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II

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Tinham decorrido quinze dias.

O namoro havia pegado, consolidara-se. Com uma certeza chronometrica o Alberto passava invariavelmente, todas as tardes, em frente da casa de Ermelinda.

Uma vidraça corria no primeiro andar e logo depois a filha de Jorge apparecia, com um sorriso engatilhado nos labios e um alto penteado na cabeça, emmoldurando-se no fundo escuro do desvão da janella.

A visinhança reparara a principio.

—Havia mouro na costa—diziam—mas pouco a pouco a tolerancia estabelecera-se, uma indifferença ordinaria, de coisa vulgar. A sua badine que tanto prendera as attenções, pelas curvas hyperbolicas que traçava no ar, fazendo signaes, já não despertava interesse; o lenço branco, rendilhado, simultaneamente absorvente dos defluxos e das impressões amorosas, ia creando o bolor dos esquecimentos, como teria creado o bafio das secreções. O namoro tornara-se um facto consumado, ordinario, sem a irritabilidade dos excitantes.{27}

A casa do Jorge tinha uma frontaria só; era como uma cellula engastada no favo immenso da rua; apenas existia, formado por um angulo reintrante da casa proxima, um pequeno recanto, d'onde se exhalavam fortes vaporisações ammoniacaes. O Alberto, que não podia remediar esta inconveniente disposição, utilisava-a. Era d'ali, que elle, occulto pela sombra do predio, procurava fallar com Ermelinda.

A noite adiantava-se. O transito ia gradualmente diminuindo; a patrulha, n'uma locomoção arrastada e ordeira, tinha a apparencia vaga dos ruminantes na solidão dos campos. Clareações de gaz punham sombras indecisas, formando na rua projecções phantasticas. Uma faxa de ceu, limitada pela vertical dos edificios, mostrava estrellas descoradas e pallidas, como lantejoulas sujas d'um vestido de comediante.

Adejavam surdos murmurios d'um movimento longinquo; e proximo, n'uma tanoaria, um martellejar compassado e monotono affirmava vigilias prolongadas d'um trabalhador obscuro. Ao fundo da rua um leque de luz sahia da porta meio aberta d'um armazem de vinhos; sentiam-se vozes disputar, e na esteira luminosa atravessava de quando em quando um ebrio, que forcejava por conservar um equilibrio digno. Abria-se alguma janella com estrondo e um choque d'aguas, chapeando na rua, indicava uma contravenção do codigo municipal.

O Alberto vinha sempre muito aconchegado no seu pardessus, a garganta agasalhada nas dobras quentes de um cache-nez; mansamente, como{28} uma cobra que deslisa, elle introduzia-se no recanto proximo e accendia um charuto.

Era o signal.

Uma vidraça rangia no primeiro andar da casa de Jorge, e a Ermelinda, muito intrigada, cheia de pequenos sustos deitava a cabeça de fóra da janella, investigando no espaço os raros vultos que passavam, como se receiasse compromissos.

Cumprimentavam-se com trivialidades, ligeiramente. Depois o Alberto, no desempenho romantico do seu papel de namorado, arremeçava para o alto umas phrases sonoras, d'um gongorismo empolado, crepitantes, como foguetes de lagrimas n'um ceu luarento, em noute de arraial.

—Que não acreditava, que era uma impostura.

—E porque não?

—Os homens! quem podia fiar-se n'elles! havia por ventura nada mais falso?—dizia muito queixosa das amarguras da sua experiencia malograda, em coisas de namoro.

—Ah! que elle não era assim!—protestava—que sentia por ella um immenso amor, infinito, como só uma vez se conhece na vida.

—E mais quem!—sorria, n'uma duvida amavel que lhe lisongeava a vaidadesinha de conquistador.

—Podia jurar-lh'o—affirmava—por tudo o que houvesse de mais sagrado aos seus olhos, pelo seu coração, pela sua sorte, pelo proprio Deus!

