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III

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A hora ia passando, Ermelinda começava a manifestar uma impacienciasinha.

—Já se vai demorando—pensava—e investigava com o olhar contrahido, os vultos que ao longe apresentavam com Alberto uma semelhança na estatura, no andar. Mudava de posição frequentemente, aconchegava-se para o canto da janella com o fim de apanhar uma porção de horisonte mais extensa.

A noite cahia e os empregados do gaz, n'um passo rapido, de tarefa imposta, accendiam os candieiros, que atiravam projecções luminosas sobre a calçada, e sobre as frontarias dos predios.

Começava a ser frequentado o armazem, lá ao fundo da rua; os transeuntes iam diminuindo, e{35} os vendilhões, n'um grito rouco, fatigado, apregoavam ainda os ultimos productos do seu commercio. Um rodar surdo d'americanos serpenteava, e as luzes vermelhas, como olhos injectados, passavam rapidas, oscillando. Uma sombra caminhava n'um movimento circular, desapparecendo, á medida que o vulto se approximava da luz.

—Ah! d'esta vez era elle, conhecia-o no andar—e escondia-se, maliciosa, para o surprehender.

—Mas não—o sugeito continuava a caminhar indifferentemente, não attentando n'ella sequer.

—E esta!—dizia, n'uma voz tremente, nervosa, de desillusão provada.

Mas depois, reflectindo:

—Não ha que ver, não vem!—e possuia-se d'uma irritação surda contra tudo e contra todos; um ferro que não podia bem explicar.—Parecia-lhe que os seus nervos tinham uma sensibilidade electrica; que era toda outra, inteiramente diversa.—

—Mas não tem explicação possivel!—murmurava.

Pensava em acalmar, em socegar; olhava distrahidamente as estrellas que fulguravam nas alturas, procurando n'uma rêverie indolente e malandra, uma especie de quietação scismadora e contemplativa que a absorvesse.

—Mas não podia,—irritava-se mais, contrahiam-se-lhe n'uma crispação nervosa as linhas da physionomia e a sua vontade, o seu desejo, seria n'aquelle momento converter-se n'um vendaval violento, que assolasse, que devastasse tudo{36} na sua passagem. Tinha intermittencias de paciencia, acalmava; o rosto espelhava resignações como a superficie d'um lago, onde não sopram ventos; mas lá dentro uma agitação surda roía, como um verme das madeiras no silencio dos quartos de dormir das velhas estalagens. Cançada de esperar, fechou a janella, com estrondo rapidamente.

—Canalha—murmurou enraivecida.

E passando pela Joaquina disse-lhe exaltada:

—Diga ao papá que hoje não esperei, doía-me a cabeça.

—Se queria um chá de cidreira.

—Tome-o Você—respondeu com asperesa, como uma nortada rija.

—Vai com a telha!—

Entrou no seu quarto, fechou a porta bruscamente.

A Joaquina ainda philosophava:

—bem o dizia ella, estava com a telha—e continuou a correr o ferro de brunir sobre uma camisa de homem.

Uma lampada de vidro fosco, suspensa n'um tripede de metal bronzeado, punha uma meia luz suave sobre o recinto, onde entrara Ermelinda.

Deixou-se cahir n'uma chaise-longue; os seus joelhos sobrepondo-se, n'um habito de quem costura, deixavam sahir da linha desordenada do vestido alvuras de saias e um pé elegante, n'um sapatinho de bico, enleado, que deixava vêr a fórma nervosa um pouco secca, da perna calçada em meia côr de rosa.

Apoiou a face sobre a mão esquerda, e os seus{37} dedos, n'uma mechanica inconsciente, beliscavam inquietos o rosado lobulo da orelha. Os olhos extacticos e mudos como dois lagos de luz, poisavam, n'uma absorpção humida e contemplativa, sobre os moveis d'aquelle ninho tão povoado das suas ideias, dos seus sonhos, das emanações perfumadas da sua alma.

Tudo porém n'aquelle momento se lhe affigurava estupido, inerte, sem uma recordação, sem uma saudade. O espelho do toucador reflectia-lhe sombras indecisas e vagas; os pequenos frascos de crystal, cheios d'essencias que ella tanto amava, pareciam-lhe agora comparsas imbecis que rodeiam o genio d'um grande artista. A sua commoda pequena, com embutidos de madreperola, onde guardava os seus bellos vestidos, tinha as apparencias informes d'uma tartaruga collossal, empalhada, nos ocios de museu.

