Читать книгу Um conto portuguez: episodio da guerra civil: a Maria da Fonte - Miguel J. T. Mascarenhas - Страница 8

II
RUGIDO

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«Não vêdes, que nos destruiremos a nós, e á nossa Republica, se intentarmos cousas, que não podem ser, porque nos hão-de dar na cabeça todos esses remedios?»

(Vieira--ARTE DE FURTAR.)

Ha palavras, que excitam o espanto dos ouvintes, sem visivel rasão justificativa do enleio: aquellas--«Maria da Fonte»--tiveram esse condão. Interrogado, e interrogantes, entraram silenciosos na casa solar de D. Maria da Gloria, em direcção á sala chamada das visitas, onde estavam os velhos senhores d'ella.

Não seremos exagerados dando o nome de palacio, á nobre e grande habitação, que fazemos aqui figurar. Antes de se chegar á sala de recepção, encontravam-se immensos salões e repartimentos, tudo a desafiar, pela solidez, a acção do tempo, como são quasi todas as antigas edificações portuguezas.

Na sala de visitas, para não desmentir o adagio muito nosso,--«Em Maio florido, ainda ao brasido»--havia lume no fogão. Em cima de uma mesa circular, estava um grande candieiro de metal amarello, com quatro bicos; e postos nas demais mesas, castiçaes de prata, com vélas de cêra: moveis de pau santo, cadeiras de espaldar, com botões de metal e arabêscos esculpidos em sola, e denotando haver sido mudas testimunhas da passagem de algumas gerações.

Nas duas portas, que nos topos da sala se defrontavam, estavam pendentes de fortes lanças reposteiros de grossa baêta encarnada, em que se viam bordadas as armas de familia. Ao lado dos reposteiros, occupando parte da parede, pendiam dous grandes quadros, representando, um d'elles, S. Sebastião, e o outro Santa Isabel, primores de arte do celebre pintor portuguez Affonso Sanches Coelho, que foi protegido pelo snr. principe D. João, pae de El-Rei D. Sebastião, e depois apreciado por Filippe II de Hespanha, onde morreu mui favorecido da côrte.

Na parede fronteira a nove rasgadas janellas, que olhavam para um lindo jardim, e famoso vergel de fructiferas arvores, estavam suspensas de grossos cordões de sêda, de côr verde, as arvores genealogicas dos Mesquitas, Bandeiras, Abendanhos, Souzas, e Mellos; collocados por cima d'ellas, seis antiquissimos retratos de antepassados d'aquelle solar.

Pelas mesas da sala, viam-se espalhados alguns livros, e periodicos da época, merecendo especial menção um alto e largo volume, agasalhado em veludo côr de rosa bordado a ouro, que dava a razão dos nobres appellidos da familia, e, minuciosamente, contava as honras, e mercês a ella concedidas, pelos monarchas, e senhores de Portugal.

Sebastião da Mesquita Bandeira de Mello, pae de D. Maria da Gloria, e verdadeiro representante e possuidor d'aquella casa, era um velho fidalgo portuguez, dos rarissimos que chegaram até nós, sabendo fazer acatar a nobreza de sangue, que é ephemera sem a nobreza da alma. Era alto; direito, apesar dos seus 70 annos; com fartos bigodes; olhos grandes, castanhos-escuros; de olhar suave, que elle sabia, a proposito; tornar imperativo; fronte elevada; cabellos brancos, e ar magestoso.

Affavel em extremo, só era Sebastião da Mesquita, intransigivel, com os desvios da honra. Recebia gentilmente em sua casa todos que n'ella se acolhessem, e mui difficil seria não voltar alli tendo-se lá entrado uma vez. O verdadeiro culto, que prestava á nobreza, levava-o a ser nimiamente sevéro para as fraquezas dos nobres. O que fosse fidalgo, havia de mostral-o mais pelas suas acções do que pela ostentação de seus pergaminhos: era este um dos invariaveis preceitos do velho nobre.

Não se attingiam de repente as sympathias de Sebastião da Mesquita. Tratando a todos--nobres e plebeus--sem odiosas distincções, sabia occultar as preferencias, que talvez sentisse. Ainda assim, sustentava, sempre que se lhe deparava occasião, conversas demoradas e intimas com Arthur Soares, sobrinho do reitor da freguezia, e, só este, no dizer dos analysadores, merecia ao velho fidalgo reservadas prerogativas.

