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CAPITULO XIV O primeiro beijo

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Tinha dezesete annos; pungia-me um buçosinho que eu forcejava por trazer a bigode. Os olhos, vivos e resolutos, eram a minha feição verdadeiramente mascula. Como ostentasse certa arrogancia, não se distinguia bem se era uma criança com fumos de homem, se um homem com ares de menino. Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um corsel nervoso, rijo, veloz, como o corsel das antigas balladas, que o romantismo foi buscar ao castello medieval, para dar com elle nas ruas do nosso seculo. O peor é que o estafaram a tal ponto, que foi preciso deital-o á margem, onde o realismo o veiu achar, comido de lazeira e vermes, e, por compaixão, o transportou para os seus livros.

Sim, eu era esse garção bonito, airoso, abastado; e facilmente se imagina que mais de uma dama inclinou deante de mim a fronte pensativa, ou levantou para mim os olhos cobiçosos. De todas porém a que me captivou logo foi um ... uma ... não sei se diga; este livro é casto, ao menos na intenção; na intenção é castissimo. Mas vá lá; ou se ha de dizer tudo ou nada. A que me captivou foi uma dama hespanhola, Marcella, a «linda Marcella», como lhe chamavam os rapazes do tempo. E tinham razão os rapazes. Era filha de um hortelão das Asturias; disse-m'o ella mesma, n'um dia de sinceridade, porque a opinião aceita é que nascera de um lettrado de Madrid, victima da invasão franceza, ferido, encarcerado, espingardeado, quando ella tinha apenas doze annos. Cosas de España. Quem quer que fosse, porém, o pae, lettrado ou hortelão, a verdade é que Marcella não possuia a innocencia rustica, e mal chegava a entender a moral do codigo. Era boa moça, lepida, sem escrupulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que lhe não permittia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas; luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes. Naquelle anno, morria ella de amores por um certo Xavier, sujeito abastado e tisico,—uma perola.

Vi-a, pela primeira vez, no Rocio Grande, na noite das luminarias, logo que constou a declaração da independencia, uma festa de primavera, um amanhecer da alma publica. Eramos dous rapazes, o povo e eu; vinhamos da infancia, com todos os arrebatamentos da juventude. Vi-a sahir de uma cadeirinha, airosa e vistosa, um corpo esbelto, ondulante, um desgarre, alguma cousa que nunca achara nas mulheres puras. —Segue-me, disse ella ao pagem. E eu segui-a, tão pagem como o outro, como se a ordem me fosse dada, deixei-me ir namorado, vibrante, cheio das primeiras auroras. A meio caminho, chamaram-lhe «linda Marcella», lembrou-me que ouvira tal nome a meu tio João, e fiquei, confesso que fiquei tonto.

Tres dias depois perguntou-me meu tio, em segredo, se queria ir a uma ceia de moças, nos Cajueiros. Fomos; era em casa de Marcella. O Xavier, com todos os seus tuberculos, presidia ao banquete nocturno, em que eu pouco ou nada comi, porque só tinha olhos para a dona da casa. Que gentil que ella estava a hespanhola! Havia mais uma meia duzia de mulheres,—todas de partido—, e bonitas, cheias de graça, mas a hespanhola... O enthusiasmo, alguns goles de vinho, o genio imperioso, estouvado, tudo isso me levou a fazer uma cousa unica; á sahida, á porta da rua, disse a meu tio que esperasse um instante, e tornei a subir as escadas.

—Esqueceu alguma cousa? perguntou Marcella de pé, no patamar.

—O lenço.

Ella ia abrir-me caminho para tornar á sala; eu segurei-lhe nas mãos, puxei-a para mim, e dei-lhe um beijo. Não sei se ella disse alguma cousa, se gritou, se chamou alguem; não sei nada; sei que desci outra vez as escadas, veloz como um tufão, e incerto como um ebrio.

Memorias Posthumas de Braz Cubas

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