Como nos lagos tranquillos, ao avisinhar das tempestades, saltam ao lume d'agua peixes prateados, assim tambem do intimo do seu peito respirações suspiradas sahiam de quando em quando, agitando-a na quietação muda das suas meditações concentradas.

—Porque não teria elle vindo?—

Era a pergunta que o seu espirito não cessara ainda de formular, sem que sahisse do circulo vicioso, d'uma resposta negativa. Acudiam-lhe muitos motivos, muitos pretextos, para o desculpar, para o censurar.

—Assim! sem mais, nem mais!—pensava—é ter-me em muito pouca estima—e cheia d'um phrenesi nervoso apertava com mais força o lobulo{38} da orelha, respirava frequente, agitando o seu sapatinho n'umas flexões rapidas, que indicavam necessidade de movimentos expansivos.

Os olhos marejavam-se-lhe d'uma humidade turva, lagrimas segregadas no reflexo de coleras occultas.

—Mas se estivesse doente! Ah, como era infeliz! Que maldita duvida—e deixava-se cahir n'uma suavidade de sentimentos, esquecia todas as recriminações, todas as queixas, tudo o que podesse recordar-lhe uma falta d'elle. Lembrava-se apenas que estaria talvez só, desamparado, entregue á indifferença egoista de criados de hotel, sem um amigo, sem uma irmã carinhosa, desvelada, que o affagasse como a uma creança, que lhe tomasse a cabeça entre as mãos, que depozesse um beijo animador na sua testa aquecida pela febre.

Via-o sorrindo, se ella lhe podesse apparecer, com aquelle sorriso meigo dos febricitantes e o olhar prostrado, d'uma languidez doentia—que lhe devia ficar tão bem!—

Chorava então. A sua alma de mulher, apesar de educada na sentimentalidade vadia das pieguices de collegio, dos namoros de janella, das missas ao Domingo, dos luxos baratos, das leituras romanescas, dos sorrisos de soirées, irradiava uma sensibilidade pura, honesta, como um sol, que empanado pelo escuro das nuvens, se entremostra uma vez ou outra no fundo luminoso e transparente do azul sereno e indefinido.

—Ah, como desejaria ser sua esposa, sua irmã,{39} sua amiga! como ella o amaria assim doente, como seria desvelada, solicita, carinhosa.—

Calava-se; as lagrimas deslisavam sobre as suas faces, abundantemente, como um rio que se solta. Pouco a pouco diminuiam, estancavam-se n'uma sensação ardente, de febre nervosa que a invadia. Sentiu frio, lembrou-se que já era talvez muito tarde. N'este instante o Jorge voltava do Club. A Joaquina fazia tilintar dentro as chavenas do chá.

Poz-se em pé e principiou a despir-se; a sua cama á franceza, estreita, de colcha branca, esperava-a n'uma attitude virginal e passiva, como um ninho abandonado, ás quentes irradiações de corpos vivos.

Era aquella tambem a hora a que costumava despedir-se d'Alberto; por isso a crise ia diminuindo, cahia n'um desalento molle, de prostração fatigante. Metteu-se no leito, despenteada, com um vagar preguiçoso, de habitos indolentes, alisando o travesseiro. Uma sensação de frescura do linho a penetrou até á medulla; teve um calefrio rapido, um ah! de satisfação; ennovellou-se, como as creanças debeis e ficou assim, muito tempo, sem se mover, com os vagos olhos absortos, pregados na lampada, que ardia.

Lembrou-se que não tinha resado; descobriu o braço e fez o signal da cruz; os labios balbuciavam umas orações banaes, narcotisadoras, que lhe fizeram pesar as palpebras.

Tinha adormecido. Nas linhas do seu rosto divisava-se ora um sorriso alegre, de satisfação saciada, ora uma contracção spasmodica, revelando{40} amarguras, desesperos intimos, que a commoviam. Sonhava com Alberto.

—«Via-se noiva, de vestido de faille branco, muito chic, feito nas Ferin, tendo ao peito um ramo de flôr de laranjeira e na cabeça um penteado elegante, coroado por uma grinalda identica, onde prendia um véo de tulle, amplo, magestoso, que a velava pudicamente; nunca lhe parecera tão pequenino o seu pé, como calçado n'aquelle sapato branco, de setim, dando um realce artistico á sua perna gentilmente vestida em meia de seda.

—Ah! como o Alberto gostaria d'ella assim!—sorria vaidosa—

—E a elle, via-o tambem, muito frisado, de gravata branca, a camisa com abotoadura de brilhantes, de casaca, muito attencioso, muito reverente, cheio de elegancia, invejado por todas, por ellas, pelas suas amigas, que a felicitavam com sorrisinhos traiçoeiros, compromettedores, que faziam córar.