D. Isabel de Abendanho e Sousa, prima e esposa de Sebastião da Mesquita era uma idosa senhora, que deixava ainda entrever alguns traços de belleza, pelo meio das ruinas do tempo, e do soffrimento, com a prematura morte de seus cinco filhos varões. Toda entregue á direcção interna do seu casal, só á noite apparecia na sala das visitas, á hora do chá, servido o qual, as pessoas estranhas á familia da casa, não a viam mais, até á mesma hora do dia seguinte.

Manifestava certo respeito ao marido, muito voluntario que não imposto, e adorava a filha, como unico existente penhor do seu inalteravel affecto ao esposo.

A todas as pessoas apparecia D. Isabel com um mólho de chaves prêso á cintura, o que lhe grangeou o epitheto de--fidalga das chaves--dito pelo povo, á bocca pequena, sem o menor intento de offender a virtuosa e velha fidalga. As chaves, companheiras inseparaveis de D. Isabel, provavam unicamente, vigilancia e cuidado de boa dona de casa, que confia mais em si do que nos melhores criados e familiares; e não diziam, de nenhum modo, avareza, ou mesquinhez. E tanto isto assim era, que o povo igualmente a denominava--chaveira dos pobres,--em grata allusão ás immensas esmolas, que distribuia, e fazia distribuir, pela freguezia; além das que diariamente se davam á porta d'aquella nobre casa, que, n'isto, se assemelhava á portaria d'um convento.

Falta apresentar aos leitores, o cavalheiro que vae acompanhando as tres donzellas.

Arthur Soares, sobrinho do reitor d'aquella freguezia, era homem de 27 annos de idade; sympathico; bem parecido; insinuante; grave; erudito sem affectação; brioso; conveniente em todos os seus dizeres, e procedimentos; sobrio em palavras; vestindo com modesto aceio, e tratando todas as pessoas com respeito e dignidade. Quando mancebo, frequentara eschola de primeiras lettras; e o seu verdadeiro estudo principiou aos quinze annos de idade, e teve logar, sem presidencia de mestres, apenas auxiliado pelos livros de seu thio reitor, e pela sua privilegiada intelligencia, e natural talento.

Era Arthur conhecido em muitas terras de Portugal, e, por todas ellas, a nobreza de sangue lhe mostrava apparente agrado, desdenhando sempre do plebeu, que entendia saber um pouco de tudo, e que dava seus ares de fidalgo orgulhôso. Os capitalistas, os grandes proprietarios, os modernos titulares, todos os homens de fortuna, emfim, olhavam de soslaio para o litterato sem diplomas, que se atrevia a mostrar indifferença pelo dinheiro, o rei do mundo.

Fóra da residencia de seu thio, n'aquella freguezia, só era visto Arthur Soares em casa de Sebastião da Mesquita, seu padrinho de baptismo, que o considerava do modo que já dissemos.

Ao entrarem na sala das visitas, as quatro pessoas que acompanhamos desde o terreiro, ouviram-se badalar as Ave-Marias no campanario da terra, o que logo fez pôr em pé os velhos senhores da casa, dos quaes se aproximaram as donzellas, e Arthur, e todos, com a devida reverencia, resaram em côro a conhecida oração da Santissima Trindade. Acabada a resa, foi D. Maria beijar a mão e a face de sua mãe, e, depois, curvando os joelhos, pediu a benção ao pae, que lhe offereceu a face direita, onde D. Maria depositou um respeitoso osculo.

As duas companheiras de D. Maria, pediram, de mãos postas, a benção aos velhos fidalgos, que as acariciaram, chamando-lhes as lindas discipulas de Maria, nomes com que Sebastião da Mesquita as dava a conhecer ás suas visitas.

Arthur Soares, saúdou D. Isabel, beijando-lhe as extremidades dos dedos da mão direita, e recebeu um amplo aperto de mão do fidalgo, acompanhado das palavras--bem vindo, afilhado--e de um certo fitar, que n'elle demonstrava contentamento, e interesse pela pessoa a quem o dirigia.

Estabelecida certa liberdade familiar, promovida pelos velhos fidalgos, occuparam as cadeiras proximas do fogão, Sebastião da Mesquita, D. Izabel e Arthur Soares. D. Maria e as suas discipulas procuraram outro lado da sala, onde podessem confidenciar, á vontade, os mil nonadas, que são os encantos dos annos verdes, e, algumas vezes, até dos já illustrados pelo estudo. Rosa, e Anna, ficaram de pé, aos lados da cadeira, occupada por D. Maria: só tomavam assento na presença dos velhos fidalgos, quando estes imperativamente o ordenavam. Sebastião da Mesquita e D. Isabel--diga-se a verdade--não desgostavam d'aquella prova de submissão, e quasi sempre se esqueciam de lhe pôr termo. É que o barro, por mais apurado que seja, tem asperezas, que só em pó se desfazem.

