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III
AO LUAR

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«Na minha terra, uma aldeia,

Por noites de lua cheia,

É tão bella! é tão feliz!...»

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(João de Lemos--Cancioneiro.)

Leopoldo de Moraes Lencastre, filho segundo da nobre familia dos alcaides móres de Coruche, achava-se--por fallecimento do primogenito--na posse do morgadio.

Era importante a casa de seus maiores, dispersa por quasi todo o reino. Leopoldo administrava mal e esbanjava muito, sem gastar, ainda assim, mais que o rendimento.

Corriam differentes versões ácerca da morte inesperada do morgado, que todas formavam um pessimo conceito do herdeiro forçado d'aquella nobre casa. No entanto, Leopoldo mostrára-se angustiado com a morte do irmão, e parecia gosar a herança com a tranquilidade de espirito propria dos innocentes. Deixára Coimbra quando frequentava o quarto anno da faculdade de direito, para tomar conta da casa, e voltára mais tarde a concluir a formatura.

Dotado de um caracter ardente, Leopoldo, era ambicioso de glorias, que sonhava de um modo unico. Sacrificava todos os bons sentimentos, á satisfação do amor proprio. Na consciencia d'elle, havia só logar para a sua personalidade. Nunca encontrou espelho que lhe reflectisse outro objecto, além da sua figura.

O mundo era para o fidalgo doutor apenas um palco, destinado a receber-lhe as scenas comicas ou tragicas; e os espectadores estavam magnetisados, para só attentarem n'elle e nas suas acções. Não havia torpeza que lhe embargasse o caminho do Capitolio, nem falta que o fizesse exitar no trajecto. Mettia algumas vezes na gaveta das conveniencias a sua altivez, para de lá sahir depois mais furiosa, alcançados que fossem os premeditados fins. Era mais insaciavel com o seu orgulho, do que um miseravel com as suas necessidades: os cuidados, agitações e pesares communs a todo o homem quando se dilata a esphera dos prazeres, affeições e sentimentos, só accommettiam o moço doutor na hora em que se convencia de que o mundo desviava os olhos das suas façanhas.

Leopoldo era physicamente favorecido da natureza, e suppríra, com o estudo, o que lhe faltava em talentos. Foi-lhe facil estabelecer escóla sua, e rodear-se de manequins, que serviam magnificamente aos seus desejos. É crescido o numero de parasitas que, algumas vezes, se prestam para caudatarios, e que são sempre tubas, ainda que rouquenhas, de famas adrede. E não se verificava, com relação a Leopoldo, o preceito de ser a lisonja moeda falsa que empobrece quem a recebe; muito ao avêsso ia logrando insinuar-se na opinião publica, que foi, e é, e ha de sempre ser, a tonta filha das apparencias.

Quando Arthur Soares, encarregado pelo fidalgo Mesquita de fallar ao povo, estava desempenhando a commissão, foi interrompido por Leopoldo, que pretendeu ridiculisal-o. Deu isto causa a uma discussão entre os dous, algum tanto animada, que acabou pelo povo ir dispersando, e Arthur Soares deixar bruscamente o adversario fidalgo, entrando de novo no palacio de Sebastião da Mesquita, com o qual passou algumas horas mais.

Na sahida para a residencia de seu thio reitor, ao passar por baixo das janellas do quarto de D. Maria, teve Arthur Soares de prestar attenção ao chamado da fidalga senhora, que, com as suas discipulas, estava gosando o luar e a belleza da noite, e lhe perguntára como havia conseguido que o povo recolhesse a suas casas.

--Tudo consegue a prudencia, minha senhora, quando não é capa de occultos interesses. O povo estava illudido por palavras pomposas que eu expliquei em linguagem chã, fazendo-lhe conhecer o sentido interesseiro de quem lh'as havia dito: convenceu-se e tranquillisou-se. O fidalgo, primo de V. Exc.a, é que se não convenceu nem me agradece... Creio que adquiri n'elle um verdadeiro inimigo.

--Pouco deve importar ao snr. Soares a inimisade do snr. Lencastre. V. S.a tem a nobreza das suas acções, que não podem invejar cousa alguma ás do meu fidalgo primo.

--Não me parece tanto assim, snr.a D. Maria;--arriscou-se a dizer a timida Anna--O snr. Lencastre é pessoa muito estimavel e virtuosa, no meu humilde parecer...

--Estimavel; virtuosa e carinhosa, deves acerescentar, minha beatinha, porque o tal senhor teve artes para ganhar a tua affeição...

