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INTRODUÇÃO

O opressor tem que ser libertado tanto quanto o oprimido. Um homem que tira a liberdade de outro homem é um prisioneiro do ódio, está preso atrás das grades do preconceito e da pobreza de espírito. Ser livre não significa apenas se livrar de suas algemas, mas sim viver de uma maneira que respeite e reforce a liberdade dos outros (MANDELA, 2012, citação no Prefácio).

Ao introduzirmos os diversos pensamentos implicados nesta escrita, revelamos que o pensamento não está envolvido na separação mente-corpo, indivíduo-sociedade. A subjetividade se entrelaça com a objetividade. Esse posicionamento baseado no pensamento dialético possibilita reunir o sistema político, social, econômico e psíquico, que se enredam produzindo movimento, bem como possibilita buscar modificação mútua no inter-relacional e no interior de cada um.

O histórico social faz ancoragem na vida psíquica humana, no seu modo de pensar e agir. Necessidades podem ser manipuladas pela linguagem e, segundo os interesses do sistema vigente, estão carregadas de significados, com seus valores transmissores de ideias e intenções de determinada ordem social. Estamos muito distantes da natureza baseada na subsistência. Comunidades indígenas e quilombolas estabelecem uma relação mais integrada e respeitosa com a terra, pautada na lógica coletiva, numa prática comunitária com base na subsistência. Nós vivemos desenraizados, numa sociedade do cansaço, priorizando ter a posse e o poder sobre a terra, e não afirmamos que somos pertencentes da terra.

[...] As enfermidades psíquicas são a consequência do caos sexual da sociedade. Durante milhares de anos, esse caos tem tido a função de sujeitar psiquicamente o homem às condições dominantes de existência e de interiorizar a dinâmica externa da vida. Tem ajudado a efetuar a ancoragem psíquica de uma civilização mecanizada e autoritária, tornando o homem incapaz de agir independentemente (REICH, 1975, p. 14).

Nossa sensopercepção vem do próprio corpo e do encontro com o corpo do outro. Informações como emoções, sentimentos e razão possuem sede localizada em áreas determinadas do cérebro, como o córtex, a amígdala e o hipocampo. São regiões importantes do sistema límbico que se interligam e são responsáveis pelo processamento das emoções e memória, e que interagem com as dinâmicas sociais complexas e o raciocínio lógico. No entanto, aprendemos em nossa cultura desde cedo a separar a razão da emoção, como se elas fossem incompatíveis, isolando o social do indivíduo. Não são apenas nossas experiências cinestésicas (aquelas ligadas à memória corporal) que nos levam à consciência de quem somos, mas também a linguagem verbal, as anedotas, os gestos, as reações. Todos são elementos que contribuem para delimitar o corpo num determinado comportamento. Essas reflexões são analisadas no livro Silvia Lane (LANE; COELHO; LIMA; SAWAIA, 2018, p. 21-24).

As justificativas falaciosas do sistema colonizador usaram do conceito de inferioridade para separar negros e nativos (emocionais) do branco (racionais) e para implantar a dominação. No mínimo, houve uma concepção do indígena como primitivo e ingênuo e do negro como inferior e submisso, em oposição ao branco como superior, dotado de razão, intelectualidade e beleza.

Não somos opostos e nem deveríamos ser hierarquizados racialmente. As singularidades são fonte de enriquecimento. A grandeza da natureza e da sobrevivência está na diversidade e na sua interação. Segundo a maioria dos cientistas, a hipótese sobre a origem da existência humana tem um único lugar, o continente africano, posteriormente migrando para outros continentes. Outros sustentam a ideia de que a evolução ocorreu em regiões separadas. Entretanto, acompanhamos a pesquisa do Dr. Yuval Noah Harari, doutor em história, em seu best-seller Sapiens – uma breve história da humanidade, no qual apresenta a seguinte cronologia:

2,5 milhões - Evolução do gênero Homo na África. Primeiras ferramentas de pedra.

2 milhões – Humanos se espalham na África para a Eurásia. Evolução de diferentes espécies humanas.

500 mil – Surgem os neandertais na Europa e no Oriente Médio.

300 mil – Uso cotidiano do fogo.

200 mil – surge o Homo sapiens na África Oriental.

70 mil – Revolução Cognitiva. Surge a linguagem ficcional. Começo da história. Os sapiens se espalham a partir da África (HARARI, 2016, p. 7).

