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A decisão de Cortázar

Júlio estava sentado em sua poltrona bastante confortável. O apartamento era pequeno, como convinha ao seu salário de professor e tradutor, mas bastante aconchegante, com livros nas paredes, uma luminária ao lado da poltrona que, por sua vez, encontrava-se ao lado da janela. Era assim que Júlio passava suas tardes e suas noites, lendo e pensando.

Lia sobre John Keats, porque estava escrevendo um contra-livro universitário sobre o poeta, e pensava, toda vez que repousava sua visão sobre uma pequena escrivaninha que tinha ao lado da prateleira de livros, no que precisava fazer para mudar as coisas. Nela, encontrava-se o bilhete que tinha recebido sobre a morte de André Gide, em Paris, em 19 de fevereiro de 1951, um dia antes dessa cena que se descreve aqui.

Não tinha mais tantas certezas sobre nada, principalmente sobre a sua própria condição de educador. Defendia a liberdade, acreditava na democracia, mas estava descontente tanto com o que escutava de alguns de seus alunos quanto com o sistema político vigente na Argentina. O mundo que Cortázar acreditava esfacelara-se, e ele via, pela janela, que o calor era demais naquele início de ano.

Em meio às incertezas que tinha, trazia em si a vontade. Vontade de viver. Viver entre livros, sem a certeza de nada, aberto para as vontades próprias que os acontecimentos ocasionais pudessem lhe dar. Olhava sua Olivetti e via nela uma amiga, uma defensora desses mesmos ideais.

Era, claramente, um homem voluntarioso. Sempre disposto a ajudar aos seus alunos, a responder-lhes sobre o que necessitavam. Adorava as discussões acerca da literatura e da sua importância para a compreensão de que o ser humano é um ser interessante a ponto de ser relatado. Queria terminar de vez de amontoar os seus contos e publicá-los. Achava que já era hora de ver o seu livro saindo. Demorara porque acreditava que os textos não eram aquilo que ele queria. Mas agora não, eles estavam prontos. E ele estava pronto.

Olhou para o relógio, viu que eram 17h40 e resolveu sair para caminhar, agora que o sol já deixara de ser o mesmo da quentura do meio-dia. Foi caminhando pelas ruas de Buenos Aires, que a ele tanto encantavam, e observou-as com calma. Como quem vê alguém e sente um deslumbramento. Por certo que sempre fora assim. Mas nesse dia estava em estado de êxtase. Entre um cigarro e outro, via-se parado em alguma esquina, olhando algum prédio e pensando: “Sim, esse prédio tem uma beleza que eu gosto!”

Por fim chegou ao London Café, onde sentia-se à vontade e em casa. Ali escrevera muito. E lera também. Era conhecido dos garçons, que sempre lhe saudaram com bastante carinho e lhe deram atenção. Nunca reclamaram das várias horas em que ele passava no canto, ao fundo, perto da janela, somente com um café, uma medialuna e, depois de um bom tempo, um outro café.

Sentou-se e não tirou nada. Nem um livro, nem um bloco de anotações. Apenas ficou visualizando o ambiente. Como aquela decoração lhe agradava. Como via naquelas luminárias uma beleza sem igual. Ficou apenas observando, com o pensamento distante, talvez pensando em Keats, talvez pensando na sua alma tomada, por desejo e por medo, por vontade e por indignação, acompanhados sempre com um tom de penúria e lamento.

Pediu um café, que chegou rápido, porque estava um dia calmo no London. Veio também uma medialuna.

Comeu a medialuna rapidamente, porque elas não devem ser deixadas no prato, em nenhuma hipótese. E o café foi tomando aos poucos, como quem pensa que o final do líquido não pode chegar, porque seria como o final de um conto que não se quer que acabe.

Ao sair do café, pensou ao olhar firmemente para a Avenida de Mayo que não a veria mais com os mesmos olhos. Se é que alguma vez a teria visto unicamente, a mesma. Não era. Ao olhar para a esquerda, a Casa Rosada. Nesse momento lhe dava asco. E não compreendia o porquê de as pessoas não sentirem o mesmo. Mas não, Júlio, não, as pessoas não sentem, nem agem racionalmente. Quantos golpes irracionais a política ainda teria? Quantas vezes o povo aclamaria aos calhordas, porque usariam um discurso encantador? Muitas vezes, querido, muitas vezes. Não há possibilidade de acreditar que a racionalidade vá vencer nessas questões. Você sabe, certamente sabe, que esse talvez seja o único momento em que a razão deva prevalecer. Deveria ser na política. Na literatura, a imaginação transporia a realidade de uma maneira verdadeira, muitas vezes sem o uso da razão. Você sabe que um dia a casa pode ser tomada, sem saber por quê, sem saber por quem. Mas sabe também que na política deveria imperar o uso da razão, mas nunca acontecerá. Foi triste a conclusão a que você chegou, meu querido Júlio. Chegamos todos nós? Acho que não.

“Acontecerá, sim, meu caro!”, diria Júlio, “desde que se note que chegamos ao fundo e que agora temos que mudar…”

“Acontece que eu sou pessimista, Júlio.”

“Eu também,” disse, pensativo. “E é por isso que tomei essa decisão.”

Porque a busca que ele se impôs naquele momento era baseada em si mesmo. Não teve — e a real questão que deve ser feita é: não quis? — nem ao menos a consideração por sua mãe, pois sabia que naqueles tempos não se era tão fácil de falar com ela, de vê-la, de abraçá-la, estando distante. E ele sabia que esse abraço iria fazer muita falta nos momentos em que a gripe forte o pegasse de jeito e que ele não saberia mais do que tomar algumas pílulas de tylenol. Mas nunca mais seria com um chá quente de limão e com a mão de sua mãe sobre a sua testa encharcada de suores febris.

