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CAPITULO XV Marcella
ОглавлениеGastei trinta dias para ir do Rocio Grande ao coração de Marcella, não já cavalgando o corsel do cégo desejo, mas o asno da paciencia, a um tempo manhoso e teimoso. Que, na verdade, ha dous meios de grangear a vontade das mulheres: o violento, como o touro de Europa, e o insinuativo, como o cysne de Leda e a chuva de ouro de Danae, tres inventos do padre Zeus, que, por estarem fóra da moda, ahi ficam trocados no cavallo e no asno. Não direi as traças que urdi, nem as pitas, nem as alternativas de confiança e temor, nem as esperas baldadas, nem nenhuma outra dessas cousas preliminares. Affirmo-lhes que o asno foi digno do corsel,—um asno de Sancho, deveras philosopho, que me levou á casa della, no fim do citado periodo; apeei-me, bati-lhe na anca e mandei-o pastar.
Primeira commoção da minha juventude, que doce que me foste! Tal devia ser, na creação biblica, o effeito do primeiro sol. Imagina tu esse effeito do primeiro sol, a bater de chapa na face de um mundo em flor. Pois foi a mesma cousa, leitor amigo, e se alguma vez contaste dezoito annos, deves lembrar-te que foi assim mesmo.
Teve duas phases a nossa paixão, ou ligação, ou qualquer outro nome, que eu de nomes não curo; teve a phase consular e a phase imperial. Na primeira, que foi curta, regemos o Xavier e eu, sem que elle jamais acreditasse dividir commigo o governo de Roma; mas, quando a credulidade não pôde resistir á evidencia, o Xavier depoz as insignias, e eu concentrei todos os poderes na minha mão; foi a phase cesariana. Era meu o universo; mas, ai triste! não o era de graça. Foi-me preciso colligir dinheiro, multiplical-o, invental-o. Primeiro explorei as larguezas de meu pae; elle dava-me tudo o que eu lhe pedia, sem reprehensão, sem demora, sem frieza; dizia a todos que eu era rapaz e que elle o fora tambem. Mas a tal extremo chegou o abuso, que elle restringiu um pouco as franquezas, depois mais, depois mais. Então recorri a minha mãe, e induzi-a a desviar alguma cousa, que me dava ás escondidas. Era pouco; lancei mão de um recurso ultimo: entrei a saccar sobre a herança de meu pae, a assignar obrigações, que devia resgatar um dia com usura.
—Na verdade, dizia-me Marcella, quando eu lhe levava alguma seda, alguma joia; na verdade, você quer brigar commigo... Pois isto é cousa que se faça... um presente tão caro...
E, se era joia, dizia isto a contemplal-a entre os dedos, a procurar melhor luz, a ensaial-a em si, e a rir, e a beijar-me com uma reincidencia impetuosa e sincera; mas, protestando, derramava-se-lhe a felicidade dos olhos, e eu sentia-me feliz com vêl-a assim. Gostava muito das nossas antigas dobras de ouro, e eu levava-lhe quantas podia obter; Marcella juntava-as todas dentro de uma caixinha de ferro, cuja chave ninguem nunca jámais soube onde ficava; escondia-a por medo dos escravos. A casa em que morava, nos Cajueiros, era propria. Eram solidos e bons os moveis, de jacarandá lavrado, e todas as demais alfaias, espelhos, jarras, baixella,—uma linda baixella da India, que lhe doára um desembargador. Baixella do diabo, deste-me grandes repellões aos nervos. Disse-o muita vez á própria dona; não lhe dissimulava o tedio que me faziam esses e outros despojos dos seus amores de antanho. Ella ouvia-me e ria, com uma expressão candida,—candida e outra cousa, que eu nesse tempo não entendia bem; mas agora, relembrando o caso, penso que era um riso mixto, como devia ter a creatura que nascesse, por exemplo, de uma bruxa de Shakespeare com um seraphim de Klopstock. Não sei se me explico. E porque tinha noticia dos meus zelos tardios, parece que gostava de os açular mais. Assim foi que um dia, como eu lhe não pudesse dar certo collar, que ella vira n'um joalheiro, retorquiu-me que era um simples gracejo, que o nosso amor não precisava de tão vulgar estimulo.
—Não lhe perdôo, se você fizer de mim essa triste idéa, concluiu ameaçando-me com o dedo.
E logo, subita como um passarinho, espalmou as mãos, cingiu-me com ellas o rosto, puxou-me a si e fez um tregeito gracioso, um momo de criança. Depois, reclinada na marqueza, continuou a fallar daquillo, com simplicidade e franqueza. Jámais consentiria que lhe comprassem os affectos. Vendera muita vez as apparencias, mas a realidade, guardava-a para poucos. O Duarte, por exemplo, o alferes Duarte, que ella amára devéras, dous annos antes, só a custo conseguia dar-lhe alguma cousa de valor, como me acontecia a mim; ella só lhe aceitava sem reluctancia os mimos de escasso preço, como a cruz de ouro, que lhe deu, uma vez, de festas.
—Esta cruz...
Dizia isto, mettendo a mão no seio e tirando uma cruz fina, de ouro, presa a uma fita azul e pendurada ao collo.
—Mas essa cruz, observei eu, não me disseste que era teu pae que...
Marcella abanou a cabeça com um ar de lastima:
—Não percebeste que era mentira, que eu dizia isso para te não molestar? Vem cá, chiquito, não sejas assim desconfiado commigo... Amei a outro; que importa, se acabou? Um dia, quando nos separarmos...
—Não digas isso! bradei eu.
—Tudo cessa! Um dia...
Não pôde acabar; um soluço estrangulou-lhe a voz; estendeu as mãos, tomou das minhas, conchegou-me ao seio, e sussurrou-me baixo ao ouvido:—Nunca, nunca, meu amor! Eu agradeci-lh'o com os olhos humidos. No dia seguinte levei-lhe o collar que havia recusado.
—Para te lembrares de mim, quando nos separarmos, disse eu.
Marcella teve primeiro um silencio indignado; depois fez um gesto magnifico: tentou atirar o collar á rua. Eu retive-lhe o braço; pedi-lhe muito que não me fizesse tal desfeita, que ficasse com a joia. Sorriu e ficou.
Entretanto, pagava-me á farta os sacrificios; espreitava os meus mais reconditos pensamentos; não havia desejo a que não acudisse com alma, sem esforço, por uma especie de lei da consciencia e necessidade do coração. Nunca o desejo era razoavel, mas um capricho puro, uma criancice, vel-a trajar de certo modo, com taes e taes enfeites, este vestido e não aquelle, ir a passeio ou outra cousa assim, e ella cedia a tudo, risonha e palreira.
—Você é das Arabias, dizia-me.
E ia pôr o vestido, a renda, os brincos, com uma obediencia de encantar.