Na escravidão, na intenção de “domesticar”, os corpos negros, assim como ocorreu com os povos originários, passaram a se tornar mercadoria produtiva. Destituído de sua humanidade, seu corpo humano sofreu as consequências da violência traumática imposta por séculos, gerando reações emocionais e ações defensivas de sobrevivência.

O mito da democracia racial no Brasil, de um povo conhecido e admirado por sua (suposta) cordialidade entre “os diferentes”, vem caindo por terra. O véu que encobria o preconceito e a discriminação em nossa sociedade vem sendo desvendado nos últimos tempos. A fúria do pensamento racista, as ideias destrutivas da homofobia e o desprezo por mulheres e indígenas saíram do fosso, da lama em que se escondiam, pois continuamos como nas guerras das conquistas, atuando por meio da violência e da manifestação de poder.

Como ideologia, a formação da sociedade brasileira foi construída na oposição e na singularidade mediante uma diferença hierarquizada, além da utilização da violência como um marcador de controle, o que é reproduzido até os dias atuais. A sociedade relacional e institucional brasileira foi moldada nesse pensamento de segregação e se comporta conforme essa condição.

Portanto, essa história não diz respeito apenas aos negros e aos indígenas, como muitos pensam. Não há unilateralidade. O racismo segrega, desmembra o corpo negro na tentativa de ele negar a si mesmo. Dita espaços que privilegiam grupos e, com isso, eleva a desigualdade social e econômica, reproduz a hierarquia racial e limita oportunidades, sem haver possibilidade de mudança. Resulta ser necessário negros e brancos brasileiros lidarem com esse desconforto no plano político e na posição subjetiva, encararem a realidade do passado e seus modos atuais. Não foram apenas os antepassados de mercadores e de escravizados que viveram diretamente essa realidade; nós todos somos impactados e implicados quando reproduzimos esse comportamento, crivando nosso olhar para o negro na condição de inferiorizado e para o branco na condição de superioridade e poder.

É um desafio denunciar o racismo, pois muitos não desejam a mudança com relação a esse fato. No entanto, como afirma Stengel a partir do pensamento de Nelson Mandela:

Ninguém nasce preconceituoso ou racista. Nenhum homem, ele sugere, é mal no coração. O mal é algo instalado ou ensinado aos homens pelas circunstâncias, pelo meio ambiente ou pela formação. Não é inato. O apartheid tornou os homens maus; o mal não criou o apartheid (STENGEL, 2010, p. 79).

Atualmente é notório que as pessoas negras vivem uma sensível melhora socioeconômica, assumindo mais seu protagonismo. No entanto, essa ainda não é uma condição da maioria. Mesmo assim, elas têm procurado ajuda pessoal para tratar da sua subjetividade frente ao racismo. A maioria das pessoas brancas não trabalha essa temática racial; o corpo permanece refratário, sem expressão verbal de uma possível angústia. Experienciam uma vida cotidiana privilegiada, tão naturalizada muitas vezes, sem a consciência das relações hierarquizadas racialmente, que elas, como brancos, não se dão conta de que fazem parte do processo como raça branca.

Essa questão está fora dos consultórios, dos debates e das agendas públicas institucionais e privadas majoritariamente, por uma série de motivos. Um deles seria a negação e o medo de os brancos não quererem se deparar com a realidade, mantendo seus privilégios, acomodados dentro de uma bolha narcísica, cegando a visão, não querendo perceber e responsabilizar-se pelas consequências dessa condição social privilegiada.

Nesta escrita, uma das preocupações e objetivos ao tratar das relações raciais é como tocar o coração das pessoas e sensibilizar os profissionais. Tentar não cair na armadilha da vítima; buscar falar e não soar repetitiva para alguns; encontrar um lugar humanizado em que o leitor possa se impactar. Trataremos de um tema silenciado e dramático, desconfortável para alguns, alvo constante de desqualificação para outros, porém necessário, pois o racismo como violência toma formas diversas, atualizando-se dentro da sua época e lugar, nos mais diversos ambientes e regiões no mundo.

Na questão racial, é necessário libertar o corpo do sofrimento e tensão. A dominação expressa o desejo de controle, infantilizando esse corpo na dependência e subjugação, conduzindo à humilhação e ao sentimento de vergonha. A autonomia e a libertação passam pelo resgate corporal em toda sua forma de comunicação, tratando dessa ferida que sangra, resgatando a leveza.

