice do fino, fazer uma saude á pequena.—
Era cedo ainda.
A grande meza de jantar, como um cetaceo brunido, estendia toda a elasticidade das suas articulações para sustentar no dorso viandas appeteciveis, carnes frias, podins gelados, os largos taboleiros de doce, as garrafas de crystal com opalinos vinhos do Porto e da Madeira. Ao centro um jarrão de porcellana, cheio de camelias encarnadas e brancas, dominava todo aquelle acampamento de coisas appetitosas, orgulhoso de si, como o general Boum no meio das amazonas da Grã-Duqueza.
Na sala de visitas a menina Adelaide collocava por suas proprias mãos heras e flores em volta das serpentinas.
O Mendes, em mangas de camisa, suando como outr'ora nas labutações dos seus armazens, dava ao piano uma collocação apropriada de modo a occupar o menor espaço possivel; depois vinha para o meio da sala, olhava-o na bruta admiração da sua grossa esthetica e via que ainda se podia chegar mais á parede.
—Ficava melhor, dizia.
Mas a filha, interrompendo o seu trabalho:
—que assim não estava bem, nem se ouviam os sons,—credo!—e, de mais, pouco espaço ficava para uma senhora poder tocar!—
O Mendes reconsiderou, cedendo um pouco da{9} sua opinião, e em seguida foi auxiliar a filha a dispor as flores sobre as serpentinas.
Dentro, n'outra parte da habitação, a D. Carola, accomodava uma saleta para toilette das senhoras, e o Juca, no seu quarto que serviria de sala de fumo, dispunha charutos deliciosos n'uma estatueta bronzeada, que fingia um escravo carregador.
Das oito para as nove horas os convidados principiaram a chegar.
Vieram primeiro as Bastinhos; traziam uns bouquets muito elegantes, feitos no Loureiro; foram recebidas com beijos cantadinhos e com um:
—Oram vivam, do brazileiro.
Acompanhava-as o pae, ex-socio do Mendes,
—homem de peso, dizia-se na praça, e compadre do dono da casa.
—Como ia de saude, ein?—perguntou, n'um shake hands expressivo, espalmando a larga mão, com uma grande cordealidade alegre.
—Uma faina, compadre, lhe não digo nada! me parece este dia aquelles em que estavamos nos trapiches do Rio, se lembra você?
E n'uma phonetica abrazilada, machucando a lingua patria, como se premissem canna d'assucar, os dous recordavam as suas amargas horas de trabalho, fatigantes mas productivas, que lhes davam agora uma tranquillidade modesta e sã, no meio da qual as suas carnes espapavam nas blandicias oleosas d'uma nutrição sadia.
—Se gosa tambem agora, deixe lá.
—Ah! se não fôra isso!
As meninas entretanto, tinham ido, abraçando{10} a cintura de Adelaide, até ao quarto da toilette, conversando muito, umas interrogativas agglomeradas, de quem se não vê desde tempo.
—E de rapazes quem viria?—perguntava a mais nova das Bastos.
—Ah, olha que não sei verdadeiramente; quem os convidou foi o Juca e o papá.
—Virá o Alberto?
—Maliciosa! bem sabes que elle não faltaria.
—Como ouvi dizer que andava indifferente com teu primo.
—Ora, deixa lá! Ainda hontem o Juca me disse que tinha estado com elle no Suisso!
Tiraram os agasalhos, ageitaram as flores do penteado, viam-se ao espelho, muitas vezes, com uma grande vaidade de si proprias.
—Este penteado, tambem,—dizia a Amelia Bastos,—não me fica hoje direito.
—Oh, filha, pois a mim!—confirmava a Adelaide, parece que é praga.
—Isto de cabelleireiras, não vos digo nada! são todas a mesma cousa, não tem geito nenhum,—umas imbecis.—
E ambas acotovellando-se para apanhar a maior porção da lamina reflectora, pregavam ganchos no penteado, com um estalido secco, de tic nervoso, e quando o espelho não reflectia a perfeição do typo imaginado, irritavam-se procurando outros ganchos na pequena concha de madreperola, com adornos de filigrana, que pousava sobre o marmore do toucador.
Entretanto a campainha tocando successivamente, annunciava a entrada de novos convidados.{11}
—Quem será? perguntou a Bastinhos.
—Esperai que eu volto já, disse-lhes a Adelaide.
