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RIMAS
REDONDILHAS

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Sôbolos rios que vão

Por Babylonia, me achei,

Onde sentado chorei

As lembranças de Sião,

E quanto nella passei.

Alli o rio corrente

De meus olhos foi manado;

E tudo bem comparado,

Babylonia ao mal presente,

Sião ao tempo passado.


Alli lembranças contentes

N'alma se representárão;

E minhas cousas ausentes

Se fizerão tão presentes,

Como se nunca passárão.

Alli, despois d'acordado,

Co'o rosto banhado em ágoa,

Deste sonho imaginado,

Vi que todo o bem passado

Não he gôsto, mas he mágoa.


E vi que todos os danos

Se causavão das mudanças,

E as mudanças dos anos;

Onde vi quantos enganos

Faz o tempo ás esperanças.

Alli vi o maior bem

Quão pouco espaço que dura;

O mal quão depressa vem;

E quão triste estado tem

Quem se fia da ventura.


Vi aquillo que mais val

Qu'então s'entende melhor,

Quando mais perdido for:

Vi ao bem succeder mal,

E ao mal muito peor.

E vi com muito trabalho

Comprar arrependimento:

Vi nenhum contentamento;

E vejo-me a mi, qu'espalho

Tristes palavras ao vento.


Bem são rios estas ágoas

Com que banho este papel:

Bem parece ser cruel

Variedade de mágoas,

E confusão de Babel.

Como homem, que por exemplo

Dos trances em que se achou,

Despois que a guerra deixou,

Pelas paredes do templo

Suas armas pendurou:


Assi, despois qu'assentei

Que tudo o tempo gastava,

Da tristeza que tomei,

Nos salgueiros pendurei

Os orgãos com que cantava.

Aquelle instrumento ledo

Deixei da vida passada,

Dizendo: Musica amada,

Deixo-vos neste arvoredo

Á memoria consagrada.


Frauta minha, que tangendo

Os montes fazieis vir

Par'onde estaveis, correndo;

E as ágoas, que hião descendo,

Tornavão logo a subir;

Jamais vos não ouvirão

Os tigres, que s'amansavão;

E as ovelhas, que pastavão,

Das hervas se fartarão,

Que por vos ouvir deixavão.


Ja não fareis docemente

Em rosas tornar abrolhos

Na ribeira florecente;

Nem poreis freio á corrente,

E mais se for dos meus olhos.

Não movereis a espessura,

Nem podereis ja trazer

Atraz vós a fonte pura;

Pois não pudestes mover

Desconcertos da ventura.


Ficareis offerecida

Á Fama, que sempre vela,

Frauta de mi tão querida;

Porque mudando-se a vida,

Se mudão os gostos della.

Acha a tenra mocidade

Prazeres accommodados;

E logo a maior idade

Ja sente por pouquidade

Aquelles gostos passados.


Hum gôsto, que hoje s'alcança,

Á manhãa ja o não vejo:

Assi nos traz a mudança

D'esperança em esperança,

E de desejo em desejo.

Mas em vida tão escassa

Qu'esperança será forte?

Fraqueza da humana sorte,

Que quanto da vida passa

Está recitando a morte!


Mas deixar nesta espessura

O canto da mocidade:

Não cuide a gente futura

Que será obra da idade

O que he fôrça da ventura.

Qu'idade, tempo, e espanto

De ver quão ligeiro passe,

Nunca em mi puderão tanto,

Que, postoque deixo o canto,

A causa delle deixasse.


Mas em tristezas e nojos,

Em gôsto e contentamento;

Por sol, por neve, por vento,

Tendré presente á los ojos

Por quien muero tan contento.

Orgãos e frauta deixava,

Despôjo meu tão querido,

No salgueiro que alli'stava,

Que para tropheo ficava

De quem me tinha vencido.


Mas lembranças da affeição

Que alli captivo me tinha,

Me perguntárão então,

Qu'era da musica minha,

Que eu cantava em Sião?

Que foi daquelle cantar,

Das gentes tão celebrado?

Porque o deixava de usar,

Pois sempre ajuda a passar

Qualquer trabalho passado?


Canta o caminhante ledo

No caminho trabalhoso

Por entre o espêsso arvoredo;

E de noite o temeroso

Cantando refreia o medo.

Canta o preso docemente,

Os duros grilhões tocando;

Canta o segador contente;

E o trabalhador, cantando,

O trabalho menos sente.


Eu qu'estas cousas senti

N'alma de mágoas tão cheia,

Como dirá, respondi,

Quem alheio está de si

Doce canto em terra alheia?

Como poderá cantar

Quem em chôro banha o peito?

Porque, se quem trabalhar

Canta por menos cansar,

Eu só descansos engeito.


Que não parece razão,

Nem sería cousa idonia,

Por abrandar a paixão

Que cantasse em Babylonia

As cantigas de Sião.

Que quando a muita graveza

De saudade quebrante

Esta vital fortaleza,

Antes morra de tristeza,

Que por abrandá-la cante.


Que se o fino pensamento

Só na tristeza consiste,

Não tenho medo ao tormento:

Que morrer de puro triste,

Que maior contentamento?

Nem na frauta cantarei

O que passo, e passei ja,

Nem menos o escreverei;

Porque a penna cansará,

E eu não descansarei.


Que se vida tão pequena

S'accrescenta em terra estranha;

E se Amor assi o ordena,

Razão he que canse a penna

D'escrever pena tamanha.

Porém, se para assentar

O que sente o coração,

A penna ja me cansar,

Não canse para voar

A memoria em Sião.


Terra bem-aventurada,

Se por algum movimento

D'alma me fores tirada,

Minha penna seja dada

A perpétuo esquecimento.

A pena deste destêrro,

Qu'eu mais desejo esculpida

Em pedra, ou em duro ferro,

Essa nunca seja ouvida,

Em castigo de meu êrro.


E se eu cantar quizer

Em Babylonia sujeito,

Hierusalem, sem te ver,

A voz, quando a mover,

Se me congele no peito;

A minha lingua se apegue

Ás fauces, pois te perdi,

S'em quanto viver assi

Houver tempo, em que te negue,

Ou que m'esqueça de ti.


Mas ó tu, terra de glória.

S'eu nunca vi tua essencia,

Como me lembras na ausencia?

Não me lembras na memoria,

Senão na reminiscencia:

Que a alma he taboa rasa,

Que com a escrita doutrina

Celeste tanto imagina,

Que vôa da propria casa,

E sobe á patria divina.


Não he logo a saudade

Das terras onde nasceo

A carne, mas he do Ceo,

Daquella santa Cidade,

Donde est'alma descendeo.

E aquella humana figura,

Que cá me póde alterar,

Não he quem se ha de buscar;

He raio da formosura,

Que só se deve d'amar.


Que os olhos, e a luz que ateia

O fogo que cá sujeita,

Não do sol, nem da candeia,

He sombra daquella ideia,

Qu'em Deos está mais perfeita.

E os que cá me captivárão,

São poderosos affeitos

Qu'os corações tẽe sujeitos;

Sophistas, que m'ensinárão

Maos caminhos por direitos.


Destes o mando tyrano

M'obriga com desatino

A cantar ao som do dano

Cantares d'amor profano,

Por versos d'amor divino.

Mas eu, lustrado co'o santo

Raio, na terra de dor,

De confusões e d'espanto

Como hei de cantar o canto,

Que só se deve ao Senhor?


Tanto póde o beneficio

Da graça que dá saude,

Que ordena que a vida mude:

E o qu'eu tomei por vício,

Me faz grao para a virtude;

E faz qu'este natural

Amor, que tanto se préza,

Suba da sombra ao real,

Da particular belleza

Para a belleza geral.


Fique logo pendurada

A frauta com que tangi,

Ó Hierusalem sagrada,

E tome a lyra dourada

Para só cantar de ti;

Não captivo e ferrolhado

Na Babylonia infernal,

Mas dos vicios desatado,

E cá desta a ti levado,

Patria minha natural.


E s'eu mais der a cerviz

A mundanos accidentes,

Duros, tyrannos e urgentes,

Risque-se quanto ja fiz

Do grão livro dos viventes.

E, tomando ja na mão

A lyra santa e capaz

D'outra mais alta invenção,

Calle-se esta confusão,

Cante-se a visão de paz.


Ouça-me o pastor e o rei,

Retumbe este accento santo,

Mova-se no mundo espanto;

Que do que ja mal cantei

A palinodia ja canto.

A vós só me quero ir,

Senhor, e grão Capitão

Da alta tôrre de Sião,

Á qual não posso subir,

Se me vós não dais a mão.


No grão dia singular,

Que na lyra em douto som

Hierusalem celebrar,

Lembrae-vos de castigar

Os ruins filhos de Edom.

Aquelles que tintos vão

No pobre sangue innocente,

Soberbos co'o poder vão,

Arrazá-los igualmente:

Conheção que humanos são.


E aquelle poder tão duro

Dos affectos com que venho,

Qu'encendem alma e engenho;

Que ja m'entrárão o muro

Do livre arbitrio que tenho;

Estes, que tão furiosos

Gritando vem a escalar-me,

Maos espiritos damnosos,

Que querem como forçosos

Do alicerce derribar-me;


Derribae-os, fiquem sós,

De fôrças fracos, imbelles;

Porque não podemos nós,

Nem com elles ir a vós,

Nem sem vós tirar-nos delles.

Não basta minha fraqueza

Para me dar defensão,

Se vós, santo Capitão,

Nesta minha Fortaleza

Não puzerdes guarnição.


E tu, ó carne, qu'encantas,

Filha de Babel tão feia,

Toda de miseria cheia,

Que mil vezes te levantas

Contra quem te senhoreia;

Beato só póde ser

Quem co'a ajuda celeste

Contra ti prevalecer,

E te vier a fazer

O mal que lhe tu fizeste:


Quem com disciplina crua

Se fere mais que huma vez;

Cuja alma, de vicios nua,

Faz nodas na carne sua,

Que ja a carne n'alma fez.

E beato quem tomar

Seus pensamentos recentes,

E em nascendo os affogar,

Por não virem a parar

Em vicios graves e urgentes:


Quem com elles logo der

Na pedra do furor santo,

E batendo os desfizer

Na Pedra, que veio a ser

Emfim cabeça do canto:

Quem logo, quando imagina

Nos vicios da carne má,

Os pensamentos declina

Áquella Carne divina,

Que na Cruz esteve ja.


Quem do vil contentamento

Cá deste mundo visibil,

Quanto ao homem for possibil,

Passar logo entendimento

Para o mundo intelligibil;

Alli achará alegria

Em tudo perfeita, e cheia

De tão suave harmonia,

Que nem por pouca recreia,

Nem por sobeja enfastia.


Alli verá tão profundo

Mysterio na summa Alteza,

Que, vencida a natureza,

Os mores faustos do mundo

Julgue por maior baixeza.

Ó tu, divino aposento,

Minha patria singular,

Se só com te imaginar,

Tanto sobe o entendimento,

Que fara se em ti se achar?


Ditoso quem se partir

Para ti, terra excellente,

Tão justo e tão penitente,

Que despois de a ti subir,

Lá descanse eternamente!


– oOo —

CARTA A HUMA DAMA

Querendo escrever hum dia

O mal, que tanto estimei;

Cuidando no que poria,

Vi Amor que me dizia:

Escreve, qu'eu notarei.

E como para se ler

Não era historia pequena

A que de mi quiz fazer,

Das azas tirou a penna

Com que me fez escrever.


E, logo como a tirou,

Me disse: Aviva os espritos;

Que pois em teu favor sou,

Esta penna, que te dou,

Fara voar teus escritos.

E dando-me a padecer

Tudo o que quiz que puzesse,

Pude emfim delle dizer,

Que me deo com qu'escrevesse

O que me deo a escrever.


Eu qu'este engano entendi,

Disse-lhe: Qu'escreverei?

Respondeo, dizendo assi:

Altos effeitos de mi.

E daquella a quem te dei.

E ja que te manifesto

Todas minhas estranhezas,

Escreve, pois que te prézas,

Milagres d'hum claro gesto,

E de quem o vio, tristezas.


Ah Senhora, em quem se apura

A fé de meu pensamento!

Escutae e estae a tento,

Que com vossa formosura

Iguala Amor meu tormento.

E, postoque tão remota

Estejais de m'escutar

Por me não remediar,

Ouvi, que pois Amor nota,

Milagres se hão de notar.


Escrevem varios Authores,

Que junto da clara fonte

Do Ganges, os moradores

Vivem do cheiro das flores

Que nascem naquelle monte.

Se os sentidos podem dar

Mantimento ao viver,

Não he logo d'espantar,

S'estes vivem de cheirar,

Que viva eu só de vos ver.


Huma árvore se conhece,

Que na geral alegria

Ella tanto s'entristece,

Que, como he noite, florece,

E perde as flores de dia.

Eu, qu'em ver-vos sinto o preço

Qu'em vossa vista consiste,

Em a vendo m'entristeço,

Porque sei que não mereço

A glória de ver-me triste.


Hum Rei de grande poder

Com veneno foi criado,

Porque, sendo costumado,

Não lhe pudesse empecer,

Se despois lhe fosse dado.

Eu, que criei de pequena

A vista a quanto padece,

Desta sorte m'acontece,

Que não me faz mal a pena,

Senão quando me fallece.


Quem da doença Real

De longe enfêrmo se sente,

Por segredo natural

Fica são vendo somente

Hum volatil animal.

Do mal, que Amor em mi cria,

Quando aquella Phenix vejo,

São de todo ficaria;

Mas fica-me hydropesia,

Que quanto mais, mais desejo.


Da vibora he verdadeiro,

Se a consorte vai buscar,

Qu'em se querendo juntar,

Deixa a peçonha primeiro,

Porque lh'impede o gerar.

Assi quando m'apresento

Á vossa vista inhumana,

A peçonha do tormento

Deixo á parte, porque dana

Tamanho contentamento.


Querendo Amor sustentar-se,

Fez huma vontade esquiva

D'huma estatua namorar-se:

Despois, por manifestar-se,

Converteo-a em mulher viva.

De quem m'irei eu queixando,

Ou quem direi que m'engana

Se vou seguindo e buscando

Huma imagem, que d'humana

Em pedra se vai tornando?


D'huma fonte se sabía,

Da qual certo se provava

Que quem sôbre ella jurava,

Se falsidade dizia,

Dos olhos logo cegava.

Vós, que minha liberdade,

Senhora, tyrannizais,

Injustamente mandais,

Quando vos fallo verdade,

Que vos não possa ver mais.


Da palma s'escreve e canta

Ser tão dura e tão forçosa,

Que pêzo não a quebranta,

Mas antes, de presunçosa,

Com elle mais se levanta.

Co'o pêzo do mal que dais,

A constancia qu'em mi vejo,

Não somente ma dobrais,

Mas dobra-se meu desejo,

Com qu'então vos quero mais.


Se alguem os olhos quizer

Ás andorinhas quebrar,

Logo a mãe, sem se deter,

Huma herva lhe vai buscar

Que lhes faz outros nascer.

Eu que os olhos tenho attento

Nos vossos, qu'estrellas são,

Cegão-se os do entendimento,

Mas nascem-me os da razão

De folgar com meu tormento.


Lá para onde o sol sahe,

Descobrimos, navegando,

Hum novo rio admirando,

Que o lenho que nelle cahe,

Em pedra se vai tornando.