E de sobre a elegancia da sua toilette de noiva, ella, para se vingar, deixava cahir sorrisos, animadores, de consolação, para a Adelaide Mendes, para as Gomes, para a filha do Bastos, e outras que ainda estavam solteiras.

Via o aspecto dos trens, enfileirados, ao sahir da egreja, e a sua carruagem de noiva, com os cavallos brancos, e cocheiros de fardas vistosas. O commendador Faria, muito cheio de brilhantes, pesado, enchendo elle só um trem, seria o padrinho.

Ao sahir, quando já vinha pelo braço d'Alberto,{41} as mulheres do povo, cobrindo-a de santas aspirações, de bençãos:

—que Deus a fizesse feliz, que fosse em boa hora—

—Apesar de que não promettia muito a cara do noivo—observara uma aldeleira ambulante, de grosso ventre levantado, e roupas velhas penduradas no braço de côres arreliosas.

Que vontade teve de a esganar, o diacho da velha... dizer que o seu Alberto, tão lindo, tão sympathico, não tinha boa cara: forte bruta!—

Mas esqueceu-a breve; o cortejo dos convidados, um sequito apparatoso que a rodeava como a um astro, fazia-lhe vaidade, tornava-a feliz, parecia-lhe que a dilatava de superioridade.

Depois os convidados, n'uma civilidade ironica, iam-se despedindo. As senhoras abraçavam-a, segredando-lhe ao ouvido e pondo beijos miudinhos nas suas faces aquecidas. A final ficaram sós, ella e o seu amado, o seu marido! Havia uma lampada de crystal no quarto e os cortinados, como as vélas d'uma gondola, agitavam-se trementes, como se o leito fôra na realidade um barcosinho, onde ambos tivessem de navegar para um paiz distante, desconhecido, estranhamente novo. Elle tomara-a um pouco arrebatadamente, sentando-a nos joelhos, affagando-a com beijos e sorrindo, ao tirar-lhe o véo de noiva, que a fazia reflectir no espelho do toucador, toda branca, d'uma brancura eburnea, de camelia nevada.

E no seu rosto adormecido divisava-se um limpido sorrir, de doce voluptuosidade, como se a{42} alma lhe irradiara nas sensações tépidas d'aquelle sonhar delicioso. Mas logo após esta serenidade tranquilla e suave, em que talvez a sua imaginação voasse para esse periodo ditoso e perfumado da lua de mel, em que teria sempre junto de si o seu maridinho, muito carinhoso e muito meigo, o periodo dos jantarzinhos frugaes e delicados, com flores na meza e alegrias no espirito, as linhas da physionomia contrahiram-se-lhe n'uma crispação dolorosa, e o sonho revestia uma feição diversa, em que a amargura vinha como uma flor envenenada, empeçonhar os dias de ventura;

—era ainda aquelle o Alberto que ella amava, mas desleixado, vadio, ébrio; tinha grosserias insupportaveis, ferocidades de despota—

—e via-se triste, chorando muito, sem um consolo, sem um carinho que a alentasse...—era horroroso—estava diante de si uma galeria subterranea, escura, um abysmo de sombras...

—não, não queria caminhar, tinha medo...—mas elle, rindo, dera-lhe um impulso brutal, fizera-a entrar; um caminho escabroso, cheio de asperesas, silvados rodeando-a por todos os lados... cada passo custava-lhe muitas lagrimas... e o Alberto ria, ria, estupidamente, como um idiota embriagado... Um anjo se approximou d'ella; tinha o perfil do commendador Faria, com os seus oculos d'ouro, e as mãos a despedirem luz como as dos illuminados celestes; mas a luz sahia-lhe da base dos dedos, do logar dos anneis; e tomou-a nos braços, sentia-se voar, muito cheia de doce gratidão, quasi esquecida, quando uma creança se lhe prendeu aos vestidos, parecendo reprehendel-a{43} d'aquelle vôo egoista, olhando-a com a limpidez casta d'uns grandes olhos pretos;... mas o anjo—commendador dominava-a, arrastando-a sempre, perguntando-lhe n'um adociado brazileiro:

—se a sinhasinha não voava,—que morreria se parasse, lá estava o snr. Alberto a rir-se d'ella—

e—sim, lá estava!—olhou para traz, uma enorme cadeia a prendia a elle, e uns policias passavam então, empurrando-a, batendo-lhe brutalmente.