No corpo do ativista/militante, nas mais diversas áreas de atuação, incansável na luta por equidade, o sofrimento é sinalizado intensamente frente à experiência e à consciência da injustiça, bem como pela falta do autocuidado, pelo manejo interno e solitário dos afetos e pela proximidade do tema na vida pessoal. É importante trazer para reflexão no ambiente ativista que “o pessoal realmente é político” (BARRY; DJORDEVIC, 2007, p. 5). Dar prioridade para a consciência e expressão emocional e espiritual, incluí-lo faz parte do resgate da autoestima e da resistência na luta política.

Nota-se que o corpo precisa endurecer-se defensivamente e, contraditoriamente, irá fragilizar-se. Navegar as emoções torna-se arenoso, denso, tenso, diante de tamanha carga. A autonomia e a libertação passam pela necessidade de flexibilização corporal como forma de lidar com as defesas psíquicas. O racismo restringe, fixa os movimentos do corpo. Será necessário resgatar a vida que foi aprisionada. O psicoterapeuta precisa estar atento a esse cuidado na relação.

Trazemos o trabalho corporal ligado à tomada de consciência da realidade social para promover um corpo transgressor, ativo, a fim de resgatar sua humanidade para além da cor da sua epiderme, de um corpo ainda sequestrado. E acredito que, fazendo o caminho do músculo até o córtex cerebral por meio desses recursos, poderemos promover o movimento espontâneo, fluído, e assim, trilhar um caminho possível de libertação. Entretanto, não há prazer sem consciência. O prazer como sensação de bem-estar e plenitude sem consciência é um descuido, nos sujeita à vulnerabilidade e à manipulação. Nossas decisões deveriam estar alinhadas às necessidades internas, do contrário, serão governadas pelo imediatismo, a impulsividade. Caminhos que levam a autonomia e independência estão fundados no conhecimento da realidade, na ciência da forma como se apresentam.

Apresentadas essas condições, é importante frisar que a solidão se intensifica no silêncio. Um velho desafio se apresenta: “Lutar na vida e enfrentar a si mesmo”. Como estratégia, o Grupo Ponto de Encontro, de que tratarei especificamente mais adiante, surgiu em março de 2015, em São Paulo, com a proposta de propiciar um espaço de conversa, troca de ideias e reflexões sobre a experiência de cada um em relação à negritude, visando melhor fortalecimento da identidade, dialogando com os conceitos e técnicas da Bioenergética e da Biossíntese. É uma proposta política e subjetiva, espaço e lugar de fala.

Na possibilidade de libertar o corpo negro de uma condenação que vem se estendendo por tempos e tempos, encontramos como referencial teórico e técnico o pensamento reichiano, no qual são consideradas as manifestações físicas frente às experiências de dor. Por meio da observação da respiração, Reich percebeu que, para suportar situações dolorosas, defensivamente desenvolvemos uma resistência, nomeada como armadura ou couraça muscular. No entanto, paradoxalmente ela pode exercer efeitos paralelos ao desejado nas relações, comprometendo a espontaneidade. Essas diversas defesas receberão classificações designadas como traços de caráter, e cada qual singularmente apresentará características energéticas corporais que se apresentam no modo de pensar, sentir e agir.

Esse conceito se amplia com novas possibilidades de intervenção corporal através da Análise Bioenergética de Alexander Lowen. Com técnicas e exercícios baseados no grounding, busca-se a expressão emocional; com a respiração ampliada, restabelecer o movimento do corpo; e com a vibração, atingir a espontaneidade. Da Biossíntese de David Boadella, utilizam-se os conceitos de grounding, centering e facing, que se associam aos três processos formativos embrionários - respectivamente, mesoderma, endoderma e ectoderma -, possibilitando compreender, dentro desse complexo campo organizacional humano, a sua experiência existencial. Revela-se em Boadella seu pensamento sistêmico, no qual o homem encontra-se em processo constante com a natureza, com suas significações e transcendência, principalmente a espiritualidade.

Compreendemos o racismo como uma vivência traumática. No referencial teórico, trazemos o psiquismo nas significações do corpo negro através de Frantz Omar Fanon (1925-1961), nascido na Ilha da Martinica, psiquiatra, filósofo, que trabalhou o tema da psicopatologia da colonização. Ele apresenta o pensamento de que a construção da noção de negro vem de fora da África. Nos países desse continente, não haveria razão para tal reflexão. Essa noção foi construída num determinado contexto social, enunciada em ideais que pudessem justificar o tráfico negreiro como modo de dominação e o racismo. Denuncia que o racismo rompe a relação dialética entre o Eu e o Outro e, como consequência, ocorre que quase tudo é permitido contra as pessoas negras.