Não s'espantem disto as gentes;

Mais razão será qu'espante

Hum coração tão possante,

Que com lagrimas ardentes

Se converte em diamante.


Póde hum mudo nadador

Na linha e cana influir

Tão venenoso vigor,

Que faz mais não se bulir

O braço do pescador.

Se começão de beber

Deste veneno excellente

Meus olhos, sem se deter,

Não se sabem mais mover

A nada que se apresente.


Isto são claros sinais

Do muito qu'em mi podeis:

Nem podeis desejar mais;

Que se ver-vos desejais,

Em mi claro vos vereis.

E quereis ver a que fim

Em mi tanto bem se pôs?

Porque quiz Amor assim,

Que por vos verdes a vós,

Tambem me visseis a mim.


Dos males que m'ordenais,

Qu'inda tenho por pequenos,

Sabei, se mos escutais,

Que ja não sei dizer mais,

Nem vós podeis saber menos.

Mas ja que a tanto tormento

Não se acha quem resista,

Eu, Senhora, me contento

De terdes meu soffrimento

Por alvo de vossa vista.


Quantos contrarios consente

Amor, por mais padecer!

Que aquella vista excellente,

Que me faz viver contente,

Me faça tão triste ser!

Mas dou este entendimento

Ao mal, que tanto m'offende,

Como na vela s'entende,

Que se se apaga co'o vento,

Co'o mesmo vento se accende.


Exprimentou-se algum'hora

D'ave, que chamão Camão,

Que se da casa, onde mora,

Vê adúltera senhora,

Morre de pura paixão.

A dor he tão sem medida,

Que remedio lhe não val.

Mas oh ditoso animal,

Que póde perder a vida,

Quando vê tamanho mal!


Nos gôstos de vos querer

Estava agora enlevado,

Se não fôra salteado

Das lembranças de temer

Ser por outrem desamado.

Estas suspeitas tão frias,

Com que o pensamento sonha,

São assi como as harpias,

Que as mais doces iguarias

Vão converter em peçonha.


Faz-me este mal infinito

Não poder ja mais dizer,

Por não vir a corromper

Os gostos que tenho escrito,

Co'os males qu'hei d'escrever.

Não quero que s'apregôe

Mal tanto para encobrir,

Porque em quanto aqui s'ouvir

Nenhuma outra cousa sôe,

Que a glória de vos servir.


– oOo —

Á MESMA

Dama d'estranho primor,

Se vos for

Pezada minha firmeza,

Olhae não me deis tristeza,

Porque a converto em amor.

E se cuidais

De me matar, quando usais

D'esquivança,

Irei tomar por vingança

Amar-vos cada vez mais.


Porém vosso pensamento,

Como isento,

Seguirá sua tenção,

Crendo qu'em tanta affeição

Não haja accrescentamento.

Não creais

Que desta arte vos façais

Invencibil;

Que Amor sôbre o impossibil

Amostra que póde mais.


Mas ja da tenção que sigo,

Me desdigo;

Que se ha tanto poder nelle,

Tambem vós podeis mais qu'elle

Neste mal que usais comigo.

Mas se for

O vosso poder maior

Entre nós,

Quem poderá mais que vós,

Se vós podeis mais que Amor?


Despois que, Dama, vos vi,

Entendi,

Que perdêra Amor seu preço;

Pois o favor que lh'eu peço,

Vos pede elle para si.

Nem duvido

Que não póde, de sentido,

Resistir;

Pois em vez de vos ferir,

Ficou de vos ver ferido.


Mas pois vossa vista he tal

Em meu mal,

Que posso de vós querer?

Que mal poderei valer,

Onde o mesmo Amor não val.

Se attentar,

Nenhum bem posso esperar:

E oxalá

Que vos alembrasse ja,

Sequer para me matar.


Mas nem com isto creais

Que façais

Meus serviços mais pequenos;

Porqu'eu, quando espero menos,

Sabei qu'então quero mais.

Nada espero;

Mas de mi crede este fero,

Qu'em ser vosso,

Vos quero tudo o que posso,

E não posso quanto quero.


Só por esta phantasia

Merecia

De meus males algum fruito;

E não era certo muito

Para o muito que queria.

De maneira,

Que não he, na derradeira,

Grande espanto,

Que quem, Dama, vos quer tanto,

Que outro tanto de vós queira.


– oOo —

A HUMAS SUSPEITAS

Suspeitas, que me quereis?

Qu'eu vos quero dar lugar

Que de certas me mateis,

Se a causa, de que nasceis,

Vós quizesseis confessar.

Que de não lhe achar desculpa,

A grande mágoa passada

Me tẽe a alma tão cansada,

Que se me confessa a culpa,

Te-la-hei por desculpada.


Ora vêde que perigos

Tẽe cercado o coração,

Que no meio da oppressão

A seus proprios inimigos

Vai pedir a defensão!

Que, suspeitas, eu bem sei,

Como se claro vos visse,

Que he certo o que ja cuidei;

Que nunca mal suspeitei,

Que certo me não sahisse.


Mas queria esta certeza

Daquella que me atormenta;

Porque em tamanha estreiteza

Ver que disso se contenta,

He descanso da tristeza.

Porque se esta só verdade

Me confessa limpa e nua

De cautela e falsidade,

Não póde a minha vontade

Desconforme ser da sua.


Por segredo namorado

He certo estar conhecido

Que o mal de ser engeitado

Mais atormenta sabido

Mil vezes, que suspeitado.

Mas eu só, em quem se ordena

Novo modo de querella,

De medo da dor pequena,

Venho a achar na maior pena

O refrigerio para ella.


Ja nas iras m'inflammei,

Nas vinganças, nos furores,

Que ja doudo imaginei;

E ja mais doudo jurei

De arrancar d'alma os amores.

Ja determinei mudar-me

Para outra parte com ira;

Despois vim a concertar-me

Que era bom certificar-me

No que mostrava a mentira.


Mas despois ja de cansadas

As furias do imaginar,

Vinha emfim a rebentar

Em lagrimas magoadas,

E bem para magoar.

E deixando-se vencer

Os meus fingidos enganos

De tão claros desenganos,

Não posso menos fazer,

Que contentar-me co'os danos.


E pedir que me tirassem

Este mal de suspeitar

Que me vejo atormentar,

Indaque me confessassem

Quanto me póde matar.

Olhae bem se me trazeis,

Senhora, pôsto no fim;

Pois neste estado a que vim,

Para que vós confesseis,

Se dão os tratos a mim.


Mas para que tudo possa

Amor, que tudo encaminha,

Tal justiça lhe convinha;

Porque da culpa, qu'he vossa,

Venha a ser a morte minha.

Justiça tão mal olhada

Olhae com que côr se doura,

Que quero, ao fim da jornada,

Que vós sejais confessada,

Para qu'eu seja o que moura!


Pois confessae-vos jagora,

Indaque tenho temor

Que nem nesta última hora

Me ha de perdoar Amor

Vossos peccados, Senhora.

E assi vou desesperado,

Porque estes são os costumes

D'amor que he mal empregado;

Do qual vou ja condemnado

Ao inferno de ciumes.


– oOo —

LABYRINTHO, QUEIXANDO-SE DO MUNDO.1

Corre sem vela e sem leme

O tempo desordenado,

D'hum grande vento levado:

O que perigo não teme,

He de pouco exprimentado.

As redeas trazem na mão

Os que redeas não tiverão:

Vendo quanto mal fizerão

A cobiça e ambição,

Disfarçados se acolhêrão.


A nao, que se vai perder,

Destrue mil esperanças:

Vejo o mao que vem a ter;

Vejo perigos correr

Quem não cuida que ha mudanças.

Os que nunca em sella andárão,

Na sella postos se vem:

De fazer mal não deixárão;

De demonio hábito tem

Os que o justo profanárão.


Que poderá vir a ser

O mal nunca refreado?

Anda, por certo, enganado

Aquelle que quer valer,

Levando o caminho errado.

He para os bons confusão,

Ver que os maos prevalecêrão;

Que, pôsto se detiverão

Com esta simulação,

Sempre castigos tiverão:


Não porque governe o leme

Em mar envolto e turbado,

Que tẽe seu rumo mudado,

Se perece grita e geme

Em tempo desordenado.

Terem justo galardão,

E dor dos que merecêrão,

Sempre castigos tiverão

Sem nenhuma redempção,

Postoque se detiverão.


Na tormenta, se vier,

Desespere na bonança,

Quem manhas não sabe ter:

Sem que lhe valha gemer,

Verá falsar a balança.

Os que nunca trabalhárão,

Tendo o que lhe não convem,

Se ao innocente enganárão,

Perderão o eterno bem,

Se do mal não s'apartárão.


– oOo —

CONVITE QUE FEZ NA INDIA A CERTOS FIDALGOS

A primeira iguaria foi posta a Vasco de Ataide, e dizia:

Se não quereis padecer

Huma, ou duas horas tristes,

Sabeis que haveis de fazer?

Volveros por dó venistes,

Que aqui não ha que comer.

E, postoque aqui leais

Trovinha que vos enleia,

Corrido não estejais;

Porque por mais que corrais,

Não heis de alcançar a ceia.


A segunda a D. Francisco de Almeida

Heliogabalo zombava

Das pessoas convidadas;

E de sorte as enganava,

Que as iguarias que dava,

Vinhão nos pratos pintadas.

Não temais tal travessura,

Pois ja não póde ser nova;

Porque a cêa está segura

De vos não vir em pintura;

Mas ha de vir toda em trova.


A terceira a Heitor da Silveira

Cêa não a papareis:

Com tudo, porque não minta,

Para beber achareis,

Não Caparica, mas tinta,

E mil cousas que papeis.

E vós torceis o focinho

Com esta amphibologia?

Pois sabei que a Poesia

Vos dá aqui tinta por vinho,

E papéis por iguaria.


A quarta a João Lopes Leitão, a quem o Author fez huns versos, que vão adiante, sôbre huma peça de cacha, que deo a huma Dama

Porque os que vos convidárão

Vosso estomago não danem,

Por justa causa ordenárão,

Se trovas vos enganárão,

Que trovas vos desenganem.

Vós tereis isto por tacha,

Converter tudo em trovar;

Pois se me virdes zombar,

Não cuideis, Senhor, que he cacha,

Que aqui não ha que cachar.


Responde João Lopes

Pezar ora não de são,

Eu juro pelo Ceo bento,

Se de comer não me dão,

Qu'eu não sou camaleão,

Que m'hei de manter do vento.


Responde o Author

Senhor, não vos agasteis,

Porque Deos vos proverá;

E se mais saber quereis,

Nas costas deste lereis

As iguarias que ha.


Virado o papel, dizia assi:

Tendes nem migalha assada;

Cousa nenhuma de môlho;

E nada feito em empada;

E vento de tigelada;

Picar no dente em remôlho:

De fumo tendes taçalhos;

Ave da pena que sente

Quem da fome anda doente;

Bocejar de vinho e d'alhos;

Manjar em branco excellente.


A derradeira a Francisco de Mello

D'hum homem, que teve o scetro

Da vêa maravilhosa,

Não foi cousa duvidosa,

Que se lhe tornava em metro

O qu'hia a dizer em prosa.

De mi vos quero affirmar

Que faça cousas mais novas,

De quanto podeis cuidar;

E esta cêa, que he manjar,

Vos faça na boca em trovas.


– oOo —

NA INDIA AO VISO-REI, COM O MOTE ADIANTE

Conde, cujo illustre peito

Merece nome de Rei,

Do qual muito certo sei

Que lhe fica sendo estreito

O cargo de Viso-Rei;

Servirdes-vos d'occupar-me

Tanto contra meu Planeta,

Não foi senão azas dar-me,

Com as quaes vou a queimar-me,

Como o faz a borboleta.


E s'eu a penna tomar,

Que tão mal cortada tenho,

Será para celebrar

Vosso valor singular

Dino de mais alto engenho.

Que se o meu vos celebrasse,

Necessario me sería

Que os olhos d'aguia tomasse,

Só para que não cegasse

No sol de vossa valia.


Vossos feitos sublimados

Nas armas, dignos de gloria,

São no mundo tão soados,

Qu'em vós de vossos passados

Se resuscita a memoria.

Pois aquelle ânimo estranho,

Prompto para todo effeito,

Espanta todo o conceito:

Como coração tamanho

Vos póde caber no peito?


A clemencia, que asserena

Coração tão singular,

S'eu nisso puzesse a penna,

Sería encerrar o mar

Em cova muito pequena.

Bem basta, Senhor, que agora

Vos sirvais de me occupar;

Que assi fareis aparar

A penna, com que algum'hora

Vos vereis ao ceo voar.


Assi vos irei louvando,

Vós a mi do chão erguendo,

Ambos o mundo espantando;

Vós com a espada cortando,

Eu com a penna escrevendo.


Mote que lhe mandou o Viso-Rei

Muito sou meu inimigo,

Pois que não tiro de mi

Cuidados, com que nasci,

Que põe a vida em perigo.

Oxalá que fôra assi!


Volta

Viver eu, sendo mortal,

De cuidados rodeado,

Parece meu natural;

Que a peçonha não faz mal

A quem foi nella criado.

Tanto sou meu inimigo,

Que por não tirar de mi

Cuidados, com que nasci,

Porei a vida em perigo.

Oxalá que fôra assi!


Tanto vim a accrescentar

Cuidados, que nunca amansão

Em quanto a vida durar,

Que canso ja de cuidar

Como cuidados não cansão.

S'estes cuidados, que digo,

Dessem fim a mi e a si,

Farião pazes comigo;

Que pôr a vida em perigo,

O bom fôra para mi.


– oOo —

A HUMA DAMA, QUE LHE MANDOU PEDIR ALGUMAS OBRAS SUAS

Senhora, s'eu alcançasse

No tempo que ler quereis,

Que a dita dos meus papéis

Pola minha se trocasse;

E por ver

Tudo o que posso escrever

Em mais breve relação,

Indo eu onde elles vão,

Por mi só quizesseis ler;


Despois de ver hum cuidado

Tão contente de seu mal,

Verieis o natural

Do que aqui vêdes pintado;

Que o perfeito

Amor, de que sou sogeito,

Vereis aspero e cruel,

Aqui com tinta e papel,

Em mi com sangue no peito.


Que hum continuo imaginar

Naquillo que Amor ordena,

He pena, que emfim por penna

Se não póde declarar;

Que se eu levo

Dentro n'alma quanto devo

De trasladar em papéis,

Vêde que melhor lereis,

Se a mi, se aquillo qu'escrevo?


– oOo —

A HUMA SENHORA, A QUEM DERÃO HUM PEDAÇO DE SITIM AMARELLO

Se derivais da verdade

Esta palavra Sitim,

Achareis sem falsidade,

Que apos o si tẽe o tim,

Que tine em toda a Cidade.

Bem vejo que m'entendeis;

Mas porque não falle em vão,

Sabei que a esta Nação

Tanto que o si concedeis,

O tim logo está na mão.


E quem da fama s'arreda,

Que tudo vai descobrir,

Deve sempre de fugir

De sitins, porque da seda

Seu natural he rugir.

Mas panno fino e delgado,

Qual a raxa e outros assi,

Dura, aquenta, e he callado,

Amoroso, e dá de si

Mais que sitim, nem brocado.