Passado pouco tempo, D. Isabel sahiu da sala, e o fidalgo estabeleceu com Arthur o seguinte dialogo:

--Que pesadelo o fez triste, como parece estar, snr. meu afilhado?

--Tenho que dar a v. ex.a a desagradavel noticia de que o povo se agita em desordem, começada por não sei que «Maria da Fonte» das proximidades de Lanhôso, e temo que os tumultos cresçam até á altura de revolução, porque a semente lançada pelas paixões partidarias hade produzir os benésses a que miram os curas da imprensa desenvolta.

--É cousa essa, snr. Arthur Soares, que não deve surprehender aquelles que, como nós, acompanharam de longe as dissensões, e os desacertos, da familia liberal, a que não pertenço pela communhão de idéas, mas que desejára, como portuguez, vêr prosperar, para o bem de todos. E o que diz e faz o povo?

--O povo diz, que abaixo o ministerio e as contribuições, e queima os mappas, que se mandaram encher, para um novo systema de contribuições, reprovado, sem analyse séria, pelos partidos da opposição, que incutiram nas massas ignorantes o absurdo de que aquelles papeis serviriam de documentos para hypotheca da propriedade aos inglezes!

--Quando haverá seriedade nos homens politicos, que assim fazem brinco de uma nação?!

--Neguei até hoje, o meu voto aos bandos politicos militantes, que já da gloriosa ilha Terceira vieram eivados do mal, que devia affectar o heroismo de um povo, e d'um rei-soldado. Os feitos praticados dentro das muralhas da invicta cidade da Virgem, dariam assumpto para uma epopéa, se não tivessem a macula de fratricidas... Perdôe v. ex.a o modo de vêr da moderna eschola, que isto de nenhuma sorte escurece a grandeza, d'aquellas épochas de conquistas, e de independencia, em que nobres antepassados de v. ex.a manejaram a espada, com proveito, e immortal honra d'estes reinos. Bem sabe, que sou liberal...

--Sei que é homem de bem, snr. Arthur Soares, e não me repugna a liberdade de que V. S.a é apostolo. Á licença, ao desenfreamento de paixões interesseiras, ao que promove a desunião da familia portugueza, é que um soldado da independencia, como eu fui, não dará em tempo algum o seu preito. É V. S.a o mesmo que confessa,--e dizem outro tanto todos os liberaes de boa fé--que muito é para temer a desintelligencia que lavra entre os que tanto precisavam de união. Tambem eu partilho esse receio pelo meu paiz, sem que n'isto tome parte qualquer tendencia que possa haver em mim, para applaudir outra fórma de governo. O que eu desejo, antes das proprias conveniencias, é o bem geral, o engrandecimento d'este torrão abençoado, em que nasci, e onde queria morrer portuguez. Estas continuadas luctas intestinas, que nos trouxe a constituição, desdizem da felicidade por ella annunciada, e quem sabe o que poderão causar-nos!...

--Talvez a perda da nossa autonomia... É possivel. Mas as grandes transformações sociaes, snr. Sebastião da Mesquita, não se operam sem abalos mais ou menos fortes. Consinta-me V. Exc.a, que ainda confie no futuro. Entre os vultos liberaes, ha caracteres nobilissimos, completamente devotados á causa nacional. Se conseguirem aproximar d'elles, aos altos cargos da governação publica, todos os homens competentes sem distincções partidarias, póde a náo do estado tomar norte, e trazer-nos éras de paz e de prosperidade.

Foi n'esta altura interrompido o dialogo por um escudeiro de habito de Christo, que vinha dar parte a Sebastião da Mesquita de que se achava o terreiro coberto de povo, e á sua frente o Exc.mo Leopoldo de Moraes Lencastre, do Marco de Canavezes, que pedia licença para entrar.

Antes de dizermos a ordem que Sebastião da Mesquita deu ao escudeiro, lembraremos de passagem duas cousas: primeira, que não sirva de prejuizo ao cofre nacional, pela falha de direitos de mercê, a noticia de haver escudeiros com habito de Christo, porque é facto averiguado que os houve, e não sabemos se ainda existem alguns. Eram homens de merecimento, a maioria d'elles soldados companheiros de seus amos, e de provado valor e lealdade.