—Queria fugir, fugir: era horroroso!»

Despertou então. Um suor frio lhe humedecia a testa; a cabeça doia-lhe um pouco, sentia-se fatigada. A luz da lampada esbatia-se moribunda nos primeiros alvores da manhã que vinham entrando pelas fendas da janella; ouviu o gallo cantar no quintal e logo depois uma voz arrastada, n'uma melopeia monotona, bradando do fundo da escala:

—Leiteira!—

A Joaquina desceu; ouvia-se um murmurio indistincto de vozes feminis, e em seguida o estrondear da porta que se fechava.

N'aquelle dia andou toda alvoroçada, nervosa, muito inquieta. Olhava muitas vezes o relogio, uma pesada machina de nogueira, a que o Jorge todos os sabbados dava corda, com a phrase rythmica:

—Tens de comer para oito dias.—

Parecia-lhe que os seus largos ponteiros de metal se moviam com uma lentidão desesperadora.{44} Teve vontade de o adiantar—mas era uma tolice—pensou.

Sentou-se a trabalhar para ver se distrahia. Descobriu no bastidor um bordado delicado, a matiz, um ramo de rosas, sobre que vinha poisar uma borboleta. A mão porém não lhe assentava, as sedas sahiam frequentemente da agulha, o desenho errava.

—Ora! não estava para aquillo.—

Levantou-se, principiou a ler; era «Agulha em palheiro» de Camillo Castello Branco; interessava-se muito por aquelle sympathico filho do sapateiro, o heroe do romance, e sentiu deslisar umas lagrimas furtivas ao ver a formosa Paulina, uma doce creação do romancista, tão soffredora e tão amante.

Tocaram a campainha.

—Quem seria?—disse pousando rapidamente o livro e pondo-se diante do espelho, para anediar o penteado.

—Se fosse visita de ceremonia! que massada.—

Mas a Joaquina veio dizer:—que estava ali a snr.ª D. Amelinha Bastos, aquella que tinha casado.—

—E vem só?—

—Vem, minha senhora.—

—Ah! que mandasse entrar para a sala de visitas, que se aviasse.—

—Não te encommodes, não te encommodes, menina, eu não sou de ceremonias, venho mesmo para a tua sala de trabalho,—disse a Bastinhos entrando estouvadinhamente, chilreando como um passaro alegre.{45}

Beijaram-se muito,—que não havia quem a visse, devia estar muito zangada, se era cousa que se fizesse.—

—Ai, filha, tenho tido tanto que fazer.—

—Tira o chapéu; espera, eu o tiro,—

e com um geito feminil, delicado, levantou-lh'o de sobre o penteado, emquanto a Amelinha, quieta como uma creança que se enfeita, esperava n'uma attitude passiva.

A Bastinhos principiou logo a fallar, tinha uma grande verbosidade, muita volubilidade nos pensamentos, de quem tem muito a descrever, mas que o faz sem methodo.

—A modista, os passeios, o theatro, se não sabia do ultimo escandalo da mulher do commendador Bernardo, que fôra uma vergonha, que o marido ia requerer o divorcio.—

—Estou admirada!—dizia-lhe Ermelinda.

—É o que te digo, menina, e então com quem, vê se adivinhas?—

—Não, que não adivinhava.—

—Com o Alberto, filha, com o Alberto!—e desatou n'uma gargalhada crystalina, debruçando-se sobre o bordado a matiz, muito curiosa.

Ermelinda sentiu as pernas tremerem-lhe; a sua physionomia invadiu-se rapida d'uma pallidez pronunciada; o seu desejo seria ter n'aquelle momento uma explosão de colera, de lagrimas; mas a Amelinha Bastos estava ali e a sua presença suffocava-a, como uma mascara que nos affogueia o rosto.

—Se queria tomar alguma cousa—perguntou-lhe—tinha-se esquecido.—{46}

—Nada, nada!—

—Vê lá, menina?—

—Tens tu por ahi Xerez? é do vinho que mais gosto, meu marido aprecia-o muito!—

—Que ia buscar-lh'o n'um instante, que a desculpasse por ter de ficar só.—

—Á vontade, filha, á vontade—e pegou no romance que Ermelinda estava lendo, em quanto esta se retirava a buscar-lhe o Xerez.