Mas estes, que sedas são

Com quem s'enganão mil Damas,

Mais vos tomão, do que dão;

Promettem, mas não darão,

Senão nodoas para as famas.

E se não me quereis crer,

Ou tomais outro caminho,

Por exemplo o podeis ver,

Quando lá virdes arder

A casa d'algum vizinho.


Oh feminina simpreza,

Donde estão culpas a pares,

Que por hum Dom de nobreza,

Deixão dões da natureza,

Mais altos e singulares!

Hum Dom, que anda enxertado

No nome, e nas obras não.

Fallo como exprimentado;

Que sitim desta feição

Eu tenho muito cortado.


Dizem-me qu'era amarello;

E quem assi o quiz dar,

Só para me Deos vingar,

Se vem á mão amarê-lo,

O qu'eu não posso cuidar.

Porque quem sabe viver

Por estas artes manhosas,

(Isto bem póde não ser)

Dá a meninas formosas,

Somente polas fazer.


Quem vos isto diz, Senhora,

Servio nas vossas armadas

Muito, mas anda ja fóra;

E póde ser qu'inda agora

Traz abertas as fréchadas.

E, postoque desfavores

O tirão de servidor,

Quer-vos ventura melhor;

Que dos antigos amores

Inda lhe fica este amor.


– oOo —

A HUMA SENHORA REZANDO POR HUMAS CONTAS

Peço-vos que me digais

As orações que rezastes,

Se são polos que matastes,

Se por vós que assi matais?

Se são por vós, são perdidas;

Que qual será a oração,

Que seja satisfação,

Senhora, de tantas vidas?


Que se vêdes quantos vem

A só vida vos pedir,

Como vos ha Deos de ouvir,

Se vós não ouvis ninguem?

Não podeis ser perdoada

Com mãos a matar tão prontas,

Que se n'huma trazeis contas,

Na outra trazeis espada.


Se dizeis que encommendando

Os que matastes andais;

Se rezais por quem matais,

Para que matais rezando?

Que se na fôrça do orar

Levantais as mãos aos Ceos,

Não as ergueis para Deos,

Erguei-las para matar.


E quando os olhos cerrais,

Toda enlevada na fé,

Cerrão-se os de quem vos vê,

Para nunca verem mais.

Pois se assi forem tratados

Os que vos vem quando orais,

Essas horas que rezais,

São as horas dos finados.


Pois logo, se sois servida

Que tantos mortos não sejão,

Não rezeis onde vos vejão,

Ou vêde para dar vida.

Ou se quereis escusar

Estes males que causastes,

Resuscitae quem matastes,

Não tereis por quem rezar.


– oOo —

A HUMA DAMA QUE LHE DEO HUMA PENNA

Se n'alma e no pensamento

Por vosso me manifesto,

Não me peza do que sento;

Que se não soffrer tormento,

Faço offensa a vosso gesto.

E, pois quanto Amor ordena,

E quanto est'alma deseja,

Tudo á morte me condena,

Não quero senão que seja

Tudo pena, pena, pena.


– oOo —

A HUMA DAMA QUE LHE CHAMOU CARA SEM OLHOS

Sem olhos vi o mal claro,

Que dos olhos se seguio:

Pois cara sem olhos vio

Olhos, que lhe custão caro.

D'olhos não faço menção,

Pois quereis que olhos não sejão;

Vendo-vos, olhos sobejão,

Não vos vendo, olhos não são.


– oOo —

DISPARATES NA INDIA

Este mundo es el camino

Adó hay ducientos váos,

Ou por onde bons e maos,

Todos somos del merino.

Mas os maos são de teor,

Que desque mudão a côr,

Chamão logo a ElRei compadre;

E emfim dejadlos, mi madre,

Que sempre tẽe hum sabor

De quem torto nasce, tarde s'endireita.


Deixae a hum que se abone:

Diz logo de muito sengo,

Villas y castillos tengo,

Todos á mi mandar sone.

Então eu, qu'estou de môlho,

Com a lagrima no ôlho,

Polo virar do envés,

Digo-lhe: tu ex illis es,

E por isso não te ólho;

Pois honra e proveito não cabem n'hum saco.


Vereis huns, que no seu seio

Cuidão que trazem París,

E querem com dous ceitís,

Fender anca pelo meio.

Vereis mancebindo de arte,

Com espada em talabarte:

Não ha mais Italiano.

A este direis: Meu mano,

Vós sois galante que farte;

Mas pan y vino anda el camino, que no mozo garrido.


Outros em cada theatro,

Por officio lhe ouvirês

Que se matarán con tres,

Y lo mismo haran con cuatro.

Prezão-se de dar respostas,

Com palavras bem compostas;

Mas se lhe meteis a mão,

Na paz mostrão coração,

Na guerra mostrão as costas;

Porque aqui torce a porca o rabo.


Outros vejo por ahi,

A que se acha mal o fundo,

Que andão emendando o mundo,

E não se emendão a si.

Estes respondem a quem

Delles não entende bem

El dolor que está secreto;

Mas porém quem for discreto,

Responder-lhe-ha muito bem:

Assi entrou o mundo, assi ha de sahir.


Achareis rafeiro velho,

Que se quer vender por galgo:

Diz que o dinheiro he fidalgo,

Que o sangue todo he vermelho.

Se elle mais alto o dissera,

Este pelote puzera:

Que o seu eco lhe responda;

Que su padre era de Ronda,

Y su madre de Antequera,

E quer cobrir o ceo co'huma joeira.


Fraldas largas, grave aspeito,

Para Senador Romano.

Oh que grandissimo engano!

Que Momo lhe abrisse o peito!

Consciencia, que sobeja,

Siso, com que o mundo reja,

Mansidão outro que si;

Mas que lobo está em ti,

Metido em pelle de oveja!

E sabem-no poucos.


Guardae-vos de huns meus Senhores,

Que ainda comprão e vendem;

Huns, qu'he certo, que descendem

Da geração de pastores:

Mostrão-se-vos bons amigos;

Mas se vos vem em perigos,

Escarrão-vos nas paredes;

Que de fóra dormiredes,

Irmão, que he tempo de figos;

Porque de rabo de porco nunca bom virote.


Que direis d'huns, que as entranhas

Lh'estão ardendo em cobiça,

E se tẽe mando, a justiça

Fazem de teas de aranhas?

Com suas hypocrisias,

Que são de vossas espias:

Para os pequenos huns Neros,

Para os grandes tudo feros.

Pois tu, parvo, não sabías,

Que lá vão leis, onde querem cruzados?


Mas tornando a huns enfadonhos,

Cujas cousas são notorias;

Huns, que contão mil histórias

Mais desmanchadas que sonhos;

Huns mais parvos que zamboas,

Qu'estudão palavras boas,

A que ignorancia os atiça:

Estes paguem por justiça,

Que tẽe morto mil pessoas,

Por vida de quanto quero.


Adonde tienen las mentes

Huns secretos trovadores,

Que fazem cartas d'amores,

De que ficão mui contentes?

Não querem sahir á praça;

Trazem trova por negaça;

E se lha gabais, qu'he boa,

Diz qu'he de certa pessoa.

Ora que quereis que faça,

Senão ir-me por esse mundo?


Ó tu, como me atarracas,

Escudeiro de Solia,

Com bocaes de fidalguia,

Trazido quasi com vacas;

Importuno a importunar,

Morto por desenterrar

Parentes, que cheirão ja!

Voto a tal, que me fara

Hum destes nunca fallar

Mais com viva alma.


Huns, que fallão muito, vi,

De que quizera fugir;

Huns que, emfim, sem se sentir,

Andão fallando entre si;

Porfiosos sem razão;

E desque tomão a mão,

Fallão sem necessidade;

E se algum'hora he verdade,

Deve ser na confissão;

Porque quem não mente… Ja m'entendeis.


Oh vós, quem quer que me lerdes,

Qu'haveis de ser avisado,

Que dizeis ao namorado

Que caça vento com redes?

Jura por vida da Dama;

Falla comsigo na cama;

Passêa de noite e escarra;

Por falsete na guitarra

Põe sempre: Viva que ama,

Porque calça a seu proposito.


Mas deixemos, se quizerdes,

Por hum pouco as travessuras,

Porqu'entre quatro maduras

Leveis tambem cinco verdes.

Deitemos-nos mais ao mar;

E se algum se arrecear,

Passe tres ou quatro trovas.

E vós tomais côres novas?

Mas não he para espantar;

Que quem porcos ha menos,

Em cada mouta lhe roncão.


Ó vós, que sois Secretarios

Das consciencias Reais,

E que entre os homens estais

Por Senhores ordinarios;

Porque não pondes hum freio

Ao roubar, que vai sem meio,

Debaixo de bom governo?

Pois hum pedaço de inferno

Por pouco dinheiro alheio

Se vende a Mouro e a Judeo.


Porque a mente, affeiçoada

Sempre á Real dignidade,

Vos faz julgar por bondade

A malicia desculpada.

Move a presença Real

Huma affeição natural,

Que logo inclina ao Juiz

A seu favor: e não diz

Hum rifão muito geral,

Que o Abbade donde canta, dahi janta?


E vós bailais a esse som:

Por isso, gentís pastores,

Vos chama a vós mercadores

Hum que só foi pastor bom.


– oOo —

A JOÃO LOPES LEITÃO,SÔBRE HUMA PEÇA DE CACHA QUE MANDOU A HUMA DAMA, QUE SE LHE FAZIA DONZELLA

Mote

Se vossa Dama vos dá

Tudo quanto vós quizestes,

Dizei-me: p'ra que lhe déstes

O que vos ella fez ja?


Volta

Sendo os restos envidados,

E vós de cachas mil contos

Sabeis com quão poucos pontos,

Que lhos achastes quebrados;

Se o que tẽe, isso vos dá,

Vós mui bem lho merecestes,

Porque se a cacha lhe déstes

Tinha-vo-la feita ja.


– oOo —

MOTE

Menina formosa e crua,

Bem sei eu

Quem deixará de ser seu,

Se vós quizereis ser sua.


Voltas

Menina mais que na idade,

Se para me querer bem

Vos não vejo ter vontade,

He porque outrem vo-la tem;

Tẽe-vo-la, e faz-vo-la crua.

Porém eu

Ja tomára não ser meu,

Se vós não foreis tão sua.


Nos olhos, e na feição

Vos vi, quando vos olhava,

Tanta graça, que vos dava

De graça este coração:

Não o quizestes de crua,

Por ser meu:

Se outrem vos dera o seu,

Póde ser foreis mais sua.


Menina, tende maneira,

Que ainda não venha a ser,

Pois não quereis quem vos quer,

Que queirais quem vos não queira.

Olhae não me sejais crua,

Que pois eu

Quero ser vosso, e não meu,

Sêde vós minha, e não sua.


– oOo —

A HUMA DAMA DOENTE

Mote

Da doença, em que ora ardeis,

Eu fôra vossa mézinha

Só com vós serdes a minha.


Voltas

He muito para notar

Cura tão bem acertada,

Que podereis ser curada

Somente com me curar.

Se quereis, Dama, trocar,

Ambos temos a mézinha,

Eu a vossa, e vós a minha.


Olhae, que não quer Amor,

(Porque fiquemos iguais)

Pois meu ardor não curais,

Que se cure vosso ardor.

Eu cá sinto vossa dor;

E se vós sentis a minha,

Dae e tomae a mézinha.


– oOo —

OUTRO

Deo, Senhora, por sentença

Amor, que fosseis doente,

Para fazerdes á gente

Doce e formosa a doença.


Voltas

Não sabendo Amor curar,

Foi a doença fazer

Formosa para se ver,

Doce para se passar.

Então vendo a differença

Que ha de vós a toda a gente,

Mandou, que fôsseis doente,

Para glória da doença.


E digo-vos de verdade,

Que a saude anda invejosa,

Por ver estar tão formosa

Em vós essa enfermidade.

Não façais logo detença,

Senhora, em estar doente,

Porque adoecerá a gente,

Com desejos da doença.


Qu'eu por ter, formosa Dama,

A doença, qu'em vós vejo,

Vos confesso, que desejo

De cahir comvosco em cama.

Se consentis, que me vença

Deste mal, não houve gente

Da saude tão contente,

Como eu serei da doença.


– oOo —

AO MESMO

Olhae que dura sentença

Foi amor dar contra mi!

Que porqu'em vós me perdi,

Em vós me busque a doença.

Claro está,

Que em vós só me achará;

Qu'em mi, se me vem buscar,

Não poderá mais achar,

Que a fórma do que foi ja.


Que s'em vós Amor se pôs,

Senhora, he forçado assi,

Que o mal, que me busca a mi,

Que vos faça mal a vós.

Sem mentir,

Amor me quiz destruir

Por modo nunca cuidado,

Pois ha de ser ja forçado

Pezar-vos de vos servir.


Mas sois tão desconhecida,

E são meus males de sorte,

Que vos ameaça a morte,

Porque me negais a vida.

Se por boa

Tal justiça se pregoa;

Quando desta sorte for,

Havei vós perdão de Amor,

Que a parte ja vos perdoa.


Mas o que mais temo, emfim,

He que nesta differença,

Que se não torne a doença,

Se me não tornais a mim.

De verdade,

Que ja vossa humanidade

De que se queixe não tem;

Pois para as almas tambem

Fez Amor enfermidade.


– oOo —

A HUMA DAMA VESTIDA DE DÓ

Mote

De atormentado e perdido,

Ja vos não peço, senão

Que tenhais no coração

O que tendes no vestido.


Volta

Se de dó vestida andais

Por quem ja vida não tem

Porque não o haveis de quem

Vós tantas vezes matais?

Que brado sem ser ouvido,

E nunca vejo senão

Cruezas no coração,

E grande dó no vestido.


– oOo —

A DONA GUIOMAR DE BLASFÉ, QUEIMANDO-SE COM HUMA VÉLA NO ROSTO

Mote

Amor, que todos offende,

Teve, Senhora, por gôsto,

Que sentisse o vosso rosto

O que nas almas accende.


Volta

Aquelle rosto que traz

O mundo todo abrazado,

Se foi da flamma tocado,

Foi porque sinta o que faz.

Bem sei que Amor se vos rende;

Porém o seu presupposto

Foi sentir o vosso rosto

O que nas almas accende.


– oOo —

A HUMA MULHER, AÇOUTADA POR HUM HOMEM, QUE CHAMAVÃO QUARESMA

Mote

Não estejais aggravada,

Senão se for de vós mesma;

Porqu'a mulher, que he errada,

Com razão pela Quaresma

Deve ser disciplinada.


Voltas

Quererdes profano amor

Em Quaresma, he consciencia:

Açoutes e penitencia

Vos está muito melhor.

Não fiqueis disto affrontada,

Pois a culpa he vossa mesma;

Que mulher, que he tão malvada,

He bem que pela Quaresma

Seja bem disciplinada.


Se a penitencia vos val,

Mui bem açoutada estais;

Pois por Quaresma pagais

Vossos vicios do carnal.

Não torneis a ser errada,

Nem condemneis a vós mesma,

Pois estais ja emendada;

E não sereis por Quaresma

Outra vez disciplinada.


– oOo —

A HUM FIDALGO, QUE LHE TARDAVA COM HUMA CAMISA, QUE LHE PROMETTEO

Quem no mundo quizer ser

Havido por singular,

Para mais s'engrandecer,

Ha de trazer sempre o dar

Nas ancas do prometter.

