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CAPITULO XIII Um salto

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Unamos agora os pés e demos um salto por cima da eschola, a enfadonha eschola, onde aprendi a ler, escrever, contar, dar cacholetas, apanhal-as, e ir fazer diabruras, ora nos morros, ora nas praias, onde quer que fosse propicio a ociosos.

Tinha amarguras esse tempo; tinha os ralhos, os castigos, as lições arduas e longas, e pouco mais, mui pouco e mui leve. Só era pesada a palmatoria, e ainda assim... Ó palmatoria, terror dos meus dias pueris, tu que foste o compelle intrare com que um velho mestre, ossudo e calvo, me incutiu no cerebro o alphabeto, a prosodia, a syntaxe, e o mais que elle sabia, benta palmatoria, tão praguejada dos modernos, quem me dera ter ficado sob o teu jugo, com a minha alma imberbe, as minhas ignorancias, e o meu espadim, aquelle espadim de 1814, tão superior á espada de Napoleão! Que querias tu, afinal, meu velho mestre de primeiras lettras? Lição de cór e compostura na aula; nada mais, nada menos do que quer a vida, que é a mestra das ultimas lettras; com a differenca que tu, se me mettias medo, nunca me metteste zanga. Vejo-te ainda agora entrar na sala, com as tuas chinellas de couro branco, capote, lenço na mão, calva á mostra, barba rapada; vejo-te sentar, bufar, grunhir, absorver uma pitada inicial, e chamar-nos depois á lição. E fizeste isto durante vinte e tres annos, calado, obscuro, pontual, mettido n'uma casinha da rua do Piolho, sem enfadar o mundo com a tua mediocridade, até que um dia déste o grande mergulho nas trevas, e ninguem te chorou, salvo um preto velho,—ninguem, nem eu, que te devo os rudimentos da escripta.

Chamava-se Ludgero o mestre; quero escrever-lhe o nome todo nesta pagina: Ludgero Barata,—um nome funesto, que servia aos meninos de eterno mote a chufas. Um de nós, o Quincas Borba, esse então era cruel com o pobre homem. Duas, tres vezes por semana, havia de lhe deixar na algibeira das calças,—umas largas calças de enfiar—, ou na gaveta da mesa, ou ao pé do tinteiro, uma barata morta. Se elle a encontrava ainda nas horas da aula, dava um pulo, circulava os olhos chammejantes, dizia-nos os ultimos nomes; eramos sevandijas, capadocios, mal criados, moleques.—Uns tremiam, outros rosnavam; o Quincas Borba, porém, deixava-se estar quieto, com os olhos espetados no ar.

Uma flôr, o Quincas Borba. Nunca em minha infancia, nunca em toda a minha vida, achei um menino mais gracioso, inventivo e travesso. Era a flôr, e não já da eschola, senão de toda a cidade. A mãe, viuva, com alguma cousa de seu, adorava o filho e trazia-o amimado, aceiado, enfeitado, com um vistoso pagem atraz, um pagem que nos deixava gazear a eschola, ir caçar ninhos de passaros, ou perseguir lagartixas no morro do Livramento e da Conceição, ou simplesmente arruar, á toa, como dous peraltas sem emprego. E de imperador! Era um gosto ver o Quincas Borba fazer de imperador nas festas do Espirito Santo. De resto, nos nossos jogos pueris, elle escolhia sempre um papel de rei, ministro, general, uma supremacia, qualquer que fosse. Tinha garbo o traquinas, e gravidade, certa magnificencia nas attitudes, nos meneios. Quem diria que... Suspendamos a penna; não adeantemos os successos. Fujamos sobretudo desse passado tão remoto, tão coberto, ai de mim! de cruzes funebres. Vamos do um salto a 1822, data da nossa independencia politica, e do meu primeiro captiveiro pessoal.

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