D'ali por momentos Ermelinda entrou com uma pequena salva de prata, onde vinha uma garrafa de crystal e dous calices; a Amelinha muito prompta, com grande espalhafato, foi ajudal-a. Ella mesma encheu os calices e tomando um, disse com modo desenvolto:

—Á tua felicidade, Ermelinda.—

—Obrigada, menina.—

Mas os seus olhos turvaram-se d'umas lagrimas, depressa occultas n'um lenço em que fingiu assoar-se; dentro mesmo ella tinha chorado, agradecendo no seu intimo á Amelinha aquelle desejo do Xerez, que lhe dera uns instantes de isolamento.

A Amelinha, sentada na chaise-longue, saboreava o vinho em pequenos sorvos, fazendo covinhas nas faces. Depois, como tomada d'uma lembrança repentina:

—E o teu namoro, como vai, menina?—

—Oh, filha, se queres que te diga...—

—Dize lá, dize lá, estou muito curiosa de saber—e curvou-se um pouco, n'uma pose confidencial, de quem escutaria com ávido interesse.

—Andamos assim, meios cá, meios lá—respondeu{47} Ermelinda encolhendo os hombros, franzindo o labio,—se queres que te diga, menina, já me importei com elle, aquillo foi uma phantasia, uma brincadeira que pouco durou! Para mim já não ha illusões.—

—Pois tinham-me asseverado que te casavas.—

—Credo, nem se pensou em tal!—Mas como desejasse evitar a continuação da conversa:

—E tu, como te dás com o Guilherme?—

—Bem, filha, magnificamente!—

—Tu é que foste feliz—disse Ermelinda tomando a mão, que a Amelinha abandonou, n'uma nonchalance de bébé, gosando com aquelle aperto que lhe lembrava uma caricia do seu maridinho.

—Por emquanto não tenho rasão de queixa; o Guilherme não vê outra cousa diante dos olhos; até, se queres que te diga, ás vezes chega-me a aborrecer com tantas pieguices.—

—Ingrata...—

—Ingrata, não! Mas tu o sabes... sou assim um poucochinho estroina... não gosto de homens tão serios e tão pêccos.—

—Olha, menina, é n'essas pequenas coisas que consiste a felicidade.—

—Boa! ahi queres tu prégar-me um sermão de moral! oh, menina, enche-me este calice; mas ainda agora reparo que tens lagrimas nos olhos!

—Lagrimas, eu! estás doida!—

—Coitadinha da pequerrucha, que quer illudir uma mulher casada—disse arrastando a voz n'um chilrear cantadinho—e batendo-lhe na face palmadinhas{48} amigaveis, animando-a, pedindo-lhe a confidencia d'aquelle chôro.

—Que não era nada; ás vezes ficava assim nervosa, tinha d'aquellas extravagancias.—

—Nervosa, tambem ella era muito! o dr. Arnaldo Braga dizia que era todo o seu mal—e a Amelinha principiou a explicar, com grande volubilidade, as impressões que sentia ouvindo musica, ao ver no theatro um drama triste, ou então quando o seu gato preto, em certos dias, se lhe atravessava no caminho e ella, sem querer, lhe pisava a cauda e ouvia o miar queixoso do animal.

—Muito nervosa, muito! este anno vou até para a Foz e tomo um grande numero de banhos; já combinei com o Guilherme.—

—És feliz, menina, és feliz!—

—Assim!...—fez Amelinha contrahindo o labio com certo desdem! e curvando-se disse-lhe ao ouvido uns segredinhos quentes, que fizeram enrubescer Ermelinda.

—Ora!—respondeu esta—póde lá ser isso!—

—É o que te digo, filha!—e a Amelinha, pondo-se em pé, principiou a passear, cantarolando a canção do Rigolleto:

«La donna é mobile»

N'este momento o velho relogio de Jorge bateu as duas horas.

—Ai! tão tarde! Credo! Adeus, menina, vou-me embora!—

—Já?—{49}

—Já; ainda tenho de ir ao Pinheiro, a Cedofeita. Preciso umas guarnições para o meu vestido d'estação.—

—N'esse caso não te demoro!—e Ermelinda, collocando-lhe de novo o chapeu, fazia-a prometter que viria mais vezes, para passarem um bocadinho juntas.

—Estou ás vezes tão só!—

—Pois hei-de vir, filha, hei-de vir! e pondo-lhe na face uns beijos sonoramente cantados, a Amelinha, affogueada pelas irradiações do Xerez, muito alegre como um passaro na Primavera, desceu o véo de tulle branco sobre o rosto e sahiu, batendo com grande estrondo a porta da campainha.

—Sempre está uma douda!—disse Ermelinda vendo-a sahir!—e após um silencio de reflexão:

—E adeus, são estas as que são mais felizes!

A Divorciada

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