E ja que vossa mercê,

Largueza tẽe por divisa,

Como o mundo todo vê,

Ha mister que tanto dê,

Que venha a dar a camisa.


– oOo —

A HUMA DAMA, QUE LHE CHAMOU DIABO, POR NOME FOÃ DOS ANJOS

Mote

Senhora, pois me chamais

Tão sem razão tão mão nome,

Inda o diabo vos tome.


Voltas

Quem quer que vio, ou que leo,

Terá por novo e moderno,

Ter quem vive no inferno,

O pensamento no ceo.

Mas se a vós vos pareceo,

Que m'estava bem tal nome,

Esse diabo vos tome.


Perdido mais que ninguem

Confesso, Senhora, ser;

Mas o diabo não quer

Aos Anjos tamanho bem.

Pois logo não me convem,

Ou se me convem tal nome,

Será para que vos tome.


Se vos benzeis com cautella,

Como de Anjo, e não de luz,

Mal póde fugir da Cruz,

Quem vós tendes pôsto nella.

Mas ja que foi minha estrella

Ser diabo, e ter tal nome,

Guardae-vos, que vos não tome.


Ja que chegais tanto ao cabo,

Com as mãos, postas aos ceos

Vou sempre pedindo a Deos,

Que vos leve este diabo.

Eu, Senhora, não me gabo;

Mas pois que me dais tal nome,

Tomo-o, para que vos tome.


– oOo —

A HUM AMIGO, QUE NÃO PODIA ENCONTRAR

Mote

Qual terá culpa de nós

Neste mal, que todo he meu?

Quando vindes, não vou eu,

Quando vou, não vindes vós.


Volta

Reinando Amor em dous peitos,

Tece tantas falsidades,

Que de conformes vontades

Faz desconformes effeitos.

Igualmente vive em nós;

Mas por desconcêrto seu

Vos leva, se venho eu,

Me leva, se vindes vós.


– oOo —

MOTE SEU

Descalça vai pela neve:

Assi faz quem Amor serve.


Voltas

Os privilegios, que os Reis

Não pódem dar, póde amor,

Que faz qualquer amador

Livre das humanas leis.

Mortes e guerras crueis,

Ferro, frio, fogo e neve,

Tudo soffre quem o serve.


Moça formosa despreza

Todo o frio, e toda a dor.

Olhae quanto póde Amor

Mais que a propria natureza.

Medo, nem delicadeza

Lh'impede que passe a neve.

Assi faz quem Amor serve.


Por mais trabalhos que leve,

A tudo se off'receria;

Passa pela neve fria,

Mais alva que a propria neve;

Com todo frio se atreve.

Vêde em que fogo ferve

O triste, que a Amor serve.


– oOo —

OUTRO ALHEIO

A dor que a minha alma sente,

Não na sabe toda a gente.


Voltas

Qu'estranho caso de Amor!

Que desejado tormento!

Que venho a ser avarento

Das dores de minha dor!

Por me não tratar peor,

Se se sabe, ou se se sente,

Não na digo a toda a gente.


Minha dor e causa della

De ninguem ouso fiar;

Que sería aventurar

A perder-me, ou a perdella.

E pois só com padecella,

A minha alma está contente,

Não quero que o saiba a gente.


Ande no peito escondida,

Dentro n'alma sepultada;

De mi só seja chorada,

De ninguem seja sentida.

Ou me mate, ou me dê vida,

Ou viva triste ou contente,

Não ma saiba toda a gente.


– oOo —

OUTRO SEU

D'alma, e de quanto tiver,

Quero que me despojeis,

Com tanto, que me deixeis

Os olhos para vos ver.


Volta

Cousa este corpo não tem,

Que ja não tenhais rendida:

Despois de tirar-lhe a vida,

Tirae-lhe a morte tambem.

Se mais tenho que perder,

Mais quero que me leveis,

Com tanto que me deixeis

Os olhos para vos ver.


– oOo —

MOTE ALHEIO

Amores de huma casada,

Que eu vi pelo meu mal.


Voltas

N'huma casada fui pôr

Os olhos, de si senhores:

Cuidei que fossem amores,

Elles fizerão-se amor.

Faz-se o desejo maior

Donde o remedio não val,

Em perigo de meu mal.


Não me paraceo que Amor

Pudesse tanto comigo,

Que donde entra por amigo,

Se levante por senhor.

Leva-me de dor em dor,

E de final em final,

Cada vez para mor mal.


– oOo —

OUTRO SEU

Enforquei minha esperança;

Mas Amor foi tão madraço,

Que lhe cortou o baraço.


Volta

Foi a esperança julgada

Por sentença da Ventura,

Que pois me leve á pendura,

Que fosse dependurada:

Vem Cupido com a espada,

Corta-lhe cerce o baraço.

Cupido, foste madraço.


– oOo —

OUTRO SEU

Puz o coração nos olhos,

E os olhos puz no chão,

Por vingar o coração.


Volta

O coração invejoso

Como dos olhos andava,

Sempre remoques me dava

Que não era o meu mimoso:

Venho eu de piedoso

Do Senhor meu coração,

E boto os olhos no chão.


– oOo —

OUTRO SEU

Puz meus olhos n'huma funda,

E fiz hum tiro com ella

Ás grades d'huma janella.


Volta

Huma Dama, de malvada,

Tomou seus olhos na mão;

E tirou-me huma pedrada

Com elles ao coração.

Armei minha funda então,

E puz os meus olhos nella,

Trape, quebrei-lhe a janella.


– oOo —

ALHEIO

De pequena tomei amor,

Porque o não entendi;

Agora que o conheci,

Mata-me com desfavor.


Voltas

Vi-o moço e pequenino,

E a mesma idade ensina

Que s'incline huma menina

Ás amostras d'hum menino:

Ouvi-lhe chamar Amor,

Pelo nome me venci;

Nunca tal engano vi,

Nem tamanho desamor.


Cresceo-me de dia em dia

Com a idade a affeição,

Porque amor de criação,

N'alma, e na vida se cria.

Criou-se em mi este amor,

E senhoreou-se de mi:

Agora que o conheci,

Mata-me com desfavor.


As flores me torna abrolhos,

A morte me determina

Quem eu trouxe de menina

Nas meninas de meus olhos.

Desta mágoa e desta dor

Tenho sabido que emfim

Por amor me perco a mim

Por quem de mi perde amor.


Parece ser caso estranho

O que Amor em mi ordena,

Qu'em idade tão pequena

Haja tormento tamanho.

Sejão milagres d'Amor,

Hei-os de soffrer assi,

Até que haja dó de mi

Quem entender esta dor.


– oOo —

CANTIGA VELHA

Apartárão-se os meus olhos

De mi tão longe.

Falsos amores,

Falsos, maos, enganadores.


Voltas

Tratárão-me com cautella,

Por m'enganar mais asinha;

Dei-lhe posse d'alma minha,

Forão-me fugir com ella.

Não ha vê-los, nem ha vella,

De mi tão longe.

Falsos amores,

Falsos, maos, enganadores!


Entreguei-lhe a liberdade,

E, emfim, da vida o melhor;

Forão-se; e do desamor

Fizerão necessidade.

Quem teve a sua vontade

De si tão longe?

Falsos amores,

E oxalá enganadores!


– oOo —

OUTRA

Falso Cavalheiro, ingrato,

Enganais-me,

Vós dizeis, que eu vos mato,

E vós matais-me.


Voltas

Costumadas artes são

Para enganar innocencias,

Piedosas apparencias

Sôbre isento coração.

Eu vos amo, e vós ingrato

Magoais-me,

Dizendo, que eu vos mato,

E vós matais-me.


Vêde agora qual de nós

Anda mais perto do fim,

Que a justiça faz-se em mim,

E o pregão diz que sois vós.

Quando mais verdade trato

Levantais-me

Que vos desamo e vos mato,

E vós matais-me.


– oOo —

PROPRIO

Se de meu mal me contento,

He porque para vós vejo

Em todo o mundo desejo,

E em ninguem merecimento.


Volta

Para quem vos soube olhar

Tão impossivel foi ser

O poder-vos merecer,

Como o não vos desejar.

Pois logo a meu pensamento

Nenhum remedio lhe vejo,

Senão se der o desejo

Azas ao merecimento.


– oOo —

ALHEIO

Vós, Senhora, tudo tendes,

Senão que tendes os olhos verdes.


Voltas

Dotou em vós natureza

O summo da perfeição;

Que o qu'em vós he senão,

He em outras gentileza:

O verde não se despreza,

Que, agora que vós os tendes,

São bellos os olhos verdes.


Ouro e azul he a melhor

Côr, por que a gente se perde;

Mas a graça desse verde

Tira a graça a toda côr.

Fica agora sendo a flor

A côr, que nos olhos tendes,

Porque são vossos e verdes.


– oOo —

ALHEIO

Para que me dan tormento,

Aprovechando tan poco?

Perdido, mas no tan loco,

Que descubra lo que siento.


Voltas

Tiempo perdido es aquel

Que se passa en darme afan,

Pues cuanto más me lo dan,

Tanto menos siento dél.

Que descubra lo que siento?

No lo haré, que no es tan poco;

Que no puede ser tan loco

Quien tiene tal pensamiento.


Sepan que me manda Amor,

Que de tan dulce querella,

A nadie dé parte della,

Porque la sienta mayor.

Es tan dulce mi tormento,

Que aun se me antoja poco;

Y si es mucho, quedo loco

De gusto de lo que siento.


– oOo —

ALHEIO

De vuestros ojos centellas,

Que encienden pechos de hielo,

Suben por el aire al cielo,

Y en llegando son estrellas.


Voltas

Falsos loores os dan,

Que essas centellas tan raras

No son nel cielo mas claras

Que en los ojos donde estan.

Porque cuando miro en ellas

Lo como alumbran al suelo,

No sé que seran nel cielo;

Mas sé que acá son estrellas.


Ni se puede presumir

Que al cielo suban, Señora;

Que la lumbre que en vós mora,

No tiene más que subir;

Mas pienso que dan querellas

Á Dios nel octavo cielo,

Porque son acá en el suelo

Dos tan hermosas estrellas.


– oOo —

ALHEIO

De dentro tengo mi mal,

Que de fuera no hay señal.


Volta

Mi nueva y dulce querella

Es invisible á la gente;

El alma sola la siente,

Que el cuerpo no es dino della.

Como la viva centella

Se encubre en el pedernal,

De dentro tengo mi mal.


– oOo —

ALHEIO

Amor loco, amor loco,

Yo por vós, y vós por otro.


Voltas

Dióme Amor tormentos dós,

Para que pene doblado;

Uno es verme desamado,

Otro es mancilla de vós.

Ved que ordena Amor en nós!

Porque vós haceisme loco,

Que seais loca por otro.


Tratais Amor de manera,

Que porque asi me tratais,

Quiere que, pues no me amais,

Que ameis otro que no os quiera.

Mas con todo, si no os viera

De todo loca por otro,

Con mas razon fuera loco.


Y tan contrario viviendo,

Alfin, alfin, conformamos;

Pues ambos a dós buscamos

Lo que mas nos vá huyendo.

Voy tras vós siempre siguiendo,

Y vós huyendo por otro:

Andais loca, y me haceis loco.


– oOo —

ALHEIO

Vêde bem se nos meus dias

Os desgostos vi sobejos,

Pois tenho medo a desejos,

E quero mal a alegrias.


Volta

Se desejos fui ja ter,

Servírão de atormentar-me;

Se algum bem póde alegrar-me,

Quiz-me antes entristecer.

Passei annos, passei dias

Em desgostos tão sobejos,

Que só por não ter desejos,

Perderei mil alegrias.


– oOo —

PROPIO

Pois he mais vosso que meu,

Senhora, meu coração,

Eu vosso captivo são,

Meus olhos, lembre-vos eu.


Volta

Lembre-vos minha tristeza,

Que jamais nunca me deixa;

Lembre-vos com quanta queixa

Se queixa minha firmeza:

Lembre-vos que não he meu

Este triste coração;

E pois ha tanta razão,

Meus olhos, lembre-vos eu.


– oOo —

OUTRO

Senhora, pois minha vida

Tendes em vosso poder;

Por serdes della servida,

Não queirais que destruida

Possa ser.


Volta

Isto não por me pezar

De morrer, se vós quizerdes;

Que melhor me he acabar

Mil vezes, que supportar

Os males que me fizerdes;

Mas só por serdes servida

De mi, em quanto viver,

Vos peço que minha vida

Não queirais que destruida

Possa ser.


– oOo —

OUTRO

Pois damno me faz olhar-vos,

Não quero, por não perder-vos,

Que ninguem me veja ver-vos.


Voltas

De ver-vos a não vos ver

Ha dous extremos mortaes;

E são elles em si taes,

Que hum por hum me faz morrer;

Mas antes quero escolher,

Que possa viver sem ver-vos,

Minh'alma, por não perder-vos.


Deste tamanho perigo

Que remedio posso ter,

Se vivo só com vos ver,

Se vos não vejo, perigo?

Mas quero acabar comigo,

Que ninguem me veja ver-vos,

Senhora, por não perder-vos.


– oOo —

A TRES DAMAS, QUE LHE DIZIÃO QUE O AMAVÃO

Mote

Não sei se m'engana Helena,

Se Maria, se Joanna;

Não sei qual dellas m'engana.


Voltas

Huma diz que me quer bem,

Outra jura que me quer;

Mas em jura de mulher

Quem crerá, se ellas não crem?

Não posso não crer a Helena,

A Maria, nem Joanna;

Mas não sei qual mais m'engana.


Huma faz-me juramentos

Que só meu amor estima,

A outra diz que se fina,

Joanna, que bebe os ventos.

Se cuido que mente Helena,

Tambem mentirá Joanna;

Mas quem mente não m'engana.


– oOo —

A HUMA DAMA MAL EMPREGADA

Mote

Menina, não sei dizer,

Vendo-vos tão acabada,

Quão triste estou por vos ver

Formosa e mal empregada.


Voltas

Quem tão mal vos empregou,

Pouco de mi se dohia,

Pois não vio o quanto me hia

Em tirar-me o que tirou.

Obriga o primor que tem

Lindeza tão extremada

Que digão quantos a vem,

Formosa e mal empregada!


Tomastes da formosura

Quanto della desejastes,

E com ella me guardastes

Para tão triste ventura.

Mataveis sendo solteira,

Matais agora em casada;

Matais de toda a maneira,

Formosa e mal empregada.


– oOo —

A HUMA Foãa Gonçalves

Mote

Com vossos olhos, Gonçalves,

Senhora, captivo tendes

Este meu coração Mendes.


Volta

Eu sou boa testimunha,

Que Amor tem por cousa má,

Que olhos, que são homens ja,

Se nomeiem sem alcunha;

Pois o coração apunha,

E diz, olhos, pois vós tendes,

Chamae-me coração Mendes.


– oOo —

OUTRO

De que me serve fugir

De morte, dor e perigo,

Se me eu levo comigo?


Voltas

Tenho-me persuadido,

Por razão conveniente,

Que não posso ser contente,

Pois que pude ser nascido.

Anda sempre tão unido

O meu tormento comigo,

Qu'eu mesmo sou meu perigo.


E se de mi me livrasse,

Nenhum gôsto me sería:

Quem, senão eu, não teria

Mal, que esse bem me tirasse?