--Valha-te Deus, Rosa, que vês tudo pelo mau lado... Eu sou muito amiga do snr. Lencastre, como o seria de qualquer outra pessoa que conhecesse, e que nunca me fizesse mal...

--Parece-me, menina Anna, que a Rosinha foi mais verdadeira agora do que mordaz ou satyrica, como graciosamente lhe chamam;--disse Arthur Soares.--Se não, haja vista esse denunciativo rubôr que mais de palpite do que auxiliado pelo luar, d'aqui imagino vêr...

--Peço desculpa de ser contra a sua opinião, snr. Arthur, mas entendo que o pejo, manifestado nas faces, póde ter variadas origens. A Rosinha tambem córou, e talvez eu córasse egualmente, quando meu primo entrou no salão; e, com tudo, não creio que em nós exista sentimento algum reservado.

--Nunca dei entrada no meu espirito a qualquer suspeita prejudicial á inexcedivel virtude de V. Exc.a, e á que adorna as suas interessantes discipulas, o que não obstou a que eu fizesse reparo--confesso-o--em certo embaraço que descobri em todas, na occasião a que V. Exc.a se refere.

--Eu explico ao snr. Arthur Soares a razão do nosso abalo;--disse repentinamente Rosa.--Annitas, córou, porque o fidalguinho lhe não é indiferente...

--Tens cousas...

--Não me interrompas, que ter coração não fica sul a pessoa alguma, O amor, é toda a historia da vida das mulheres, como diz um livro, que a snr.a D. Maria me ensinou a lêr e entender.--Eu córei, por que antipathiso solemnemente com uns certos modos do snr. Lencastre, que já me fez a honra de dizer que eu era bonita e espirituosa... A snr.a D. Maria...

--Eu, menina, não desejo n'este momento ter interpretes dos meus sentimentos... Subiu-me calor ás faces, porque... estava um tanto indisposta...

--É já tarde, minhas senhoras, e eu vou até á residencia de meu thio, onde espero conciliar o sômno, vendo o soberbo luar d'esta lindissima noite, atravez dos vidros da janella do meu pequeno quarto. V. Exc.a, snr.a D. Maria, continue a gosar, em companhia das suas innocentes amigas, o arôma das flôres do jardim e do pomar, a fagueira brisa d'esta bellissima noite de primavera, o suave cantico da voadôra cotovia e da poetica philomella, o murmurio da agua nos proximos tanques, a magestosa pallidez da lua cheia, que tudo isto ajuda a nutrir a imaginação com illusões nascidas da candidez da alma, muito mais carecida de taes alimentos do que a fria razão.

--Quer o snr. Arthur Soares dizer-me com esse trecho poetico, que não gostou de que eu interrompesse a Rosinha?... Apreciava bem mais ouvir a franqueza de que sabe usar, do que escutar-lhe um subterfugio, aliás lindissimo na fórma... Eu, digo-lhe abertamente, snr. Soares, porque não tenho motivos para occultal-o, que o meu pejo procedeu de haver ha muito reconhecido em meu primo Lencastre, qualidades e sentimentos improprios de um cavalheiro. Magôa-me bastante ter de fallar assim de um fidalgo, que é meu parente; mas não quero que os meus gestos sejam mal avaliados, principalmente por V. S.a, que é um amigo d'esta casa, a quem meu pae devéras estima.

--Não me accuso, snr.a D. Maria, de ter provocado a irritabilidade nervosa, que me parece descobrir em V. Exc.a, porque me diz a alma que eu era incapaz de lhe promover o mais leve desgosto. O dia em que eu me conhecesse origem de qualquer dissabor, para a familia do snr. Sebastião da Mesquita--póde V. Exc.a crêl-o--seria o ultimo da minha vida.

--O que disse, não foi queixa, snr. Arthur Soares. Quiz apenas ser eu, a dizer a V. S.a os meus sentimentos... Se perdeu com isto de ouvir a narrativa com a natural eloquencia e graça de que dispõe a minha amiga Rosa, deixo-os agora á vontade, para...

--Sou eu que me devo retirar, snr.a D. Maria... E retiro-me com a convicção bem formada de que nunca mais as minhas palavras, dirigidas ao snr. Arthur Soares, poderão melindrar a minha presada senhora, amiga e mestra, porque hei de medital-as muito...

--Ficam ambas, com certeza, porque uma e outra se encontram empolgadas pelo gavião!...--Disse uma voz sahida do pomar, que todos reconheceram ser a do snr. de Lencastre.