Segunda: que na rapida descripção que fizermos da guerra civil contemporanea, seremos completamente isentos de sympathias pelos partidos ou grupos que dividem os politicos de Portugal. Respeitamos todos os homens, não temos odios nem invejas, e ajuizamos das cousas com o justo criterio da imparcialidade.

Sebastião da Mesquita, levantou-se e disse ao escudeiro, que mandasse entrar toda a gente. D. Isabel, veiu á sala um pouco perturbada, e perguntou ao esposo, para dizer alguma cousa, se queria que fosse servido o chá. Sebastião da Mesquita, respondeu placidamente, que era magnifica occasião de beber agua quando estivesse o povo na sala, porque se viesse com más tenções fugiria d'ella como de sua figadal inimiga... Via-se que Sebastião da Mesquita, estava ou queria mostrar-se tranquillo e jovial.

D. Isabel foi tomar logar no centro das tres donzellas, que ficaram mudas de espanto pela ordem que ouviram dar, e não de todo livres de receio, embora tivessem sempre observado no povo extrema consideração pelo velho fidalgo. Conservaram-se com tudo impassiveis, como estavam costumados a proceder todos os familiares do fidalgo, quando este manifestava a sua vontade.

Arthur Soares, collocou-se á esquerda do padrinho com tão natural aspecto, como se fôra a continuar a conversa interrompida.

O escudeiro, entrou de novo na sala com uma grande salva de prata e sobre ella uma espada antiga, com cinturão, que, sem dizer palavra, offereceu a Sebastião da Mesquita. O velho fez repentinamente um gesto de espanto, que o escudeiro presenceou sem pestanejar; em seguida sorriu-se, como se disséra--lembraste bem,--e pendurou a espada á cinta, com a pericia propria de um antigo official de cavallaria. Logo depois, era annunciado, e dava entrada na sala, o Exc.mo Leopoldo de Moraes Lencastre, que foi recebido friamente: nas tres donzellas, é que se poderia notar a apparição d'um tal ou qual rubor intraduzivel para os circumstantes, ao conhecerem o fidalgo moço.

--Sou o mais dedicado servo de V. Exc.a meu presadissimo primo e senhor da Mesquita;--principiou por dizer o fidalgo Leopoldo, acompanhando estas palavras de mesura palaciana, a que Sebastião da Mesquita correspondeu com um ligeiro curvar de cabeça.

--Tenho a honra de me dirigir a V. Exc.a em nome da soberania popular, para que se digne acceitar o commando dos bravos camponezes da comarca, que na cidade acabam de reduzir a cinzas os vexatorios papeis, que um ministerio obnoxio, pelos actos despoticos que pratíca, semeára pelo reino. A provincia do Minho, ao grito da heroina «Maria da Fonte,» está toda revolucionada; e dentro em pouco chegarão os gritos do povo aos ouvidos da corôa, que deve fazer justiça immediata, como o requerem as anómalas condições em que se acha o systema constitucional. Ninguem mais competente do que V. Exc.a, meu nobre primo e snr., para conduzir o povo até ao paço; logar em que os nossos nobilissimos antepassados já tiveram a honra de sustentar na presença da magestade os direitos da nação, com a coragem revelada n'aquellas memoraveis palavras, que a historia legou ás futuras gerações:--«Se não, escolheremos outro rei que melhor saiba governar e dirigir a briosa nação portugueza!»--Aguardo as determinações de V. Exc.a, que fielmente serão communicadas aos que por ellas esperam nos proximos salões deste palacio; bons lavradores que me pediram fosse eu o interprete dos sentimentos d'elles perante V. Exc.a Não consenti que entrassem n'esta sala, para deixar tranquillas as damas, primas e senhoras minhas, ás quaes só agora tenho occasião de tributar o mais respeitoso dos meus cultos e a mais submissa das minhas homenagens, pedindo-lhes humildemente, que se dignem perdoar o não ter eu praticado desde logo este dever, em attenção a que estava pouco senhor de mim com a delicada e obrigatoria missão de que fui encarregado.