Fôrça he logo que assi passe,

Ou com desgôsto comigo,

Ou sem gôsto e sem perigo.


– oOo —

A HUMA DAMA, QUE JURAVA PELOS SEUS OLHOS

Quando me quer enganar

A minha bella perjura,

Para mais me confirmar

O que quer certificar,

Polos seus olhos me jura.

Como meu contentamento

Todo se rege por elles,

Imagina o pensamento,

Que se faz aggravo a elles

Não crer tão grão juramento.


Porém como em casos tais

Ando ja visto e corrente,

Sem outros certos sinais,

Quanto me ella jura mais,

Tanto mais cuido que mente.

Então vendo-lhe offender

Huns taes olhos como aquelles,

Deixo-me antes tudo crer,

Só pola não constranger

A jurar falso por elles.


– oOo —

MOTE ALHEIO

Ha hum bem, que chega e foge;

E chama-se este bem tal,

Ter bem para sentir mal.


Volta

Quem viveo sempre n'hum ser,

Inda que seja em pobreza,

Não vio o bem da riqueza,

Nem o mal d'empobrecer:

Não ganhou para perder;

Mas ganhou com vida igual

Não ter bem, nem sentir mal.


– oOo —

A HUMA DAMA, QUE LHE VIROU O ROSTO

Mote

Olhos, não vos mereci

Que tenhais tal condição,

Tão liberaes para o chão,

Tão irosos para mi.


Volta

Baixos e honestos andais,

Por vos negardes a quem

Não quer mais que aquelle bem,

Que vós no chão espalhais?

Se pouco vos mereci,

Não m'estimeis mais que o chão,

A quem vós o galardão

Dais, e mo negais a mi.


– oOo —

PROPRIO

Venceo-me Amor, não o nego;

Tẽe mais fôrça qu'eu assaz;

Que como he cego e rapaz,

Dá-me porrada de cego.


Volta

Só porque he rapaz ruim,

Dei-lhe hum boféte zombando.

Diz-me: Ó mao, estais me dando,

Porque sois maior que mim?

Pois se eu vos descarrégo,

E em dizendo isto, chaz;

Torna-me outra; tá rapaz,

Que dás porrada de cego.


– oOo —

AO DESCONCERTO DO MUNDO

Os bons vi sempre passar

No mundo graves tormentos;

E para mais m'espantar,

Os maos vi sempre nadar

Em mar de contentamentos.

Cuidando alcançar assi

O bem tão mal ordenado,

Fui mao; mas fui castigado.

Assi, que só para mi

Anda o mundo concertado.


– oOo —

A HUMA DAMA, PERGUNTANDO-LHE QUEM O MATAVA

Mote

Perguntais-me, quem me mata?

Não quero responder nada,

Por vos não fazer culpada.


Volta

E se a penna não me atiça,

A dizer pena tão forte,

Quero-me entregar á morte,

Antes que a vós á justiça.

Porém se tendes cobiça

De vos verdes tão culpada,

Direi que não sinto nada.


– oOo —

MOTE

Esconjuro-te, Domingas,

Pois me dás tanto cuidado,

Que me digas se te vingas,

Viverei menos penado.


Voltas

Juravas-me, que outras cabras

Folgavas de apascentar;

Eu por não me magoar,

Fingia qu'erão palabras.

Agora d'arte te vingas

D'algum meu doudo peccado,

Qu'inda que queiras, Domingas,

Não posso ser enganado.


Qualquer cousa busca o seu;

A fonte vai para o Tejo,

E tu para o teu desejo,

Por te vingares do meu.

De mi t'esqueces, Domingas,

Como eu faço do meu gado:

Praza a Deos, que se te vingas,

Que morra desesperado.


Na phantasia te pinto,

Fallo-te, responde o monte,

Busco o rio, busco a fonte,

Endoudeço, e não o sinto:

Domingas no valle brado,

Responde o eco Domingas;

E tu inda te não vingas

De me ver doudo tornado!


– oOo —

ALHEIO

Se a alma ver-se não póde

Onde pensamentos ferem,

Que farei para me crerem?


Voltas

Se n'alma huma só ferida

Faz na vida mil sinais,

Tanto se descobre mais,

Quanto he mais escondida.

S'esta dor tão conhecida

Me não vem, porque não querem,

Que farei para ma crerem?


Se se pudesse bem ver

Quanto callo, e quanto sento,

Despois de tanto tormento

Cuidaria alegre ser.

Mas se não me querem crer

Olhos, que tão mal me ferem,

Que farei para me crerem?


– oOo —

ALHEIO

Vosso bem querer, Senhora,

Vosso mal melhor me fôra.


Voltas

Ja agora certo conheço

Ser melhor todo tormento,

Onde o arrependimento

Se compra por justo preço.

Enganou-me hum bom comêço;

Mas o fim me diz agora

Que o mal melhor me fôra.


Quando hum bem he tão damnoso,

Que sendo bem, dá cuidado,

O damno fica obrigado

A ser menos perigoso.

Mas se a mi por desditoso,

Co'o bem me foi mal, Senhora,

Co'o vosso mal bem me fôra.


– oOo —

ALHEIO

Se me desta terra for,

Eu vos levarei, amor.


Voltas

Se me for, e vos deixar,

(Ponho por caso, que possa)

Est'alma minha, qu'he vossa,

Comvosco m'ha de ficar.

Assi que só por levar

A minha alma, se me for,

Vos levarei, meu amor.


Que mal póde maltratar-me,

Que comvosco seja mal?

Ou que bem póde ser tal,

Que sem vós possa alegrar-me?

O mal não póde enojar-me,

O bem me será maior,

Se vos levar, meu amor.


– oOo —

ALHEIO

Pequenos contentamentos,

Hi buscar quem contenteis,

Que a mi não me conheceis.


Voltas

Os gostos, que tantas dores

Fizerão ja valer menos,

Não os acceita pequenos,

Quem nunca teve maiores:

Bem parecem vãos favores,

Pois tão tarde me quereis,

Qu'inda me não conheceis.


Offereceis-me alegria,

Tendo-me ja cego e mouco:

He baixeza acceitar pouco,

Quem tanto vos merecia.

Ide-vos por outra via,

Pois o bem que me deveis,

Nunca mo satisfareis.


– oOo —

ALHEIO

Perdigão perdeo a penna,

Não ha mal que lhe não venha.


Voltas

Perdigão, que o pensamento

Subio a hum alto lugar,

Perde a penna do voar,

Ganha a pena do tormento:

Não tẽe no ar, nem no vento,

Azas com que se sostenha:

Não ha mal que lhe não venha.


Quiz voar a huma alta torre,

Mas achou-se desasado;

E vendo-se despennado,

De puro penado morre.

Se a queixumes se soccorre,

Lança no fogo mais lenha:

Não ha mal que lhe não venha.


– oOo —

A HUMAS SENHORAS, QUE HAVIÃO SER TERCEIRAS PARA COM HUMA DAMA

Pois a tantas perdições,

Senhoras, quereis dar vida,

Ditosa seja a ferida,

Que tẽe taes Cirurgiões!

Pois ventura

Me subio a tanta altura,

Que me sejais valedoras,

Ditosa seja a tristura,

Que se cura

Por vossos rogos, Senhoras!


Ser minha pena mortal,

Ja qu'entendeis, que he assi,

Não quero fallar por mi,

Que por mi falla meu mal.

Sois formosas,

Haveis de ser piedosas,

Por ser tudo d'huma côr;

Que pois Amor vos fez rosas

Milagrosas,

Fazei milagres de Amor.


Pedi a quem vós sabeis,

Que saiba de meu trabalho,

Não pelo qu'eu nisso valho,

Mas pelo que vós valeis.

Que o valer

De vosso alto merecer,

Com lho pedir de giolhos,

Fara qu'em meu padecer

Possa ver

O poder que tẽe seus olhos.


Vossa muita formosura

Com a sua tanto val,

Que me rio de meu mal,

Quando cuido em quem me cura.

A meus ais,

Peço-vos que lhe valhais,

Damas de Amor tão valídas,

Que nunca tal dor sintais,

Que queirais,

Onde não sejais queridas.


– oOo —

CANTIGA ALHEIA

Na fonte está Leonor

Lavando a talha, e chorando,

Ás amigas perguntando:

Vistes lá o meu amor?


Voltas

Pôsto o pensamento nelle,

Porque a tudo o Amor a obriga,

Cantava, mas a cantiga

Erão suspiros por elle.

Nisto estava Leonor

O seu desejo enganando,

Ás amigas perguntando:

Vistes lá o meu amor?


O rosto sôbre hũa mão,

Os olhos no chão pregados,

Que de chorar ja cansados,

Algum descanso lhe dão;

Desta sorte Leonor

Suspende de quando em quando

Sua dor; e em si tornando,

Mais pezada sente a dor.


Não deita dos olhos ágoa,

Que não quer que a dor s'abrande

Amor, porque em mágoa grande

Sécca as lagrimas a mágoa.

Despois que de seu amor

Soube novas perguntando,

D'improviso a vi chorando.

Olhae que extremos de dor!


– oOo —

ESTAS TROVAS MANDOU O AUTOR DA CADEIA, EM QUE O TINHA EMBARGADO POR HUMA DIVIDA MIGUEL ROIZ, FIOS SECOS D'ALCUNHA, AO CONDE DO REDONDO D. FRANCISCO COUTINHO, VISO-REI, QUE SE EMBARCAVA PARA FÓRA, PEDINDO-LHE O FIZESSE DESEMBARGAR

Que diabo ha tão damnado,

Que não tema a cutilada

Dos fios seccos da espada

Do fero Miguel armado?

Pois se tanto hum golpe seu

Sôa na infernal cadeia;

Do que o demonio arreceia

Como não fugirei eu?


Com razão lhe fugiria,

Se contr'elle, e contra tudo

Não tivesse hum forte escudo

Só em Vossa Senhoria.

Por tanto, Senhor, proveja,

Pois me tẽe ao remo atado,

Que antes que seja embarcado,

Eu desembargado seja.


– oOo —

ESTAS TROVAS MANDOU HEITOR DA SILVEIRA AO MESMO CONDE, INVERNANDO EM GOA

Vossa Senhoria creia

Que não apura o engenho

Fome, se he como a que tenho,

Mas afraca e corta a veia.

E quem o contrário sente,

Está farto em toda a hora,

Como estou faminto agora:

Mas Martha, se está contente,

Dá-lhe pouco de quem chora.


E pois Vossa Senhoria

Em geral a tudo acode,

Acuda a mi, que só póde

Dar-me no engenho valia.

Esperte esta Musa minha,

Que o tempo traz somnolenta;

Valha-lhe nesta tormenta

Com essa doce mézinha,

Que só dá vida e contenta.


Acuda com provisão,

Não de papel, mas provída

D'ouro e prata; que esta vida

Não sustentão papéis, não.

De feitor a thesoureiro

Ser-me-hia trabalho grande;

Vossa Senhoria mande

Algum remedio, primeiro,

Com que a morte o ferro abrande.


Ajuda de Luis de Camões

Nos livros doutos se trata

Que o grande Achilles insano

Deo a morte a Heitor Troiano;

Mas agora a fome mata

O nosso Heitor Lusitano.

Só ella o póde acabar,

Se essa vossa condição

Liberal e singular

Não mete entr'elles bastão,

Bastante para o fartar.


– oOo —

A HUMA SENHORA, QUE LHE CHAMOU DIABO

Esparsa

Não posso chegar ao cabo

De tamanho desarranjo,

Que sendo vós, Senhora, Anjo,

Vos queira tanto o Diabo.

Dais manifesto sinal

De minha muita firmeza,

Que os diabos querem mal

Aos Anjos por natureza.


– oOo —

CANTIGA

Vi chorar huns claros olhos,

Quando delles me partia.

Oh que mágoa! Oh que alegria!


Voltas

Polo meu apartamento

Se arrazárão todos d'ágoa.

Quem cuidou qu'em tanta mágoa

Achasse contentamento?

Julgue todo entendimento

Qual mais sentir se devia,

Se esta dor, se esta alegria?


Quando mais perdido estive,

Então deo a est'alma minha

Na maior mágoa que tinha,

O maior gôsto que tive.

Assi, se minha alma vive,

Foi porque me defendia

Desta dor esta alegria?


O bem, que Amor me não deu

No tempo que desejei,

Quando delle me apartei,

Me confessou, qu'era meu.

Agora que farei eu,

Se a fortuna me desvia

De lograr esta alegria?


Não sei se foi enganado,

Pois me tinha defendido

Das íras de mal querido,

No mal de ser apartado.

Agora peno dobrado,

Achando no fim do dia

O princípio da alegria.


– oOo —

VILLANCETE PASTORIL

Deos te salve, Vasco amigo.

Não me fallas? Como assi?

Bofé, Gil, não 'stava aqui.


Voltas

Pois onde te hão de fallar,

Se não 'stás onde appareces?

Se Magdanela conheces,

Nella me pódes achar.

E como te hão d'ir buscar

Aonde fogem de ti?

Pois nem eu estou em mi.


Porque te não acharei

Em ti, como em Magdanela?

Porque me fui perder nella

O dia que me ganhei.

Quem tão bem falla, não sei

Como anda fóra de si.

Ella falla dentro em mi.


Como estás aqui presente,

Se lá tens a alma e a vida?

Porqu'he d'hum'alma perdida

Apparecer sempre á gente.

Se es morto, bem se consente

Que todos fujão de ti.

Eu tambem fujo de mi.


– oOo —

OUTRO PASTORIL

Porque no miras, Giraldo,

Mi zampoña como suena?

Porque no me mira Elena.


Voltas

Vuelve acá, no estês pasmado,

Mira que gentil sonar!

Como te podrá mirar

Quien no puede ser mirado?

Y que bueno enamorado!

No dirás, si es mala, o buena?

No, que me hizo mudo Elena.


Mira tan dulce armonía,

Déjate dessos enojos.

Tengo clavados los ojos

Con que mirar te podia.

Ansí Dios te dé alegría:

No vés cuan dulce que suena?

No, porque no veo Elena.


– oOo —

OUTRO PASTORIL

Crescem, Camilla, os abrolhos

De chorares por Cincero:

Não he muito, que lhe quero,

Belisa, mais que meus olhos.


Voltas

Sempre os teus olhos estão,

Camilla, d'ágoas banhados.

De se verem desamados

Póde ser que chorarão.

Si, mas crescem os abrolhos,

E tu cegas por Cincero.

S'eu não vejo quem mais quero,

Para que quero mais olhos?


Se se foi ha mais d'hum mês,

Teus olhos não cansarão?

Não, que apos elle se vão

Estas lagrimas que vês.

Fazem logo estes abrolhos

O mato espinhoso e fero.

Pois eu não vejo a Cincero,

Isso só verão meus olhos.


Chorando queres morrer?

Mais quero viver chorando.

Tu não vês que vás cegando?

Se cego, como hei de ver?

Põe na vista outros antolhos.

Não posso, nem menos quero.

Outra para outro Cincero,

Antes não quero ter olhos.


– oOo —

A HUMA MULHER, QUE SE CHAMAVA GRACIA DE MORAES

Mote

Olhos, em qu'estão mil flores,

E com tanta graça olhais,

Que parece que os Amores

Morão onde vós morais.


Volta

Vem-se rosas e boninas,

Olhos, nesse vosso ver;

Vem-se mil almas arder

No fogo dessas meninas.