—Não, não, vamos comtigo.—
Empoaram-se ainda uma vez com a pluma de poudre de riz e depois desceram todas; tinham entrado o Jorge, director do banco, e Ermelinda, a filha.
Adelaide encarregou-se d'esta; deixou as Bastinhos na sala, com a mamã; quando voltaram, ellas vieram cumprimentar Ermelinda, depondo-lhe beijos miudinhos nas faces d'um moreno pallido.
Ás dez horas não faltava ninguem.
O Mendes com grandes sorrisos d'alegria satisfeita, movia-se em todas as direcções, muito cumprimentador e prasenteiro, dizendo graças affectuosas a cada conviva.
As senhoras, sentadas em volta da sala, nostalgicas, como larvas em metamorphose, conversavam baixo, timidamente, sobre motivos da ultima moda. Algumas fallavam dos ultimos passeios á Cordoaria e Palacio, das scenas de namoro, colhidas aqui e ali, nas maliciosas besbilhotices d'amizade; soltavam pequenas risadinhas, abafadas nos brancos lenços de cambraia, amarfanhando-os muito entre as mãos.
Os rapazes encostavam-se envergonhadamente ás hombreiras das portas, ou fallavam dentro na sala do fumo, com uma vozearia de praça. Os seus olhos, acesos d'uma curiosidade concupiscente, tomavam a direcção dos elegantes collos brancos, que sahiam das toilettes mais decotadas. {12}
Só um d'entre elles, mais ousado, com uns ares de lion ganté, abanando com o seu chapeu de pasta o peitilho, onde o collete branco muito aberto deixava vêr uma camisa folheada, com botões de coral, passeava na sala, sorrindo-se com amabilidade olympica para as damas conhecidas e fitando o monoculo d'uma sobranceria atrevida, sobre as carnações frescas e sensuaes das elegancias femenis.
Os rapazes invejavam surdamente aquella naturalidade e garbo simples de porte.
—Aquillo é que é um menino!—exprimiam dous caixeiros, n'uma metaphora admirativa e ciosa.
—E então? fazia elle muito bem... que andasse d'ahi, iriam dar um gyro... egualmente!—convidava um d'elles todo almiscarado, com a risca do idiotismo ao meio da cabeça e o cabello frisado, n'umas ondeações luzentes de bandolina.
E os dous fingindo-se interessados n'uma conversa importante que lhes disfarçasse o acanhamento tosco, aventuraram-se a um passeio pela sala, sentindo-se logo invadir d'um rubor de face ao perceberem os olhares das senhoras, que se riam baixinho das suas grossas mãos entaladas n'umas gritadoras luvas amarellas.
As meninas tinham o mesmo syncretismo dos caixeiros; admiravam a elegancia do Alberto, achando esbelta a figura, o penteado, a maneira de trazer a camelia, a curva artistica do bigode. As mais curiosas examinavam furtivamente os berloques do relogio, procurando surprehender alguma bijouterie symbolica de coisas de namoro.{13} A Ermelinda primava entre todas n'essa muda contemplação extactica.
As Bastinhos leram no seu olhar e cochicharam logo:
—Queres tu ver que a temos tramada! repara na Ermelinda como se derrete a admirar o Alberto.
—Forte tola! Deixa que a não hei-de perder de vista, Amelinha!
O Mendes entrou porém na sala; um sorriso de bonhomia, despido de etiquetas lhe pairava nos labios.
—Vamos, minhas senhoras, vae-se dançar alguma cousa para matar o tempo, ein! Que ha-de ser, ó Adelaide?
—Uma quadrilha, papá!
—Seja, eu chamo o tocador! tirem pares, tirem pares—disse passando entre o grupo dos homens.
D'ali a instantes um d'estes artistas obscuros, na gala festiva do seu casaco preto roçado pelo uso, sentava-se ao piano e preludiava uma quadrilha.
Os homens vinham entrando de vagar, tomavam pares, animavam a sala de grupos. Começava a levantar-se um pó fino, que excitava as tosses.
O Alberto dançou com Ermelinda.
—Olha, não te dizia eu!—murmurou a Bastos para uma visinha.
A musica de Angot elevava-se sonoramente do teclado; a quadrilha começou.