Quando o fidalgo do Marco deu assim por terminado o aranzel, acenou Sebastião da Mesquita ao escudeiro, que comprehendendo seu nobre senhor, abriu de par em par as portas e reposteiros, dando livre accesso ao povo, que estava agrupado pelos immediatos aposentos. Foram pouco e pouco, como possuidos de acanhamento, entrando na sala os populares, activos e laboriosos lavradores, sempre cortezes como todos os habitantes do Minho, mas faceis de inflammar com perfidas insinuações, principalmente ácerca do perigo que possa correr a religião que professam, e o lar que possuem.

Eram variados os trajes d'aquelles homens amotinados, e variadissimas as armas de que cada um estava munido: ainda assim, predominavam os fatos domingueiros a que é obrigada a casaqueta de botões amarellos, e as espingardas de fechos com pederneira. Todos entravam desbarretados e convenientes. Sebastião da Mesquita ia provocando a entrada com as animadoras palavras:--«Vinde, vinde, bons homens.» E assim que todos o podiam ouvir, virou-se para o mensageiro, e fallou n'estes termos:

--Ouvi com a devida attenção e serenidade, o que teve a bondade de dizer-me meu primo e snr. de Lencastre. Respondendo ao povo, que me escuta, respondo tambem a v. ex.a Esta espada, que já serviu a nossos avós, para emprezas importantes em prol d'estes reinos, e sempre em defeza do sagrado solo da patria,--nunca será por mim empunhada contra portuguezes e irmãos. Fui soldado da independencia, e não quero outra gloria. Quem deseja conduzir o povo pelo caminho da revolta contra os poderes bem ou mal constituidos, póde ter ambições a saciar, mas falta-lhe bem dentro n'alma a nobreza de sentimentos, unica que póde distinguir da massa geral dos homens, os fidalgos e as pessoas illustradas.

«Porque os principes, ou aquelles que governam o reino, abusem do seu poder, não é rasão para que os povos abusem dos seus direitos. Os homens prudentes, devem conhecer os demais. Aos não poucos annos que tenho, devo eu o não poder ser facilmente enganado... Não se queria o meu braço, não, que já mal póde com a espada... O que se vinha aqui buscar era o bom nome do velho, para servir de joguete a pequenas ambições... Não precisa o snr. meu primo Leopoldo d'este fraco auxilio. As tendencias que manifesta para tribuno popular, devem leval-o rapidamente ao parlamento, que é o caminho aberto ás modernas glorias... Seja feliz, e deixe-me descer socegadamente á sepultura. E vós, homens do trabalho, recolhei-vos ao seio de vossas familias, que devem soffrer com os vossos desvarios, e desconfiai sempre dos pareceres que vos levam á porta os voluntarios zeladores dos vossos interesses... Lembrai-vos, que não se devem despresar as lições da velhice, que são as da experiencia. Minha prima e presada esposa, digne-se v. ex.a mandar abrir a adega, para que esta boa gente mate a sêde. Maria, as tuas interessantes discipulas ficam esta noite a fazer-te companhia, para assim escaparem a algum discurso dos campeões de praça... Snr. Arthur Soares e meu bom amigo, queira ter a summa bondade de acompanhar este bom povo até ao terreiro, e vêr se póde com a sua eloquencia acabar de convencêl-o da verdade encerrada nas minhas trémulas palavras. Meu primo, querendo v. ex.a dar-nos a honra da sua presença, logo que voltem minha mulher e o snr. Arthur Soares mando servir o chá.

--Agradeço, mas não posso acceitar nem conservar-me aqui mais tempo depois do que v. ex.a acaba de pronunciar...

--N'esse caso,--interrompeu Sebastião da Mesquita--peço as ordens de v. ex.a... João, acompanha meu primo até ao portal.

Ao receber a ordem do amo, o escudeiro foi postar-se atraz de Leopoldo. Este, fulo de cólera açamada, virou a espalda e sahiu com o povo, que escutára o fidalgo com todo o respeito e silenciosa attenção, e que foi tão rapido na sahida como morôso havia sido na entrada.

Logo que foi evacuada a sala segundo as ordens de Sebastião da Mesquita, caminhou este até ao pé das donzellas, pôz a mão direita sobre o hombro esquerdo da filha, encarou-a por longo tempo com visivel commoção, e disse-lhe com lagrimas na voz: Deos te dê melhor sorte, Maria!... Depois, cingiu Rosa e Anna com o braço esquerdo, e disse a todas com igual ternura: Deos vos proteja, minhas filhas!...

Um conto portuguez: episodio da guerra civil: a Maria da Fonte

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