E di-lo-hão minhas dores,

Meus suspiros e meus ais;

E dirão mais, que os amores

Morão onde vós morais.


– oOo —

MOTE

Quem se confia em huns olhos,

Nas meninas delles vê

Que meninas não tẽe fé.


Voltas

Quem põe suas confianças

Em meninas sem assento,

Offereça o soffrimento

A duzentas mil mudanças.

Mostrão no ar esperanças;

Mas em seus olhos se vê

Como não tẽe n'alma fé.


Enganão ao parecer,

Porque no caso d'amar,

São mulheres no matar,

E meninas no querer.

Quem em seus olhos se crer,

Cem mil graças nelles vê;

Vê-las sim, mas não ter fé.


Amostrão-vos n'hum momento

Favores assi a mólhos;

Mas na mudança dos olhos

Se lhe muda o pensamento.

Em nada ja tẽe assento,

E o que mais nelles se vê

He formosura sem fé.


– oOo —

LOUVANDO E DESLOUVANDO UMA DAMA

Cantiga Velha

Sois formosa, e tudo tendes,

Senão que tendes os olhos verdes,


Voltas

Ninguem vos póde tirar

Serdes tão bem assombrada;

Mas heis-me de perdoar,

Que os olhos não valem nada.

Fostes mal aconselhada

Em querer que fossem verdes:

Trabalhae de os esconderdes.


A vossa testa he jardim,

Onde Amor se desenfada;

He tão branca e bem talhada,

Que parece de marfim.

Assi he; e quanto a mim,

Isso vos nasce de a terdes

Tão perto dos olhos verdes.


Os cabellos desatados

O mesmo sol escurecem;

Senão que por ser ondados,

Algum tanto desmerecem:

Mas á fé, que se parecem

A furto dos olhos verdes,

Não vos peze, não, de os terdes.


As pestanas tẽe mostrado

Ser raios, que abrazão vidas:

Se não forão tão compridas,

Tudo o mais era pintado:

Ellas me tinhão levado

A alma, sem o vós saberdes,

Se não forão os olhos verdes.


O mimo desse carão

Nem pôr-lhe os olhos consente:

O ser liso e transparente

Rouba todo o coração:

Inda assi achareis nação,

Que lhe não peze de os verdes;

Mas não seja co'os olhos verdes.


Esse riso, que he compôsto

De quantas graças nascêrão,

Senão que alguns me disserão,

Vos faz covinhas no rôsto.

Na vontade tenho posto

Dar-vos a alma, se quizerdes,

A trôco dos olhos verdes.


Nunca se vio, nem se escreve

Boca co'huma graça igual,

Se não fôra de coral,

E os dentes de côr de neve.

Dou-me eu a Deos, que me leve!

Soffrerei quanto tiverdes,

Não me tenhais olhos verdes.


Essa garganta merece

Outras palavras não minhas,

Senão qu'he feita em rosquinhas

D'alfenim, ao que parece.

Eu sei bem quem se offerece

A tomar tudo o que tendes,

E tambem os olhos verdes.


Essas mãos são ferropeas:

Só o vê-las enfeitiça;

Senão que são alvas, cheias,

E tẽe a feição roliça;

Com que appellais por justiça,

Para com ellas prenderdes

Quem vê vossos olhos verdes.


A vossa galantaria

Matará a quem fallardes:

Tendes huns desdens e tardes,

Que eu logo vos roubaria.

Oh dou-me a Santa Maria!

Sou cujo de quanto tendes,

E tambem desses olhos verdes.


– oOo —

AO MESMO

Tudo tendes singular,

Com que os corações rendeis,

Senão que rindo, fazeis

Covinhas para enterrar:

E para resuscitar

Tẽe força a graça que tendes;

Senão que tendes os olhos verdes.


Tudo, Senhora, alcançais,

Quanto o ser formosa alcança,

Senão que dais esperança

Co'os olhos com que matais.

Se acaso os alevantais,

He para as almas renderdes;

Senão que tendes os olhos verdes.


– oOo —

A DOM ANTONIO, SENHOR DE CASCAES, QUE TENDO-LHE PROMETTIDO SEIS GALLINHAS RECHEADAS POR HUMA COPLA QUE LHE FIZERA, LHE MANDOU POR PRINCÍPIO DA PAGA MEIA GALLINHA RECHEADA

Cinco gallinhas e meia

Deve o Senhor de Cascais;

E a meia vinha cheia

De appetite para as mais.


– oOo —

MOTE

Catharina bem promette;

Ora má! como ella mente!


Voltas

Catharina he mais formosa

Para mi, que a luz do dia;

Mas mais formosa sería,

Se não fosse mentirosa.

Hoje a vejo piedosa,

Á manhãa tão differente,

Que sempre cuido que mente.


Prometteo-me hontem de vir,

Nunca mais appareceo;

Creio que não prometteo,

Senão só por me mentir.

Faz-me, emfim, chorar e rir;

Rio, quando me promette,

Mas chóro quando me mente.


Jurou-me aquella cadella

De vir, pela alma que tinha;

Enganou-me; tinha a minha;

Deo-lhe pouco de perdella.

A vida gasto apos ella,

Porque ma dá, se promette,

Mas tira-ma, quando mente.


Má, mentirosa, malvada,

Dizei, porque me mentis?

Prometteis, e então fugis?

Pois sem tornar, tudo he nada.

Não sois bem aconselhada;

Que quem promette, se mente,

O que perde não o sente.


Tudo vos consentiria

Quanto quizesseis fazer,

Se este vosso prometter

Fosse por me ter hum dia.

Todo então me desfaria

Com gôsto; e vós de contente,

Zombarieis de quem mente.


Mas pois folgais de mentir,

Promettendo de me ver,

Eu vos deixo o prometter,

Deixae-me vós o servir:

Haveis então de sentir

Quanto a minha vida sente

O servir a quem lhe mente.


Catharina me mentio

Muitas vezes, sem ter lei,

E todas lhe perdoei

Por huma só que cumprio.

Se como me consentio

Fallar-lhe, o mais me consente,

Nunca mais direi que mente.


– oOo —

MOTE

A alma, qu'está offrecida

A tudo, nada lhe he forte;

Assi passa o bem da vida,

Como passa o mal da morte.


Volta

De maneira me succede

O que temo, e o que desejo,

Que sempre o que temo, vejo,

Nunca o que a vontade pede.

Tenho tão offerecida

Alma e vida a toda a sorte,

Que isso me dera da morte,

Como ja me dá da vida.


– oOo —

MOTE

Ferro, fogo, frio e calma,

Todo o mundo acabarão;

Mas nunca vos tirarão,

Alma minha, da minha alma.


Volta

Não vos guardei, quando vinha,

Em tôrre, fôrça, ou engenho;

Que mais guardada vos tenho

Em vós, que sois alma minha.

Alli nem frio, nem calma,

Não podem ter jurdição;

Na vida sim, porém não

Em vós que tenho por alma.


– oOo —

MOTE

Esperei, ja não espero

De mais vos servir, Senhora;

Pois me fazeis cada hora

Tanto mal, que desespéro.


Volta

Pois sei certo que folgais,

Quando mais mal me fazeis,

E que nunca descansais,

Senão quando me mostrais

Quão pouco bem me quereis;

Servir-vos mais não espero

Pois meu viver empeora

Com me fazerdes, Senhora,

Tanto mal, que desespéro.


– oOo —

MOTE

Descalça vai para a fonte

Leonor pela verdura;

Vai formosa, e não segura.


Voltas

Leva na cabeça o pote,

O testo nas mãos de prata,

Cinta de fina escarlata,

Sainho de chamalote:

Traz a vasquinha de cote,

Mais branca que a neve pura;

Vai formosa, e não segura.


Descobre a touca a garganta,

Cabellos de ouro entrançado,

Fita de côr d'encarnado,

Tão linda que o mundo espanta:

Chove nella graça tanta,

Que dá graça á formosura;

Vai formosa, e não segura.


– oOo —

MOTE

Quem disser que a barca pende,

Dir-lhe-hei, mana, que mente.


Voltas

Se vos quereis embarcar,

E para isso estais no caes,

Entrae logo: que tardaes?

Olhae qu'está preamar:

E se outrem, por vos fretar,

Vos disser qu'esta que pende,

Dir-lhe-hei, mana, que mente.


Esta barca he de carreira;

Tẽe seus apparelhos novos:

Não ha como ella outra em Povos

Boa de leme, e veleira:

Mas, se por ser a primeira,

Vos disser alguem que pende,

Dir-lhe-hei, mana, que mente.


– oOo —

MOTE

Com razão queixar-me posso

De vós, que mal vos queixais;

Pois, Senhora, vos sangrais,

Que seja n'hum corpo vosso.


Voltas

Eu para levar a palma,

Com que ser vosso mereça,

Quero que o corpo padeça

Por vós, que delle sois alma.

Vós do corpo vos queixais,

Eu queixar-me de vós posso,

Porque, tendo hum corpo vosso,

Na minha alma vos sangrais.


E sem fazer differença

No que de mi possuis,

Pelo pouco que sentis,

Dais á minh'alma doença.

Porque dous aventurais?

Oh não seja o damno nosso!

Sangre-se este corpo vosso,

Porque, minha alma, vivais.


E inda, se attentardes bem,

Seguis medicina errada,

Porque para ser sangrada

Hum'alma sangue não tem.

E pois em mi sarar posso

Males, que á minha alma dais,

Se inda outra vez vos sangrais,

Seja neste corpo vosso.


– oOo —

MOTE

Ojos, herido me habeis,

Acabad ya de matarme;

Mas muerto volved á mirarme,

Porque me resusciteis.


Voltas

Pues me distes tal herida,

Con gana de darme muerte,

El morir me es dulce suerte,

Pues con morir me dais vida.

Ojos, qué os deteneis?

Acabad ya de matarme;

Mas muerto volved á mirarme,

Porque me resusciteis.


La llaga cierto ya es mia,

Aunque, ojos, vós no querrais;

Mas si la muerte me dais,

El morir me es alegría.

Y así digo que acabeis,

O ojos, ya de matarme;

Mas muerto volved á mirarme,

Porque me resusciteis.


– oOo —

A DONA FRANCISCA DE ARAGÃO, QUE LHE MANDOU GLOSAR ESTE VERSO:

Mas porém a que cuidados?

Tanto maiores tormentos

Forão sempre os que soffri,

Daquillo que cabe em mi,

Que não sei que pensamentos

São os para que nasci.

Quando vejo este meu peito

A perigos arriscados

Inclinado, bem suspeito

Que a cuidados sou sujeito,

Mas porém a que cuidados?


Ao mesmo

Que vindes em mi buscar,

Cuidados, que sou captivo?

Eu não tenho que vos dar:

Se vindes a me matar,

Ja ha muito que não vivo:

Se vindes, porque me dais

Tormentos desesperados,

Eu, que sempre soffri mais,

Não digo que não venhais;

Mas porém a que cuidados?


Ao mesmo

Se as penas que Amor me deu,

Vem por tão suaves meios,

Não ha que temer receios;

Que val hum cuidado meu

Por mil descansos alheios.

Ter n'huns olhos tão formosos

Os sentidos enlevados,

Bem sei qu'em baixos estados

São cuidados perigosos;

Mas porém a que cuidados?..


Carta com a glosa acima

Deixei-me enterrar no esquecimento de v. m. crendo me sería assi mais seguro: mas agora que he servida de me tornar a resuscitar, por me mostrar seus poderes, lembro-lhe que huma vida trabalhosa he menos de agradecer, que huma morte descansada. Mas se esta vida, que agora de novo me dá, for para ma tornar a tomar, servindo-se della, não me fica mais que desejar, que poder acertar com este mote de v. m., ao qual dei tres entendimentos, segundo as palavras delle pudérão soffrer: se forem bons, he mote de v. m.: se maos, são as glosas minhas.

– oOo —

MOTE ALHEIO

Campos bem-aventurados,

Tornae-vos agora tristes;

Que os dias, em que me vistes,

Alegres ja são passados.


Glosa

Campos cheios de prazer,

Vós qu'estais reverdecendo,

Ja m'alegrei com vos ver;

Agora venho a temer

Qu'entristeçais em me vendo.

E pois a vista alegrais

Dos olhos desesperados,

Não quero que me vejais,

Para que sempre sejais,

Campos, bem-aventurados.


Porém se por accidente

Vos pezar de meu tormento,

Sabereis que Amor consente

Que tudo me descontente,

Senão descontentamento.

Por isso vós, arvoredos,

Que ja nos meus olhos vistes

Mais alegria, que medos,

Se mos quereis fazer ledos,

Tornae-vos agora tristes.


Ja me vistes ledo ser,

Mas despois que o falso Amor

Tão triste me fez viver,

Ledos folgo de vos ver,

Porque me dobreis a dor.

E se este gôsto sobejo

De minha dor me sentistes,

Julgae quanto mais desejo

As horas que vos não vejo,

Que os dias em que me vistes.


O tempo, qu'he desigual,

De seccos, verdes vos tem;

Porqu'em vosso natural

Se muda o mal para o bem,

Mas o meu para mor mal.

Se perguntais, verdes prados,

Pelos tempos differentes

Que de Amor me forão dados,

Tristes, aqui são presentes,

Alegres, ja são passados.


– oOo —

MOTE ALHEIO

Trabalhos descansarião

Se para vós trabalhasse;

Tempos tristes passarião,

Se algum'hora vos lembrasse.


Glosa

Nunca o prazer se conhece,

Senão despois da tormenta:

Tão pouco o bem permanece,

Que se o descanso florece,

Logo o trabalho arrebenta.

Sempre os bens se lograrião,

Mas os males tudo atalhão;

Porém ja que assi porfião,

Onde descansos trabalhão,

Trabalhos descansarião.


Qualquer trabalho me fôra

Por vós grão contentamento:

Nada sentira, Senhora,

Se víra disto algum'hora

Em vós hum conhecimento.

Por mal que o mal me tratasse,

Tudo por bem tomaria;

Postoque o corpo cansasse,

A alma descansaria,

Se para vós trabalhasse.


Quem vossas cruezas ja

Soffreo, a tudo se poz;

Costumado ficará;

E muito melhor será,

Se trabalhar para vós.

Tristezas esquecerião,

Postoque mal me tratárão;

Annos não me lembrarião,

Que como est'outros passarão,

Tempos tristes passarião.


Se fosse galardoado

Este trabalho tão duro,

Não vivêra magoado.

Mas não o foi o passado,

Como o será o futuro?

De cansar não cansaria,

Se quizereis, que cansasse;

Cavar, morrer, fa-lo-hia;

Tudo, emfim, esqueceria,

Se algum'hora vos lembrasse.


– oOo —

MOTE ALHEIO

Triste vida se me ordena,

Pois quer vossa condição

Que os males, que dais por pena,

Me fiquem por galardão.


Glosa

Despois de sempre soffrer,

Senhora, vossas cruezas,

A pezar de meu querer,

Me quereis satisfazer

Meus serviços com tristezas.

Mas, pois em balde resiste

Quem vossa vista condena,

Prestes estou para a pena;

Que de galardão tão triste

Triste vida se me ordena.


De contente do mal meu

A tão grande extremo vim,

Que consinto em minha fim:

Assi que vós e mais eu,

Ambos somos contra mim.