Nessa condição, Fanon (2008, p. 26) dirá “[...] que o negro não é um homem. Há uma zona de não-ser [...]”. Ele foi sendo desenraizado, condenado, alojado na condição de que “[...] o negro é um homem negro” (2008, p. 26) ou seja, retirado do sentido de humanidade, constituído na ideia de inferioridade e na negação da sua cor negra, e sendo conduzido à neurose e à melancolia na modernidade, configurando uma perda de não poder ser o que ou quem é. O branco prefere ter uma imagem de si como não racista, mas tendo uma atitude oposta, e o negro olha sem se ver ou buscando um reflexo branco, comprometendo sua formação como sujeito.

Narciso. Narciso tornou-se uma metáfora para alguém que se vê a si e o seu próprio corpo, como os objetos de amor.

Narcisismo, narcisismo é o amor direcionado à imagem de si próprio; a excessiva admiração pela própria aparência; e a incapacidade de amar ou reconhecer outros, como objetos de amor.

Narcisista, narcisista é esta sociedade branca patriarcal na qual todos nós vivemos, que é fixada em si própria e na reprodução de sua própria imagem, tornando todos os outros invisíveis.

Eu, eu estou rodeada de imagens que não espelham o meu corpo. Imagens de corpos brancos, com sorrisos perfeitos, sempre a olharem-se a si próprios, e a reproduzirem a sua imagem como o objeto ideal de amor.

[....] Como Fanon escreveu: ‘Tanta brancura, que me queima...’

[....] Neste narcisismo, pessoas marginalizadas dificilmente encontram imagens, símbolos ou vocabulário para narrar a sua própria história, ou para nomear o seu próprio trauma (KILOMBA, 2019a, p. 13-16).

Nessa mesma linha relativa à vivência traumática, a referência teórica se apresenta na tese defendida pela Dra. Joy Angela DeGruy, estadunidense, bacharel em Comunicação, doutora em Serviço Social e mestre em Psicologia Clínica. Ela argumenta que a devastação da escravidão, na longa extensão de tempo, desenvolveu uma lesão duradoura que surge como dor psíquica e tem forte impacto em nossa alma. Trouxe consequências psicossociais para os descendentes dos escravizados e para os descendentes dos escravizadores. Há um impacto multifacetado da escravidão na vida do negro, como nos relacionamos com o mundo e com os outros. Esses ciclos de opressão deixam cicatrizes em nós mesmos e na psique coletiva, sendo transmitidos de geração em geração, roubando nossa humanidade. Aborda a questão assim:

Pois quem pode ser verdadeiramente humano sob o peso da opressão que os condena a uma vida de tormento, rouba-os de um futuro e consome seu livre arbítrio? Além disso, quem pode se tornar verdadeiramente humano quando ganha tanto com a dor e o sofrimento daqueles a quem oprimem e/ou se aproveitam? (DEGRUY, 2017, p. IV, Prólogo, tradução minha)7.

A autora relata que, apesar da violência vivida, os descendentes tendem a suavizar a memória. Para ela, estamos perigosamente mal-informados e deveríamos estudar com rigor a história e suas consequências, pois reside nesse espaço a esperança de um presente mais saudável e autoafirmativo. Como ilustração, introduz na reflexão o símbolo africano Sankofa, de um conjunto de ideogramas chamados Adinkra, que significa Volte e Pegue (san – voltar / retornar, ko – ir e fa – olhar, buscar e pegar). Acredita que devemos olhar e afirmar o passado, avançando em direção ao nosso futuro através da compreensão de quem nós éramos, acolhendo esse lugar. Defende seu pensamento com a pesquisa epigenética, considerando o quanto o meio ambiente pode influenciar na nossa genética e como os corpos podem alojar memórias do passado. Examina as características do trauma e as manifestações dos sintomas usando critérios de diagnóstico atual – Diagnostic Criteria for Post traumatic Stress Disorder – PTSD (DEGRUY, 2017, p. 98-99). Pessoas sob exposições consideradas traumáticas, diante da experiência repetida diretamente, apresentam quadros comuns a episódios vivenciados pelos negros da diáspora africana durante séculos de tortura, como ameaças de morte, de violência sexual, como também ao serem testemunhas pessoais da violência cometida.