As senhoras velhas deslocavam-se para conversar,{14} agrupando-se em volta da dona da casa; algumas meninas que não tinham dançado, levantavam-se com grande despeito e tomavam o caminho da toilette, onde iam empoar-se; outras porém reuniam-se, vingando-se da descortezia da sorte, em aguçar as linguas rosadas e viperinas n'uma analysesinha burlesca dos pares que dançavam; tinham um vivo prazer sobretudo em pôr nomes, em chamar a um pé de cabra, a outro o alho vivo, áquelle que dançava mais pesadamente o pataco gordo, rindo muito, umas gargalhadinhas abafadas, que chamavam a attenção dos pares.
Entretanto o Alberto tinha phrases d'um effeito romanesco, com que melodisava os ouvidos da filha do director do banco; inclinava-se com profundas reverencias nas diversas evoluções da quadrilha e depois, quando erguia a cabeça, os seus olhos envolviam largamente, com magestade, os olhos de Ermelinda, que recebia esse fluido penetrante, fazendo purpurear o rosto por um phenomeno reflexo, que a physiologia não sabe ainda bem explicar, quando se trata de mulheres que namoram. Quando os outros pares dançavam, Alberto um pouco mais alto de estatura, abaixava-se para ella, murmurando phrases d'um sentimentalismo de Antony, que ouvira muitas vezes no theatro.
—Creia vossencia, dizia, que só um coração de gelo poderia deixar de impressionar-se ante a fulguração d'um olhar d'esses.
—Lisongeiro!
—Lisongeiro, eu, minha senhora? Como a infelicidade{15} me bafeja todas as vezes que pronuncio uma verdade!
A sua voz arrastava-se n'uma tonalidade sentida; dir-se-hia que as lagrimas iam a rebentar d'aquelles olhos baços das orgias, em face d'uma grande concentração d'affecto.
Ermelinda olhava-o distrahidamente e gostava de se adormecer ao som d'aquellas palavras, docemente proferidas, que poucos homens lhe tinham dito com tanto sentimento!
A quadrilha terminou; os rapazes mais cheios de familiaridade, conversavam com as senhoras; mas dentro o Juca esperava-os com deliciosos charutos—que não podiam perder-se.
—E d'ahi um calice de Madeira, offerecia o Mendes, nós cá não temos ceremonias, ein! são boas ellas para a missa, entendeu você, sôr Alberto?
Agrupavam-se em volta da mesa; os liquidos, como n'um apparelho hydrostatico, desciam de nivel nas garrafas para subirem nos estomagos. Os caixeiros esvasiavam calices com uma soffreguidão mal educada—de quem apanhava d'aquelle poucas vezes.
A senhora do Mendes examinava com cuidado, curvando-se, as bandejas do chá e dos dôces que iam servir-se ás senhoras; dispunha as garrafas de crystal em salvas de prata e distribuia aos creados as ramificações d'aquelle serviço. Depois voltando-se para o sobrinho:
—Juca, vae servir as senhoras, avia-te!
O Alberto n'este momento enchugava os labios do sexto calice que havia esvasiado; offereceu-se{16} para acompanhar o seu amigo—n'aquella agradavel incumbencia—dizia.
—Pois não, era até um obsequio—e agradeceu-lhe com um sorriso a sua amabilidade.
Na sala tinha uns modos finamente elegantes de offerecer um calice de vinho, que não havia recusar-lhe.
—Este Alberto, diziam as senhoras, sempre tem uma apresentação tão distincta!...
Junto d'Ermelinda deteve-se alguns minutos mais.
—Ah! ella não queria beber; e vinho perturbava-a um pouco, mas visto que elle insistia, ia fazer-lhe a vontade—e levou o calice aos seus vermelhos labios, que apenas se embeberam no liquido doirado pousando-o logo.
No quarto do Juca os rapazes, tomando posições commodas, estirados uns sobre o sophá, cavalgados outros sobre as cadeiras, discutiam n'uma nuvem de fumo e de grosserias os bons bocados, que estavam na sala e faziam commentarios, indecentemente libidinosos, que provocavam cheias gargalhadas.
Nos seus olhos faiscava um pouco a scintillação do Porto e do Madeira. Depois a conversação recahiu sobre o Alberto, o heroe da noite; os menos favorecidos plastica e estheticamente proromperam logo com muito azedume:
—Afinal quem era elle, de que vivia, de que se sustentava?
—Ninguem o sabia—era um vadio, não havia que duvidar.
Mas o Jeronymo, com um sorriso significativo{17} de finura, aprumando-se para os outros, como quem tinha o segredo do enigma:
—Sabem vocês onde mora a mulher do commendador Bernardo?