Ermelinda calava-se. N'estes momentos parecia-lhe que, se fallasse, profanaria a musica apaixonada e sublime d'aquellas juras d'amor; concentrava-se{29} sobre as suas phrases cheias d'uma secreta adoração mystica e sentia-se invadir d'umas sensações deliciosas, que a enterneciam.

—Não! elle não podia mentir—pensava—como era feliz em ser assim amada!

Um extasi ineffavel a envolvia docemente, suavemente, como um banho tépido d'essencias perfumadas. Se interrogasse então a voz occulta do seu espirito, não poderia dar uma definição de si propria.

—Ah! se podesse voar com elle para um ceu distante, para o desconhecido!... que felizes que seriam!...

Deixava-se fluctuar na atmosphera quente da rêverie, como as grandes aves serenas e mansas, que dilatam as azas, pairando, sobre as alturas do azul. Mas elle em baixo, quebrando a cinza branca do charuto, interrompia:

—Em que pensava?

—Ah! nem ella poderia dizer-lh'o.

—Que era talvez em outro; notava n'ella certa distracção, bem se via, uns modos... tão poucas palavras!...

—Que era só n'elle—protestava convencida.

—Ah! era então muito feliz.

—Muito, muito?—perguntava sorrindo com uma certeza de que havia melhor.

—Muito, muito, não! para isso só uma união eterna, indissoluvel, que os tivesse sempre juntos, unidinhos, como um casal de pombos enamorados.

Ermelinda sentia um rubor honesto, de felicidades nubentes, invadir-lhe a face.{30}

—Ah! que a Amelinha Bastos essa é que fôra feliz! Um bello casamento! E então só o vestido do noivado, que dinheirão!... Mas nem por isso estava bonita, não lhe parecia?

—Que sim—respondia desdenhoso.

—E sempre teve um dia mais desagradavel: chuva, sempre chuva! era insopportavel; apesar do trem, tinha-se toda salpicado de lama! O seu casamento havia de ser n'um dia alegre de sol, muito sol; não achava melhor?—

—De certo! elle todavia julgava indifferentes essas cousas! qualquer dia era bom!

Calavam-se; um novo silencio cahia, como as pausas lentas d'um trecho de musica.

A patrulha voltava do seu gyro; e ao ver ainda os namorados, observações baixas, eivadas de um philosophismo de caserna se suscitavam.

Que o gajo ainda estava de sentinella, não tardava em apanhar uma queixa de peito.

—Deixasse lá—respondia o camarada—comiam-lhe bem e bebiam-lhe! não eram como a gente, uns desgraçados! um rancho sem sustancia, e mortos de serviço.

Ermelinda fallava; mas um carreiro, em articulações gutturaes, d'uma linguagem primitiva e grosseira, praguejando contra os bois, não deixava ouvir. O carro affastava-se produzindo sons estridentes nos parallelipipedos.

—Para isto não olhava a policia—murmurava o Alberto, indignado, agitando a badine.

—Que o tempo parecia querer mudar—dizia ella—estava-se a pôr frio, nuvens caminhavam escurecendo o céo; uma estação tão inconstante! {31}

—Exactamente, como as mulheres!—arguciava.

—Não, isso, não! Elles sim! não havia hoje quem encontrasse um coração leal, todo occupado na imagem d'uma só mulher!

—Nem o meu?

—Eu sei! Os homens são tão voluveis!

—Ah, que ella o não amava! do contrario não fallaria assim!—dizia todo offendido, n'uma voz rapida, d'um tremulo nervoso.

—Se o não amava! nem dissesse tal! era uma blasphemia, daria por elle a sua felicidade, a sua vida.

E quasi se sentia arrependida de lhe ter chamado voluvel; uma grande tristesa subia ao seu espirito, fazendo-lhe experimentar alguma coisa de commovente, que lhe marejava d'agua os olhos limpidos e bellos. N'aquelle instante desejaria cortar por todas as conveniencias, saltar d'aquella janella, aproximar dos seus labios a fronte pallida do seu amante e dizer-lhe n'um impeto d'amor:

—Amo-te, Alberto, amo-te muito.