Nessa violência traumática, como se tornar negro diante desse tsunami colonizador que se desloca por territórios, formando ondas gigantescas e provocando catástrofes diante da força da sua amplitude? Buscamos o pensamento da brasileira, baiana, psiquiatra, pesquisadora e psicanalista Neusa Santos Souza. No livro Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social, ela traz um olhar fundamental sobre a experiência de ser negro numa sociedade branca, na “[...] tentativa de elaborar um gênero de conhecimento que viabilize a construção de um discurso do negro sobre o negro, no que tange a emocionalidade” (SOUZA, 1983, p. 17). No prefácio a essa obra de Neusa Santos Souza, o psicanalista Jurandir Freire Costa diz que a autora denuncia o racismo como violência em três pontos: 1. tenta destruir a identidade do sujeito negro, internalizando o ideal do sujeito branco; 2. estabelece, por meio do preconceito de cor, uma relação persecutória do sujeito negro com o corpo; e 3. no estigma da cor, amputa a dimensão do prazer do corpo e perverte o pensamento.

Com as contribuições deste texto, tentamos principalmente desencarcerar esse corpo sequestrado por séculos. Considero uma atitude de dimensão política desconstruir essas amarras alojadas no corpo, que são os efeitos de um ideal colonizador.

De ambos os lados não estamos neutros; estamos todos envolvidos no mesmo enredo. Ao recebermos uma pessoa de cor de pele na qual se evidencia a miscigenação com descendentes do continente africano, nosso imaginário se apresenta; somos atingidos pelos nossos registros internos, pela nossa história pessoal e social. É importante olhar, ter clareza disso e não fugir desse imaginário construído, carregado de preconceitos. O inconsciente dos presentes, cliente e terapeuta / analisando e analista, estará dentro do campo psicoterapêutico. Num país racializado, as dimensões da diversidade, singularidade, especificidade e subjetividade estão memorizadas pelas experiências. O corpo do profissional deveria estar receptivo para qualificar sua escuta, compreendendo o lugar relacional que ocupa a fim de dar abertura e credibilidade ao espaço para que se desvele a presença das experiências perversas das tramas do racismo.

“Decifra-me ou te devoro”, desafio da Esfinge de Tebas: nos relatos verbais, nos gestos, nas atitudes, tentamos decifrar o enigma que devora a identidade, mina as forças e a possibilidade de sucesso daquele que vive a crueldade do racismo. Conhecer a si mesmo para não ser refém de suas emoções e crenças é premissa para libertar-se das armadilhas, do modo de reprodução e das percepções distorcidas em que estamos todos enredados. O racismo está carregado de nuances de sofisticação e perversidade construídas à medida que o tempo passa; ele se atualiza nos mais diversos ambientes, relacionamentos familiares, de amizade e profissionais, reproduzindo a hierarquia de poder, o preconceito e a discriminação.

Na prática clínica, notamos os efeitos psíquicos que atravessam o corpo da pessoa negra frente ao racismo. Na fala, sempre há um lugar de solidão, raiva, exaustão, tensão por estar alerta constantemente, por não saber o que virá no contato com outro, pela dificuldade de compartilhar com as pessoas e de receber credibilidade de colegas de trabalho, amigos em geral, e pelas vivências do cotidiano marcadas por olhares, comportamentos, falas, insinuações. Caso não haja acolhimento dessa narrativa, perde-se o bem mais precioso, o ser humano.

Temos a intenção (por que não?) de ser uma semente que possa ampliar a consciência sobre as entranhas em que estão embasadas a desigualdade social e econômica e a hierarquia racial, tendo como alvo o compromisso clínico dos profissionais por meio da consciência dessa realidade histórico-social e sua repercussão psíquica e corporal. Na transformação do nosso cotidiano, que possamos ser governados pelo amor solidário, pelo senso crítico, pelo conhecimento reflexivo diante de uma cultura que nos transpassa, pelo prazer consciente e pelo contentamento nas mais variadas atividades.

7 “For who can be truly human under the weigt of opression that condemns them to a life of torment, robs them of a future, and saps their free will? Moreover, who can become truly human when they gain so much from the pain and suffering of those whom they opress and/or take advantage of?” (DEGRUY, 2017, p. IV, Prologue).

Olhos negros atravessaram o mar

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