Facilmente se avalia a commoção em sentidos diversos, que soffreram todos os actores d'esta scena, ao conhecerem o novo e audacioso interlocutor, sahido de entre as arvores do pomar que o occultavam, e collocando-se sobranceiro á parede do jardim, em frente da janella occupada pelas tres donzellas, ficando alguns metros separado de Arthur Soares.

--Não me surprehende, continuou a dizer o fidalgo moço, dirigindo-se para a janella,--que a snr.a Rosa concebesse um arranjinho de vida commodo, fazendo presente do seu coração e de seus volumosos espiritos ao snr. Arthur Soares; e que este eminente litterato tome posse de tudo, para cada vez dar maior brilho ao seu verniz de urbanidade e brios... Agora, o que devéras me faz descrêr de quantas virtudes podem honrar o coração humano, é o vêr que a snr.a D. Maria da Gloria esqueceu rapidamente a distancia que a separa de um plebeu, embora um tanto polido, que nunca se atreveria a pensar sequer na honra de conseguir, á custa dos maiores sacrificios, o que V. Exc.a tão de barato lhe concede!... Manifestar ciumes ao snr. Soares, minha nobre prima, é declarar-lhe que o ama!...

--Eu já sabia, snr. de Lencastre, que uma certa grosseria de habitos formava a base do seu codigo cortezão; mas nunca me persuadi que V. Exc.a quizesse lá escripta a villania de um procedimento como o que acaba de ter! Os nossos lacaios, se alguma vez são apanhados a devassar alheias causas, fogem espavoridos da feia acção que commetteram... O meu nobre primo afidalga-se com um manifesto de curioso, e delator das vidas alheias, abrindo com chave de mui duro e enferrujado ferro, o coração de uma senhora, que lhe não deu o direito de se tornar seu vigia, e muito menos seu mentor. Só a meu pae quero dar conta dos meus procedimentos, e nenhum receio me dominava se o santo velho fosse um dos espectadores d'esta scena, só pouco edificante desde que V. Exc.a entrou n'ella... Peço ao snr. Arthur Soares, que seja completamente alheio ás palavras e acções do snr. meu primo; peço-lho pela amisade que tem á minha familia.

--É esse o mais espinhoso dever, que V. Exc.a me podia impôr...

--Socegue o paladino da nobre castellã, que não tem de medir armas comigo, porque lhe não acceito o repto... E V. Exc.a, nobilissima snr.a D. Maria da Gloria, fique sabendo que a um perfeito acaso devi o ficar conhecendo dos adiantados, prósperos e sublimes amores de V. Exc.a, com o sobrinho do senhor reitor... Se me interesso por alguem, não é de certo por V. Exc.a... Ha talvez ao lado da minha nobre prima quem saiba nutrir aspirações mais fidalgas... Muitas vezes acontece haver discipulos, que podiam ensinar os mestres...

--Das lições de V. Exc.a é que ninguem aproveita... disse sacudidamente Rosa, que ha muito ardia por fallar, e que era contida pelo respeito devido á fidalga, e por se achar affectada com a inesperada direcção d'estes acontecimentos, que lhe descobriram o coração.

--Já me tardavam as provas de seu despeito, menina... Apraz-me têl-a por inimiga: das mulheres formosas, só nos deve magoar a indifferença...

--E o despreso, snr. meu primo?...

--V. Exc.a despresa-me, minha nobre prima?... Tanto melhor, que posso usar sem constrangimento dos meus direitos de fidalgo e de parente de V. Exc.a para annunciar ao mundo do bom tom, que a snr.a D. Maria da Gloria Mesquita Bandeira de Abendanho, está ligada pelos vinculos do mais apertado amor, com dispensa de sacramentos, ao sobrinho do snr. reitor da freguezia...

Ainda o snr. Leopoldo não tinha acabado de pronunciar bem a ultima palavra do insulto, e já o som de uma estrondosa bofetada echoava nos ouvidos de todos.

As discipulas de D. Maria deram um abafado grito e retiraram-se da janella, a um pequeno impulso que lhes deu D. Maria. A fidalga, julgando ter sido Arthur Soares que déra o castigo ao insolente, ficou sobresaltada, e dirigiu-lhe, ainda que meigas, algumas censuras, a que o brioso mancebo respondeu, que outra mão, mais prompta que a sua, castigára o desaforado fidalgo.

Fôra o caso, que João Vidal, o escudeiro, andando na sua costumada ronda pelas cercanias do palacio, e ouvindo parte do dialogo, aproximou-se cautelosamente do sitio onde estava Leopoldo, e lá se conservou até ao momento em que o insulto feito á sua nobre ama, o levou a estender a mão na cara do petulante com força tal, que o snr. de Lencastre cahiu redondamente no chão do pomar. Logo que se levantou, ardendo em ira, partiu para o escudeiro de punhal na mão. João Vidal, suspendeu-lhe o braço homicida e arrancou-lhe da mão a arma cobarde, em menos tempo, tudo isto, do que se gasta a contal-o.