—De qual? perguntaram logo muitas vozes.
—D'aquelle... d'oculos, que está sempre á porta do Guimarães.
—Ah! logo se via... só assim!... ou então calotes em cada esquina.
Entraram logo em minuciosidades da sua vida; as informações foram apparecendo; disia-se que tinha dividas no alfaiate, no sapateiro e até no Central, onde já nem de jantar lhe queriam dar.
Mas a presença de Alberto veio pôr termo a estas murmurações; a conversação mudou de rumo, até que o piano preludiou uma walsa.
—Era irresistivel, não podia perder-se—e tomaram a direcção da sala, onde as meninas os esperavam, com os bellos olhos humidos dos ardores choreographicos, anehelando os braços d'elles, a que sonhavam encostar-se, como sylphides vaporosas, arrastadas na vertigem.
Incontestavelmente as honras da walsa pertenceram a Alberto e a Ermelinda.
—Se não fosse o par que ella tinha, veriamos—protestavam muitas, n'um tom mordente d'inveja, que as irritava como picadas d'alfinetes.
—Boa, pois olha, das outras vezes!
—Logo eu então, sempre tive um par!
—Ai! menina, nem me falles, o meu, esse parecia de chumbo!.. e sempre a parar, crédo!...
Lamentavam-se muito da sorte, que as destinara a enlaçar os seus braços nos d'um par sem{18} elegancia e pessimo walsista—mas para outra vez, já os conheciam—affirmavam.
—Depois, sem animação, mesmo uns tumbas, não sei que gente escolhe este Mendes.
Proximo d'Ermelinda o Alberto tinha já grandes intimidades, que se estavam tornando a pedra d'escandalo das meninas, que não possuiam essa mesma pedra. A filha do director acolhia por detraz do seu leque as phrases incendiarias do seu par, e sorria ao sentir em volta dos ouvidos a musica monotonamente harmoniosa da borboleta vadia da paixão. No seu intimo duas sensações subjectivas confluiam a dar-lhe um goso inestimavel de felicidade—esmagar a vaidade das outras e elevar a propria, sentindo-se preferida.
E emquanto o Alberto cinzelava n'uma linguagem fluente as phrases da sua declaração, ella muito feliz por ter arranjado namoro, pensava já na inveja que as outras lhe teriam quando elle passasse debaixo da sua janella, nas cartas que lhe escreveria, no portador d'ellas, se seria de tarde ou á noute que elle viria, como illudiria a vigilancia do papá, e em mil outras futilidades, que fluctuavam indecisas na sua imaginação, como o pollen das flôres no céo azul de maio.
As Bastos e a Adelaide Mendes murmuravam:
—Parece que o namoro sempre péga!
—Aquillo é pau para toda a obra.
—Só queria saber quantos namoros ella já terá tido.
—Quatro lhe conheci eu.
—N'esse caso não admiro que arranje mais um!{19}
Uma solteirona que veio para o grupo, a D. Clementina do Rosario, disse sarcasticamente:
—Aquillo são inclinações, meninas! Tambem ha homens, que sempre gostam de cada delambida! nem que não houvesse mais mulheres no mundo! Ora reparem que collo aquelle, uma esganiçada!...—e protestava n'umas excursões thoracicas, expansivas e rijas, em que os seios fartos se elevavam n'uma curva ampla e rasgada.
Entretanto o pae de Ermelinda jogava pacificamente o solo com o Bastos e o commendador Faria; o Mendes acercou-se da mesa.
—Então no rico, ein, commendador?
—Verá como este se vai tambem; pois olhe que é dos firmes; mas um caiporismo assim, nunca eu vi!
O Jorge interrompeu depois de examinar as suas cartas:
—Bólo.
—Não lhe dizia eu, sôr Mendes!...
O Bastos que era o pé, disse para o commendador:
—Jogue bem, parceiro, que elle o tem furado, essa lhe affianço eu!
Jogaram com muito silencio; mas o commendador estava realmente infeliz; logo á terceira cartada os olhos de Jorge, que era o feito, encheram-se da cubiçosa alegria das remissas; á quinta cartada mostrou o jogo.
O Bastos teve vontade de chamar burro ao commendador.
—Esta se não fazia, ein!—disse exaltado.{20}
—Mas que lhe digo eu, estou caipora, não ha que vêr.