Mas que soffra meu tormento,

Sem querer mais galardão,

Não he fóra de razão

Que queira meu soffrimento,

Pois quer vossa condição.


O mal, que vós dais por bem,

Esse, Senhora, he mortal;

Que o mal, que dais como mal,

Em muito menos se tem,

Por costume natural.

Mas porém nesta victoria,

Que comigo he bem pequena,

A maior dor me condena

A pena, que dais por gloria,

Que os males, que dais por pena.


Que mor bem me possa vir,

Que servir-vos, não o sei.

Pois que mais quero eu pedir,

Se quanto mais vos servir,

Tanto mais vos deverei?

Se vossos merecimentos

De tão alta estima são,

Assaz de favor me dão

Em querer que meus tormentos

Me fiquem por galardão.


– oOo —

MOTE ALHEIO

Ja não posso ser contente,

Tenho a esperança perdida;

Ando perdido entre a gente,

Nem morro, nem tenho vida.


Glosa

Despois que meu cruel Fado

Destruio huma esperança,

Em que me vi levantado,

No mal fiquei sem mudança,

E do bem desesperado.

O coração, que isto sente,

Á sua dor não resiste,

Porque vê mui claramente

Que pois nasci para triste,

Ja não posso ser contente.


Por isso, contentamentos,

Fugi de quem vos despreza:

Ja fiz outros fundamentos,

Ja fiz senhora a tristeza

De todos meus pensamentos.

O menos que lh'entreguei,

Foi esta cansada vida:

Cuido que nisto acertei,

Porque de quanto esperei

Tenho a esperança perdida.


Acabar de me perder

Fôra ja muito melhor;

Tivera fim esta dor,

Que não podendo mor ser,

Cada vez a sinto mor.

De vós desejo esconder-me,

E de mi principalmente,

Onde ninguem possa ver-me;

Que pois me ganho em perder-me,

Ando perdido entre a gente.


Gostos de mudanças cheios,

Não me busqueis, não vos quero:

Tenho-vos por tão alheios,

Que do bem que não espero,

Inda me ficão receios.

Em pena tão sem medida,

Em tormento tão esquivo

Que morra, ninguem duvída;

Mas eu se morro, ou se vivo,

Nem morro, nem tenho vida.


– oOo —

A HUMA DAMA, QUE SE CHAMAVA ANNA

Mote

A morte, pois que sou vosso,

Não a quero; mas se vem,

Ha de ser todo meu bem.


Glosa

Amor, qu'em meu pensamento

Com tanta fé se fundou,

Me tẽe dado hum regimento,

Que quando vir meu tormento

Me salve com cujo sou.

E com esta defensão,

Com que tudo vencer posso,

Diz a causa ao coração:

Não tẽe em mi jurdição

A morte, pois que sou vosso.


Por exprimentar hum dia

Amor se me achava forte

Nesta fé, como dizia,

Me convidou com a morte,

Só por ver se a temeria.

E como ella seja a cousa

Onde está todo meu bem,

Respondi-lhe, como quem

Quer dizer mais, e não ousa:

Não a quero, mas se vem…


Não disse mais, porque então

Entendeo quanto me toca;

E se tinha dito o não,

Muitas vezes diz a boca,

O que nega o coração.

Toda a cousa defendida

Em mais estima se tem:

Por isso he cousa sabida,

Que perder por vós a vida

Ha de ser todo meu bem.


– oOo —

Á MESMA DAMA

Vejo-a n'alma pintada,

Quando me pede o desejo

O natural que não vejo.


Glosa

Se só de ver puramente

Me transformei no que vi,

De vista tão excellente

Mal poderei ser ausente,

Em quanto o não for de mi.

Porque a alma namorada

A traz tão bem debuxada,

E a memoria tanto voa,

Que se a não vejo em pessoa,

Vejo-a n'alma pintada.


O desejo, que s'estende

Ao que menos se concede,

Sôbre vós pede e pretende,

Como o doente que pede

O que mais se lhe defende.

Eu, qu'em ausencia vos vejo,

Tenho piedade e pejo

De me ver tão pobre estar,

Qu'então não tenho que dar,

Quando me pede o desejo.


Como áquelle que cegou,

He cousa vista e notoria,

Que a natureza ordenou

Que se lhe dobre em memoria

O qu'em vista lhe faltou:

Assi a mi, que não vejo

Co'os olhos o que desejo,

Na memoria e na firmeza

Me concede a natureza

O natural que não vejo.


– oOo —

MOTE ALHEIO

Sem vós, e com meu cuidado,

Olhae com quem, e sem quem.


Glosa

Vendo Amor que com vos ver

Mais levemente soffria

Os males que me fazia,

Não me pôde isto soffrer;

Conjurou-se com meu Fado;

Hum novo mal me ordenou:

Ambos me levão forçado,

Não sei onde, pois que vou

Sem vós e com meu cuidado.


Não sei qual he mais estranho

Destes dous males que sigo,

Se não vos ver, se comigo

Levar imigo tamanho.

O que fica, e o que vem,

Hum me mata, outro desejo:

Com tal mal, e sem tal bem,

Em taes extremos me vejo:

Olhae com quem, e sem quem!


– oOo —

AO MESMO

Amor, cuja providencia

Foi sempre que não errasse,

Porque n'alma vos levasse,

Respeitando o mal d'ausencia,

Quiz qu'em vós me transformasse.

E vendo-me ir maltratado,

Eu e meu cuidado sós,

Proveo nisso de attentado,

Por não me ausentar de vós,

Sem vós, e com meu cuidado.


Mas est'alma, qu'eu trazia,

Porque vós nella morais,

Deixa-me cego, e sem guia;

Que ha por melhor companhia

Ficar onde vós ficais.

Assi me vou de meu bem,

Onde quer a forte estrella,

Sem alma, qu'em si vos tem,

Co'o mal de viver sem ella:

Olhae com quem, e sem quem!


– oOo —

MOTE ALHEIO

Sem ventura he por demais.


Glosa

Todo o trabalhado bem

Promette gostoso fruito;

Mas os trabalhos, que vem,

Para quem dita não tem

Valem pouco, e custão muito.

Rompe toda a pedra dura,

Faz os homens immortais

O trabalho quando atura;

Mas querer achar ventura,

Sem ventura, he por demais.


– oOo —

MOTE ALHEIO

Minh'alma, lembrae-vos della.


Glosa

Pois o ver-vos tenho em mais

Que mil vidas que me deis,

Assi como a que me dais,

Meu bem, ja que mo negais,

Meus olhos, não mo negueis.

E se a tal estado vim

Guiado de minha estrella,

Quando houverdes dó de mim,

Minha vida, dae-lhe a fim,

Minh'alma, lembrae-vos della.


– oOo —

MOTE ALHEIO

Tudo póde huma affeição.


Glosa

Tẽe tal jurdição Amor

N'alma donde se aposenta,

E de que se faz senhor,

Que a liberta e isenta

De todo humano temor.

E com mui justa razão,

Como senhor soberano,

Que Amor não consente dano.

E pois me soffre tenção,

Gritarei por desengano:

Tudo póde huma affeição.


– oOo —

TROVA DE BOSCÃO

Justa fué mi perdicion;

De mis males soy contento;

Ya no espero galardon,

Pues vuestro merecimiento

Satisfizo mi pasion.


Glosa

Despues que Amor me formó

Todo de amor, cual me veo,

En las leyes, que me dió,

El mirar me consintió,

Y defendióme el deseo.

Mas el alma, como injusta,

En viendo tal perfeccion,

Dió al deseo ocasion:

Y pues quebré ley tan justa,

Justa fué mi perdicion.


Mostrándoseme el Amor

Mas benigno que cruel,

Sobre tirano traidor,

De zelos de mi dolor,

Quiso tomar parte en él.

Yo que tan dulce tormento

No quiero dallo, aunque peco,

Resisto, y no lo consiento;

Mas si me lo toma á trueco

De mis males, soy contento.


Señora, ved lo que ordena

Este Amor tan falso nuestro!

Por pagar á costa agena,

Manda que de un mirar vuestro

Haga el premio de mi pena.

Mas vos, para que veais

Tan engañosa intencion,

Aunque muerto me sintais,

No mireis, que si mirais,

Ya no espero galardon.


Pues que premio (me direis)

Esperas que será bueno?

Sabed, sino lo sabeis,

Que es lo mas de lo que peno

Lo menos que mereceis.

Quien hace al mal tan ufano,

Y tan libre al sentimiento?

El deseo? No, que es vano.

El amor? No, que es tirano.

Pues? Vuestro merecimiento.


No pudiendo Amor robarme

De mis tan caros despojos,

Aunque fué por mas honrarme,

Vos sola para matarme

Le prestastes vuestros ojos.

Matáranme ambos á dos;

Mas á vos con mas razon

Debe el la satisfaccion;

Que á mi por él, y por vos,

Satisfizo mi pasion.


– oOo —

ALHEIO

Todo es poco lo posible.


Glosa

Ved que engaño señorea

Nuestro juicio tan loco,

Que por mucho que se crea,

Todo el bien, que se desea,

Alcanzado, queda poco.

Un bien de cualquiera grado,

Si de haberse es imposible,

Queda mucho deseado.

Mas para mucho, alcanzado,

Todo es poco lo posible.


Outro

Posible es á mi cuidado

Poderme hacer satisfecho,

Si fuera posible al hado

Hacer no hecho lo hecho,

Y futuro lo pasado.

Si olvido pudiera haber,

Fuera remedio sufrible;

Mas ya que no puede ser,

Para contento me hacer,

Todo es poco lo posible.


– oOo —

ALHEIO

Vos teneis mi corazon.


Glosa

Mi corazon me han robado;

Y Amor viendo mis enojos,

Me dijo: Fuéte llevado

Por los mas hermosos ojos,

Que desque vivo he mirado.

Gracias sobrenaturales

Te lo tienen en prision.

Y si Amor tiene razon,

Señora, por las señales,

Vos teneis mi corazon.


– oOo —

MOTE

Qué veré que me contente?


Glosa

Desque una vez yo miré,

Señora, vuestra beldad,

Jamas por mi voluntad

Los ojos de vos quité.

Pues sin vos placer no siente

Mi vida, ni lo desea,

Si no quereis que yo os vea,

Qué veré que me contente?


– oOo —

MOTE

Sem vós, e com meu cuidado.


Glosa

Querendo Amor esconder-vos

Em parte que vos não visse,

Co'o extremo de querer-vos

Cegou-me os olhos com ver-vos,

Levou-vos, sem que vos visse.

Eu cego, mas atinado,

Quando vi que vos não via,

Do mesmo Amor indignado,

Ja vêdes qual ficaria

Sem vós e com meu cuidado.


– oOo —

MOTE

Retrato, vós não sois meu;

Retratárão-vos mui mal;

Que a serdes meu natural,

Foreis mofino como eu.


Glosa

Indaqu'em vós a arte vença

O que o natural tẽe dado,

Não fostes bem retratado;

Que ha em vós mais differença,

Que no vivo do pintado.

Se o lugar se considera

Do alto estado, que vos deu

A sorte, qu'eu mais quizera;

Se he qu'eu sou quem d'antes era,

Retrato, vós não sois meu.


Vós na vossa glória pôsto,

Eu na minha sepultura,

Vós com bens, eu com desgôsto;

Pareceis-vos ao meu rosto,

E não ja á minha ventura.

E pois nella e vós errarão

O qu'em mi he principal,

Muito em ambos s'enganárão.

Se por mi vós retratárão,

Retratárão-vos mui mal.


Mas se esse rosto fingido

Quizerão representar,

E houverão por bom partido

Dar-vos a alma do sentido

Para a glória do lugar;

Víreis, pôsto nessa alteza,

Que vos não ha cousa igual;

E que nem a maior mal

Podeis vir, nem mor baixeza,

Que a serdes meu natural.


Por isso não confesseis

Serdes meu, qu'he desatino,

Com que o lugar perdereis:

Se conservar-vos quereis,

Blazonae que sois divino.

Que se nesta occasião

Conhecessem qu'ereis meu,

Por meu vos derão de mão,


....


Fôreis mofino, como eu.


– oOo —

MOTE

Foi-se gastando a esperança,

Fui entendendo os enganos;

Do mal ficárão-me os danos,

E do bem só a lembrança.


Glosa

Nunca em prazeres passados

Tive firmeza segura.

Antes tão arrebatados,

Qu'inda não erão chegados,

Quando mos levou ventura.

E como quem desconfia

Ter em tal sorte mudança,

No meio desta porfia,

De quanto bem pretendia

Foi-se gastando a esperança.


Não tive por desatino

A occasião de perdella;

Mas foi culpa do destino,

Que a ninguem, como mais dino,

Amor pudéra sostella.

Dei-lhe tudo o qu'era seu,

Não receando taes danos

Deste, a quem alma lhe deu:

Quando ja não era meu,

Fui entendendo os enganos.


Fiquei deste mal sobejo

A quem a causa compete

Dizer-lhe tudo o que vejo,

Que Amor acceita o desejo,

Mas mente no que promete.

Que se a mi se me obrigou

A dar-me bens soberanos,

Foi engano que ordenou;

Que do bem tudo levou,

Do mal ficárão-me os danos.


E se dor tão desigual

Soffro em mi com padecellos,

Quero de novo soffrellos;

Que por a causa ser tal,

Não determino offendellos.

Dobre-se o mal, falte a vida,

Cresça a fé, falte a esperança,

Pois foi mal agradecida;

Fique a dor n'alma imprimida,

E do bem só a lembrança.


– oOo —

ENDECHAS A BARBARA ESCRAVA

Aquella captiva,

Que me tẽe captivo,

Porque nella vivo,

Ja não quer que viva.

Eu nunca vi rosa

Em suaves mólhos,

Que para meus olhos

Fosse mais formosa.


Nem no campo flores,

Nem no ceo estrellas,

Me parecem bellas,

Como os meus amores.

Rosto singular,

Olhos socegados,

Pretos e cansados,

Mas não de matar.


Huma graça viva,

Que nelles lhe mora,

Para ser senhora

De quem he captiva.

Pretos os cabellos,

Onde o povo vão

Perde opinião,

Que os louros são bellos.


Pretidão de Amor,

Tão doce a figura,

Que a neve lhe jura

Que trocára a cór.

Leda mansidão,

Que o siso acompanha,

Bem parece estranha,

Mas barbara não.


Presença serena,

Que a tormenta amansa:

Nella emfim descansa

Toda minha pena.

Esta he a captiva,

Que me tẽe captivo;

E pois nella vivo,

He fôrça que viva.


– oOo —

MOTE

Quem ora soubesse

Onde o Amor nasce,

Que o semeasse!


Voltas

D'Amor e seus danos

Me fiz lavrador;

Semeava amor,

E colhia enganos;

Não vi, em meus anos,

Homem que apanhasse

O que semeasse.


Vi terra florída

De lindos abrolhos,

Lindos para os olhos,

Duros para a vida.

Mas a rez perdida,

Que tal herva pasce,

Em forte hora nasce.


Com quanto perdi,

Trabalhava em vão:

Se semeei grão,

Grande dor colhi.

Amor nunca vi

Que muito durasse,

Que não magoasse.


– oOo —

ALHEIO

Se me levão ágoas,

Nos olhos as levo.


Voltas

Se de saudade

Morrerei ou não,

Meus olhos dirão

De mi a verdade.

Por elles me atrevo

A lançar as ágoas,

Que mostrem as mágoas

Que nesta alma levo.