Depois ajoelhar-se n'uma supplica muda, para que elle a levantasse, doido d'amor, muito carinhoso e meigo, como já tinha visto fazer no theatro ao actor Santos, quando se representava o Antony.

Mas quando ella se arroubava n'estes pensamentos languidos, enternecida e melancolica, um vulto apparecia ao fundo da rua, fazendo estalar uns passinhos miudos, rapidos, de quem tem pressa de chegar.{32}

—O pae, o pae, adeus!—despedia-se atrapalhadamente, fechando a janella com o menor barulho possivel.

—Que raio!—regougava o Alberto n'um plebeismo grosseiro de indignação irada, como se desejasse fulminar com a vehemencia da sua apostrophe o cidadão honesto, que recolhia tranquillamente do seu whist, do Club. E desalojando-se da posição, seguia rapido na direcção opposta, embuçando-se mais, com as mãos nos bolsos, repuchando o casaco sobre os rins, com arrepios de frio. Voltava-se obliquamente para ver entrar o Jorge e depois retrocedia, lentamente, devagar, como um vadio incorrigivel.

Olhava; vultos perpassavam no fundo luminoso da vidraça descida.

—Devem ir tomar o chá—pensava—emquanto elle, exposto ao relento da noite, á neblina, á intemperie, tinha de atravessar quasi meia cidade, um estirão, para se metter n'uma pocilga nojenta, miseravel, que o revoltava.

Caminhava lentamente, com mau humor; as linhas do seu rosto vincavam-se n'uma irritabilidade surda, espelhando o lodo da sua alma.

Atravessou ruas desertas, praças onde apenas as grandes arvores se levantavam, como espectros collossaes; ás vezes uma guitarrada apparecia, cantando trovas fadistas, acanalhadas; mulheres que estendiam a mão e a honra á philantropia que voltava das ceias, occultavam-se na sombra, como vermes que se arrastam.

Alberto desceu os Clerigos, atravessou a praça de D. Pedro, subiu a rua de Santo Antonio.{33}

Morava em S. Victor.

Ao chegar á Batalha parou para accender um charuto. Dous vultos que vinham na sua direcção gesticulavam, fallando alto.

—Com que então depennado!

—De todo!... se me emprestasses uma libra mais, uma coroa que fosse!... estou com palpite! Era no rei de espadas, acredita-me.

—Deixa-te d'asneiras; não basta o que lá te ficou! outra vez tirarás a tua desforra!

Affastavam-se; palavras indistinctas, confusas, fluctuavam no espaço sonoro.

O Alberto pareceu meditar; as suas mãos revolviam com avidez os bolsos.

—Cinco tostões, que miseria, posso lá fazer figura!—disse com desalento.—Deu alguns passos mais, parou de novo, indeciso. A ideia do jogo, symbolisada n'aquelle rei de espadas, aferroava-lhe o cerebro, como uma vespa opportuna que se enxota debalde.

—Tambem pouco perco, vamos lá.

Resolveu-se.

Retrocedeu e entrou no Gremio. Jogadores infelizes sahiam; em cima ouvia-se um brou-ha-ha ruidoso e tosses convulsas provocadas pelo fumo do tabaco.

A atmosphera espessa podia partir-se, asphixiava; no soalho os escarros collavam-se ás pontas de cigarros.

O Alberto entrou, sem se incommodar, como velho conhecimento.

O banqueiro apresentava n'aquella occasião um rei d'espadas.{34}

—Jogo—disse rapido.

A sorte foi-lhe favoravel. Duas horas depois um monte d'ouro estava na sua frente. Os olhos irradiavam-lhe alegrias febris; nas faces tinha o calor rubro das congestões. Os amigos rodeiavam-o como a um semi-deus olympico.

Jogou a ultima parada, levantou-se; convidou os rapazes para uma ceia. Felicitações choviam e sorrisos felinos, de invejas abafadas, procuravam-o de todos os lados.

O sol banhava de luz a cidade, quando o Alberto, com os olhos baços, cambaleando, se mettia n'um trem e mandava bater para o Central.

A Divorciada

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