O Jorge, fatigado, pediu substituto—era preciso tambem cavaquear um pouco—e affagando a sua honesta suissa burgueza, veio até á porta da sala observar o aspecto que offerecia.
O commendador, á meza do jogo, dizia entretanto:
—Tem uma filha bem sympathica este Jorge!
—Nem por isso, acudiram logo os dous que viam n'elle um candidato ás suas Adelaide ou Amelia.
—Peza pouco, continuou o Bastos.
—Me dizem que ainda tem os seus cinco contos! defendeu o commendador.
—E que é isso! fez n'um gesto despresivel o Bastos.
Avistando a Ermelinda e vendo a seu lado aquelle rapaz, o Jorge pensou logo n'um casamento, n'um bom partido. Foi colher informações.
—Um peralvilho, ein, só d'isto é que lhe apparecia—e irritado chamou a filha, dizendo-lhe—que iam sendo horas.
—Já, papai!
—E não era cedo!—accrescentou com uma tonalidade brusca na voz, que a Ermelinda percebeu logo.
N'este momento o piano tocava uns lanceiros. O commendador Faria approximou-se.
—Então por aqui, commendador!—perguntou o Jorge.
—É verdade, estava um caipora! Eram dias...{21} vinha então um pouco desentorpecer as pernas.
—Quer dizer que dança?
—É verdade, e se a senhora sua filha me concede essa honra.
—Pois não! oh! Ermelinda—disse o Jorge lisongeado—dansa estes lanceiros aqui com o snr. commendador Faria.
A joven olhou o Alberto, mordeu os beiços com o azedume de quem desejaria despedir um massador que se tem de supportar, e collocou-se no grupo respectivo.
As outras meninas viram que até o commendador dançara com Ermelinda, facto de provocar as attenções, porque o Faria quasi nunca dançava.
A D. Clementina do Rosario, abafando um ciume outomniço, disse para Adelaide:
—Só faltava mais esta!
—Não, a minha casa não torna ella n'uma occasião assim.
—É o que devias já ter feito, menina.
Entretanto o commendador sentia-se barbaramente atrapalhado nas evoluções dos lanceiros; a Ermelinda quasi tinha vergonha. Mas em compensação o commendador fallava de muitas riquezas, de muitas acções, e ella era filha d'um director de banco!
Na grossa mão do brazileiro um brilhante coruscava scintillações luminosas, quando os raios de luz vinham ferir a sua face. Ermelinda sentia uma especie de fascinação.—
—O que lhe faltava senão a riqueza—pensava—e olhando menos asperamente o commendador,{22} animava-o com um olhar, como se anima um molosso fiel e intelligente. De repente porém os seus olhos batiam nos olhos de Alberto; esquecia o seu par e sorria-lhe. Comparava-os muito ligeiramente, muito frivolamente. O Alberto era d'uma estatura elevada, elegante, sympathica; o commendador era grosso e baixo, como um tronco de oliveira, os seus pés assentavam no chão como as pesadas plantas d'um pachyderme, a sua mão tinha os relevos pesados d'uma massa de gymnastica.
—Ora, sempre tenho cada ideia—pensava—isto tem lá comparação!
Os lanceiros terminaram, com grande magoa do commendador—que tinha achado muito agradaveis aquelles momentos—dizia—. Ermelinda sorriu-se.
Fez-se então um grande silencio na sala; correu a voz de que o Alberto a pedido de varias senhoras ia recitar uma poesia.
Os homens amontoaram-se logo uns sobre os outros, nas entradas da sala, ávidos de sensações lyricas. As senhoras, tomando um ar admirativo e profundo, mal agitavam os seus labios, ciciando phrases curtas, cheias de enternecimentos.
O teclado principiou a gemer uma melopeia vaga, muito triste, como a voz funerea de cyprestes nas aleas d'um cemiterio. O Alberto, tomando uma pose impertigada, ao lado do piano, começou a recitar, n'uma cadencia monotona, o «Noivado do sepulchro» de Soares de Passos. A formosa balada, estafada como uma cortezã viciosa,{23} que apesar de tudo conserva a sua belleza ossianica, soava lugubremente, aos ouvidos d'um publico recolhido, que admirava o recitador mais ainda que a producção do poeta.