As ágoas, qu'em vão

Me fazem chorar,

Se ellas são do mar,

Estas de amar são.

Por ellas relévo

Todas minhas mágoas;

Que se fôrça d'ágoas

Me leva, eu as levo.


Todas me entristecem,

Todas são salgadas;

Porém as choradas

Doces me parecem.

Correi, doces ágoas,

Que se em vós m'enlévo,

Não doem as mágoas,

Que no peito levo.


– oOo —

ALHEIO

Menina dos olhos verdes,

Porque me não vedes?


Voltas

Elles verdes são,

E tẽe por usança

Na côr esperança,

E nas obras não.

Vossa condição

Não he d'olhos verdes,

Porque me não vêdes.


Isenções a mólhos

Qu'elles dizem terdes,

Não são d'olhos verdes,

Nem de verdes olhos.

Sirvo de giolhos,

E vós não me credes,

Porque me não vêdes.


Havião de ser,

Porque possa vê-los,

Que huns olhos tão bellos

Não se hão d'esconder:

Mas fazeis-me crer,

Que ja não são verdes,

Porque me não vêdes.


Verdes não o são,

No que alcanço delles;

Verdes são aquelles

Qu'esperança dão.

Se na condição

Está serem verdes,

Porque me não vedes?


– oOo —

ALHEIO

Trocae o cuidado,

Senhora, comigo;

Vereis o perigo,

Qu'he ser desamado.


Voltas

Se trocar desejo

O amor entre nós,

He para qu'em vós

Vejais o que vejo.

E sendo trocado

Este amor comigo,

Ser-vos-ha castigo

Terdes meu cuidado.


Tendes o sentido

D'Amor livre e isento,

E cuidais qu'he vento

Ser tão mal querido.

Não seja o cuidado

Tão vosso inimigo,

Que queira o perigo

De ser desamado.


Mas nunca foi tal

Este meu querer,

Que a quem tanto quer,

Queira tanto mal

Seja eu maltratado,

E nunca o castigo

Vos mostre o perigo,

Qu'he ser desamado.


– oOo —

Á TENÇÃO DE MIRAGUARDA

Ver, e mais guardar

De ver outro dia,

Quem o acabaria?


Voltas

Da lindeza vossa,

Dama, quem a vê,

Impossivel he

Que guardar-se possa.

Se faz tanta mossa

Ver-vos hum só dia,

Quem se guardaria?


Melhor deve ser

Neste aventurar

Ver, e não guardar,

Que guardar e ver.

Ver e defender,

Muito bom sería,

Mas quem poderia?


– oOo —

MOTE

Irme quiero, madre,

Á aquella galera,

Con el marinero,

Á ser marinera.


Voltas

Madre, si me fuere,

Do quiera que vó,

No lo quiero yo,

Que el Amor lo quiere.

Aquel niño fiero,

Hace que me mueva

Por un marinero

Á ser marinera.


El que todo puede,

Madre, no podrá,

Pues el alma vá,

Que el cuerpo se quede.

Con él por que muero

Voy, porque no muera;

Que si es marinero,

Seré marinera.


Es tirana ley

Del niño Señor,

Que por un amor

Se deseche un Rey.

Pues desta manera

Quiero irme, quiero

Por un marinero

Á ser marinera.


Decid, ondas, cuando

Vistes vos doncella,

Siendo tierna y bella,

Andar navegando?

Mas qué no se espera

Daquel niño fiero?

Vea yo quien quiero,

Sea marinera.


– oOo —

MOTE

Saudade minha,

Quando vos veria?


Voltas

Este tempo vão,

Esta vida escassa,

Para todos passa,

Só para mi não.

Os dias se vão

Sem ver este dia,

Quando vos veria.


Vêde esta mudança

Se está bem perdida,

Em tão curta vida

Tão longa esperança.

Se este bem se alcança,

Tudo soffreria,

Quando vos veria.


Saudosa dor,

Eu bem vos entendo;

Mas não me defendo,

Porque offendo Amor.

Se fôsseis maior,

Em maior valia

Vos estimaria.


Minha saudade,

Charo penhor meu,

A quem direi eu

Tamanha verdade?

Na minha vontade

De noite e de dia

Sempre vos teria.


– oOo —

MOTE

Vida da minha alma,

Não vos posso ver:

Isto não he vida

Para se soffrer.


Voltas

Quando vos eu via,

Esse bem lograva,

A vida estimava,

Pois então vivia;

Porque vos servia

Só para vos ver.

Ja que vos não vejo

Para qu'he viver?


Vivo sem razão,

Porqu'em minha dor

Não a poz Amor;

Que inimigos são.

Mui grande traição

Me obriga a fazer

Que viva, Senhora,

Sem vos poder ver.


Não me atrevo ja,

Minha tão querida,

A chamar-vos vida,

Porque a tenho má.

Ninguem cuidará,

Que isto póde ser,

Sendo-me vós vida,

Não poder viver.


– oOo —

MOTE

Coifa de beirame

Namorou Joanne.


Voltas

Por cousa tão pouca

Andas namorado?

Amas o toucado,

E não quem o touca?

Ando cega e louca

Por ti, meu Joanne,

Tu pelo beirame.


Amas o vestido?

Es falso amador.

Tu não vês que Amor

Se pinta despido?

Cego e mui perdido

Andas por beirame,

E eu por ti, Joanne.


A todos encanta

Tua parvoice;

De tua doudice

Gonçalo s'espanta,

E zombando canta:

Coifa de beirame,

Namorou Joanne.


Eu não sei que viste

Neste meu toucado,

Que tão namorado

Delle te sentiste.

Não te veja triste;

Ama-me, Joanne,

E deixa o beirame.


Joanne gemia,

Maria chorava,

E assi lamentava

O mal que sentia:

(Os olhos feria,

E não o beirame,

Que matou Joanne)


Não sei do que vem

Amares vestido;

Que o mesmo Cupido

Vestido não tem.

Sabes de que vem

Amares beirame?

Vem de ser Joanne.


– oOo —

MOTE

Se Helena apartar

Do campo seus olhos,

Nascerão abrolhos.


Voltas

A verdura amena,

Gados, que pasceis,

Sabei que a deveis

Aos olhos d'Helena.

Os ventos serena,

Faz flores d'abrolhos

O ar de seus olhos.


Faz serras florídas,

Faz claras as fontes:

S'isto faz nos montes,

Que fara nas vidas?

Tra-las suspendidas,

Como hervas em mólhos,

Na luz de seus olhos.


Os corações prende

Com graça inhumana;

De cada pestana

Hum'alma lhe pende.

Amor se lhe rende,

E pôsto em giolhos,

Pasma nos seus olhos.


– oOo —

ALHEIO

Verdes são os campos

De côr de limão;

Assi são os olhos

Do meu coração.


Voltas

Campo, que t'estendes

Com verdura bella;

Ovelhas, que nella

Vosso pasto tendes;

D'hervas vos mantendes

Que traz o verão;

E eu das lembranças

Do meu coração.


Gados, que pasceis

Com contentamento,

Vosso mantimento

Não no entendeis.

Isso que comeis,

Não são hervas, não;

São graça dos olhos

Do meu coração.


– oOo —

ALHEIO

Verdes são as hortas

Com rosas e flores:

Moças, que as régão,

Matão-me d'amores.


Voltas

Entre estes penedos

Que daqui parecem,

Verdes hervas crescem,

Altos arvoredos.

Vai destes rochedos

Ágoa, com que as flores

D'outras são regadas,

Que mátão d'amores.


Com ágoa, que cai

Daquella espessura,

Outra se mistura,

Que dos olhos sai:

Toda junta vai

Regar brancas flores;

Onde ha outros olhos,

Que mátão d'amores.


Celestes jardins,

As flores estrellas:

Hortelôas dellas

São huns seraphins.

Rosas e jasmins

De diversas côres,

Anjos, que as régão,

Mátão-me d'amores.


– oOo —

ALHEIO

Menina formosa,

Dizei de que vem

Serdes rigorosa

A quem vos quer bem?


Voltas

Não sei quem assella

Vossa formosura;

Que quem he tão dura

Não póde ser bella.

Vós sereis formosa;

Mas a razão tem

Que quem he irosa,

Não parece bem.


A mostra he de bella,

As obras são cruas:

Pois qual destas duas

Ficará na sella?

Se ficar irosa,

Não vos está bem:

Fique antes formosa,

Que mais fôrça tem.


O Amor formoso

Se pinta e se chama:

Se he amor, ama,

Se ama, he piedoso.

Diz agora a grosa

Que este texto tem,

Que quem he formosa

Ha de querer bem.


Havei dó, menina,

Dessa formosura;

Que se a terra he dura,

Secca-se a bonina.

Sêde piedosa;

Não veja ninguem

Que por rigorosa

Percais tanto bem.


– oOo —

ALHEIO

Tende-me mão nelle,

Que hum real me deve.


Voltas

C'hum real d'amor,

Dous de confiança,

E tres d'esperança,

Me foge o trédor.

Falso desamor

S'encerra naquelle

Que hum real me deve.


Pedio-mo emprestado,

Não lhe quiz penhor:

He mao pagador;

Tendo-mo afferrado.

C'hum cordel atado,

Ao Tronco se leve;

Que hum real me deve.


Por esta travéssa

Se vai acolhendo:

Ei-lo vai correndo,

Fugindo a grã pressa.

Nesta mão, e nessa

O falso se atreve,

Que hum real me deve.


Comprou-me o amor,

Sem lhe fazer preço:

Eu não lhe mereço

Dar-me desfavor.

Dá-me tanta dor,

Que ando apos elle

Pelo que me deve.


Eu de cá bradando,

Elle vai fugindo;

Elle sempre rindo,

Eu sempre chorando.

E de quando em quando

No amor se atreve,

Como que não deve.


A fallar verdade

Elle ja pagou;

Mas ainda ficou

Devendo ametade.

Minha liberdade

He a que me deve:

Só nella se atreve.


– oOo —

MOTE

Dó la mi ventura,

Que no veo alguna?


Voltas

Sepa quien padece,

Que en la sepultura

Se esconde ventura

De quien la merece.

Allá me parece,

Que quiere fortuna

Que yo halle alguna.


Naciendo mesquino,

Dolor fué mi cama;

Tristeza fué el ama,

Cuidado el padrino.

Vestióse el destino

Negra vestidura,

Huyó la ventura.


No se halló tormento,

Que alli no se hallase;

Ni bien, que pasase,

Sinó como viento.

Oh qué nacimiento,

Que luego en la cuna

Me siguió fortuna!


Esta dicha mia,

Que siempre busqué,

Buscándola, hallé

Que no la hallaria;

Que quien nace en dia

D'estrella tan dura,

Nunca halla ventura.


No puso mi estrella

Mas ventura em min:

Ansí vive en fin

Quien nace sin ella.

No me quejo della;

Quéjome que atura

Vida tan escura.


– oOo —

MOTE

Vida de minha alma.


Volta

Dous tormentos vejo

Grandes por extremo:

Se vos vejo, temo,

E se não, desejo.

Quando me despejo,

E venho a escolher,

Temendo o desejo,

Desejo temer.


– oOo —

CANTIGA ALHEIA

Pastora da serra,

Da serra da Estrella,

Perco-me por ella.


Voltas

Nos seus olhos bellos

Tanto Amor se atreve,

Que abraza entre a neve

Quantos ousão vellos.

Não sólta os cabellos

Aurora mais bella:

Perco-me por ella.


Não teve esta serra

No meio d'altura

Mais que a formosura,

Que nella se encerra.

Bem ceo fica a terra,

Que tẽe tal estrella:

Perco-me por ella.


Sendo entre pastores

Causa de mil males,

Não se ouvem nos vales

Senão seus louvores.

Eu só por amores

Não sei fallar nella,

Sei morrer por ella.


D'alguns, que sentindo

Seu mal vão mostrando.

Se ri, não cuidando

Qu'inda paga rindo.

Eu triste, encobrindo

Só meus males della,

Perco-me por ella.


Se flores deseja

Por ventura bellas,

Das que colhe dellas

Mil morrem d'inveja.

Não ha quem não veja

Todo o melhor nella:

Perco-me por ella.


Se n'ágoa corrente

Seus olhos inclina,

Faz a luz divina

Parar a corrente.

Tal se vê, que sente

Por ver-se a ágoa nella:

Perco-me por ella.


– oOo —

ENDECHAS

Vós sois huma Dama

Das feias do mundo;

De toda a má fama

Sois cabo profundo.


A vossa figura

Não he para ver;

Em vosso poder

Não ha formosura.


Vós fostes dotada

De toda a maldade;

Perfeita beldade

De vós he tirada.


Sois muito acabada

De taixa e de glosa:

Pois quanto a formosa,

Em vós não ha nada.


Do grão merecer

Sois bem apartada;

Andais alongada

Do bem parecer.


Bem claro mostrais

Em vós fealdade:

Não ha hi maldade,

Que não precedais.


De fresco carão

Vos vejo ausente;

Em vós he presente

A má condição.


De ter perfeição

Mui alheia estais;

Mui muito alcançais

De pouca razão.


– oOo —

ENDECHAS

Vai o bem fugindo,

Cresce o mal co'os annos,

Vão-se descubrindo

Co'o tempo os enganos.


Amor e alegria.

Menos tempo dura.

Triste de quem fia

Nos bens da ventura!


Bem sem fundamento

Tẽe certa a mudança,

Certo o sentimento

Na dor da lembrança.


Quem vive contente,

Viva receoso:

Mal que se não sente,

He mais perigoso.


Quem males sentio,

Saiba ja temer;

E pelo que vio

Julgue o qu'ha de ser.


Alegre vivia,

Triste vivo agora;

Chora a alma de dia,

E de noite chora.


Confesso os enganos

De meu pensamento:

Bem de tantos annos

Foi-se n'hum momento.


Meus olhos, que vistes?

Pois vos atrevestes,

Chorae, olhos tristes,

O bem que perdestes.


A luz do sol pura

Só a vós se negue;

Seja noite escura,

Nunca a manhãa chegue.


O campo floreça,

Murmurem as ágoas,

Tudo me entristeça,

Cresção minhas mágoas.


Quizera mostrar

O mal que padeço;

Não lhe dá lugar

Quem lhe deu comêço.


Em tristes cuidados

Passo a triste vida;

Cuidados cansados,

Vida aborrecida.


Nunca pude crer

O que agora creio:

Cegou-me o prazer

Do mal que me veio.


Ah ventura minha,

Como me negaste!

Hum so bem que tinha,

Porque mo roubaste?


Triste fantasia

Quanta cousa guarda!

Quem ja visse o dia,

Que tanto lhe tarda!


Nesta vida cega

Nada permanece;

O qu'inda não chega,

Ja desaparece.


Qualquer esperança

Foge como o vento:

Tudo faz mudança,

Salvo meu tormento.


Amor cego e triste,

Quem o tẽe padece:

Mal quem lhe resiste!

Mal quem lhe obedece!


No meu mal esquivo

Sei como Amor trata:

E pois nelle vivo,

Nenhum amor mata.


1

Este Labyrintho, onde ninguem se entende, não parece obra do poeta. Nelle não fazemos emenda alguma, porque a unica judiciosa seria passar-lhe um traço por cima: o que não ousamos fazer por andar em todas as edições.

Nota dos editores.

Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III

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