Vendo-se abatido, sem armas, e marcado pelo mais ignominoso ferrête que um homem póde imprimir n'outro homem, Leopoldo vociferou:

--Por um escudeiro!... Vergonha eterna!... Juro que a vingança ha de ser superior á affronta... Não posso medir-me comtigo, villão, mas quero e hei-de vingar-me... Vingar-me de todos... Ouviram?! De todos!... E a ti, canalha... escudeiro infame... hei de afogar-te como se afoga um cão vadio!...

Proferidas aquellas selvagens ameaças, retirou-se o possesso, a passos accelerados, não dando assim logar a maior castigo.

João Vidal, com toda a submissão e respeito, pediu á sua joven senhora desculpa para o que fizera sem premeditação, e levado unicamente pela violencia do insulto. D. Maria agradeceu-lhe com palavras vehementes, e ordenou-lhe que entregasse o punhal ao snr. Arthur Soares, o que o escudeiro fez, sem exitação, pedindo depois licença para retirar-se.

Arthur, surprezo com a ordem e a entrega, perguntou a D. Maria, que uso devia fazer d'aquella arma.

--Guarde-a--lhe disse a fidalga--até que eu lh'a peça.

--É perigoso este instrumento na minha mão, senhora, desde que me vejo causa involuntaria das mágoas de V. Exc.a... Esta noite foi para mim ao mesmo tempo a vida e a morte... Tive sempre horror ao crime, e vejo-me levado pelo destino a ser necessariamente criminoso! Acolhendo em meu peito sentimentos, que nem ao dominio dos meus sonhos quereria que pertencessem, terei de luctar e de punir, de caminhar para a incerta felicidade por cima do cadaver de um inimigo, vilissimo é verdade, mas bem nascido e poderoso... O que devo fazer em tão apertada como temivel conjunctura?!... Não devo escolher entre dous crimes, aquelle de que só eu venha a soffrer as fataes consequencias?!... Nunca me persuadi de que havia de chegar uma hora em que assim fosse abalada a minha austeridade em principios religiosos!... Nunca imaginei que seria forçado a praticar, o que sempre tenho rebatido com todas as forças de uma profunda convicção!... Adeus, snr.a D. Maria da Gloria!... Amanhã será entregue a V. Exc.a esta arma por pessoa de confiança.... Peço-lhe que ao recebel-a se lembre com alguma saudade do martyr de umas certas crenças, talvez irrisorias n'esta epocha de... progressos... Adeus!...

--Ordeno-lhe que fique!... Disse D. Maria com um tal assento de voz, que obrigou Arthur a ficar como petrificado.

--O snr. Arthur Soares, pensar em suicidar-se?!... Onde escondeu a fortaleza do seu espirito robustecido pelo estudo?! Como assim esqueceu os salutares conselhos de sua boa mãe, que o snr. Soares muitas vezes me tem repetido?! Que fez das arreigadas crenças na religião de nossos paes, que o snr. Arthur dizia ser a mais racional e acceitavel de todas as religiões, mesmo desprendida do que n'ella ha de mysterioso e divino?!... Ah! snr. Arthur Soares, que me parece imperdoavel essa allucinação!... Já não quero fallar-lhe no abandono em que deixava as pessoas amigas, só pelo egoismo de não soffrer na lucta! Isso prova que as melhores almas tambem têem suas fraquezas... Lembre-se, senhor, que á vida de V. S.a póde estar presa alguma outra vida; e que, querendo fugir a matar um inimigo vil, quando seja absolutamente indispensavel o fazel-o, póde assassinar alguem com o seu suicidio...

--Pois V. Exc.a?!!...

--Adeus, snr. Arthur Soares! Durma tranquillo e guarde bem essa arma que deve ser entregue por V. S.a em pessoa a mim, ou, de minha ordem, á minha amiga e discipula Rosa...

Ditas estas palavras, retirou-se D. Maria da janella, que fechou de manso.

Arthur permaneceu no mesmo logar por largo espaço de tempo, immovel, com os olhos fitos na formosa lua cheia, e o pensamento entregue ao vago de estranhas e indecifraveis sensações. Accordou d'este delicioso e pungente lethargo, á voz amiga de João Vidal, o escudeiro, que o acompanhou á residencia do thio.

Um conto portuguez: episodio da guerra civil: a Maria da Fonte

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