O Alberto tinha gestos tetricos, adequados ás condições do verso; as senhoras, ao vel-o, quasi pensavam vêr o phantasma da balada, arrastando o branco sudario por entre as lousas do cemiterio. Ermelinda estava commovida, extactica, absorta, e quando o Alberto terminou,
—Dous esqueletos um ao outro unidos foram achados n'um sepulchro só!...
ella sentiu o olhar d'elle acaricial-a, como n'um beijo gelido de morte, promettendo-lhe um amor assim, immenso, eterno, até mesmo além da campa.
Uma salva de palmas acolheu a ultima estrophe da poesia. Alberto agradeceu, com cortesias reverentes, de modestia affectada.
Então o Jorge veio dizer á filha que se preparasse.
—Não importa—pensou—assim como assim já marcamos a hora.—E foi despedir-se da Adelaide, das Bastinhos, da D. Clementina. Ao passar por Alberto disse-lhe tambem—Adeus.
—Já!
—O papá assim o determinava.
—Que tyrannia!
Subiu á toilette para cobrir a capa de noite, e quando desceu, o Alberto estava proximo da escada; sorriu-se ainda, trocaram um ultimo olhar.
Ele dansou uma vez mais; foi com a Adelaide,{24} uma walsa, que os fatigou muito. A filha do Mendes fez allusões aos seus novos amores, deu-lhe os parabens—elle, que não, que nada havia!—era uma menina muito sympathica de certo, mas o seu coração estava morto desde muito.
—E quer que lh'o ressuscitem, talvez?
—Respondeu que das cinzas não podia nascer a vida, que a paixão já não podia incendiar o gelo,—mil banalidades cheias de sentimentalismo, muito estafadas pelo uso, que elle conservava todavia no seu cerebro, como se conservam as coisas pathologicas nos frascos d'alcool.
A Adelaide escutava-o e sorria-se; lá bem no seu intimo achava-o tolo, mas a educação impunha-lhe o dever da admiração, e a sua voz, se algum dia se levantasse para dar uma opinião ácerca de Alberto, diria que era um rapaz elegante, fallando muito bem, com muito sentimento.
Pouco a pouco os convidados foram-se retirando. As senhoras sahiam muito embuçadas nas suas mantas de lã, aconchegando as capas sobre o pescoço, que o ar frio da rua espreitava com uma anciedade de bronchites.
Na atmosphera da sala um espesso ar condensado de gazes embaciava. As velas de stearina desciam ao nivel das aparadeiras e as heras tinham um verde pallido, que entristecia. O piano, como um grande monstro adormecido, mostrava os seus dentes de marfim, cançados de mastigar notas desafinadas.
O Mendes examinava todas as salas com um cuidado minucioso; sobretudo o quarto do Juca merecia-lhe dobrada attenção.{25}
—Ás vezes, alguma ponta de charuto, um descuido qualquer, podia originar um incendio—dizia cheio de cautelosas prudencias.
A Adelaide no seu quarto despia os atavios da festa; o seu corpo alquebrado deixava-se lentamente cahir n'uma molleza do esgotamento.
Estava morta por tirar aquelle maldito penteado,—dizia—nunca mais se serviria d'uma tal cabelleireira; e o collete como a apertava!
Em baixo o Juca mettia-se na cama com um—Ah!—de satisfação, de quem termina uma tarefa; uma pontinha de alcool fazia-lhe pesar a cabeça; o somno veio logo n'uma caricia despotica, de obediencia cega, fazendo-lhe cahir das mãos um romance de Ponson, que elle tinha o habito de lêr, todas as noites, antes de adormecer.
O Mendes estava muito loquaz, desabotoava-se com uma sem-ceremonia deshonestamente familiar, passeando no quarto, olhando a Carola que se desfazia perante o toucador, mostrando os hombros nús, roliços, humedecidos por um suorsinho quente.
—Até que emfim!... respirava ruidoso, n'uma expiração forte, prolongada, dilatando as bochechas.
—Uma soirée de truz, ein, Carola!
—Que sim—e atirava para o dorso a cabelleira farta, matisada de fios brancos, ennovelando-a na touca de noite, com uma elevação de braços esculpturaes, de axilas humidas, que punham desejos no cerebro um poucochinho quente do seu velho marido, do seu Mendes.
Entrava uma luz alvacenta pelos stores da janella,{26} e fóra ouvia-se o movimento murmurioso d'uma população que desperta. O canario começava a pipilar na gaiola, sentindo as livres aves gorgearem na frescura dos quintaes, e, na rua, os vendilhões ambulantes povoavam de sons estridentes o ar nebuloso da manhã primaveral.