A escolha era baseada em si mesmo. Como viveriam em Buenos Aires as coisas que aqui não se podiam viver? Não se pode deixar de pensar em si próprio nos momentos em que se faltam os sentidos utilizados pela razão de maneira coletiva. Um professor como ele, era isso que ele era e sempre seria em Buenos Aires, não conseguiria arranjar coragem para um dia depois do evento constrangedor de um golpe de Estado entrar em sua sala e olhar aos seus alunos nos olhos. Que dizer-lhes? Que teria para interessar-lhes, se eram filhos de um lugar onde isso não é importante? Ele falaria de Keats para aqueles que somente querem saber do resultado do jogo no final de semana? Ele não tinha mais era coragem.

Quem teria? Eu não. Não saberia me aguentar, porque nunca entendi ao certo o motivo de que, em uma sala de aula, a razão deva estar somente na figura do professor. E a humanidade que também está relacionada com o professor, enquanto ser em si? O professor não é a razão em forma de pessoa, pois sente o frio do inverno mais do que a maioria das gentes.

Ele não poderia ser o Júlio que ele sempre quis estando em Buenos Aires. Porque poderia demorar ainda alguns anos mais para que se recuperasse. E ele não estava mais disposto a isso. Perderia cinco ou seis anos de sua vida, de maneira insuportável, até que as coisas melhorassem? E isso ainda baseado em um prognóstico, que nada tem a ver com a incerteza da vida e do tempo, que só será compreendido depois que já passou e não poderá ser revertido. Não, não se pode perder a possibilidade de encontrar alguém e depois perdê-la, porque faz parte do jogo, e não sofrer por isso, se se está parado à espera de que, pelos outros, algo ocorra.

Todos esses pensamentos passaram pela cabeça de Júlio ao sair do London Café. Sentiria falta? Obviamente. Há pessoas com as quais encontramos que, nem que seja por um ou dois anos, ou talvez alguns meses, ou talvez dias, ou mesmo algumas horas, queremos que sejam momentos que se posterguem. E disso não podemos escapar. Ele tinha amigos, e esses amigos eram o que lhe alegrava em um sábado de caminhadas por San Telmo e de mais ou menos duas a três garrafas de um bom vinho (que é barato por essas bandas de cá), que poderia deixá-lo borracho a ponto de tropeçar e rir como se o tempo não contasse, como se a segunda-feira jamais chegasse e que, quando chegasse, ele não daria a mínima, continuaria feliz e mandaria a segunda e toda a gente à merda.

“À puta que te pariu!”, sairia o grito que, vá lá, com apenas uma garrafa de vinho já seria possível que saísse.

Nesse momento tudo fazia muito sentido.

Deveria se desvincular, mudar. Era o momento e a necessidade. Era a vontade e o desejo.

Caminhava de volta ao apartamento e no meio do caminho escutou alguém cantando, com voz rouca e de som um tanto forte, um tango de Gardel. Não era o que mais o apetecia. Na realidade gostava muito de jazz e apreciava, a seu modo, o tango. Não era tão rude ao achar que o tango bom era aquele que não existia mais, como Borges havia dito em algum momento. Mas o velho tem lá suas manias, e Júlio há tempos já não estava tão compreensivo com alguma mania que não a sua própria.

Em casa, escutava ainda aquela canção sobre Buenos Aires em sua cabeça. E não que isso significasse algo, porque não era a verdade. Não era poético a esse ponto, apesar de ter a poesia que só a literatura latino-americana se faria presente em seus relatos. Para tirar da cabeça a música portenha, colocara Stack O’Lee Blues para tocar em sua velha vitrola, observando a coleção de discos, ainda que não fosse grande em quantidade, era em qualidade. Pegara um papel de carta, que ficou sobre a escrivaninha e, ladrilhando os dedos por sobre a madeira, começou a escrever; só parou quando viu o texto terminado.

Era uma carta. Que ao final, dobrou, colocou em um envelope e guardou-a. Enviou no dia seguinte pelos correios.

Quando a resposta veio pôde fazer a continuação do plano, que possivelmente tenha lhe surgido naquele dia de andanças por San Telmo, ou então entre um gole ou outro, ou então tenha ficado claro no café. Era um outro envelope, só que agora com um montão de papeis dentro. Burocracias necessárias, que nesses momentos são a certeza do êxito. Dão ao implicante o sono tranquilo daqueles que sabem que compreenderam o que deveria ser feito, burocraticamente, e que, justamente por isso, podem deitar a cabeça no travesseiro e dormir o sono dos justos e esperançosos.

O delírio do sonho era aquele que dizia que iria amar. Amar e perder-se nas ruas. Por las calles. Para se perder nas ruas teria que amar intensamente. Teria que ter apenas o dinheiro para o café e para os seus cigarros. Não poderia abdicar do café, que ele, depois de anos adoçando-o com açúcar tipo branco, abandonara o vício, não por saúde e sim para ficar acordado e sentir o amargor que só quem reflete sobre a existência pode ter. A casa vai sendo tomada pouco a pouco e, no final, sobra na boca a amargura de não conseguir ter gritado, não ter tido a honradez de ter levantado uma faca, uma garrafa de vidro que se quebra no chão para ser usada como arma, ou, que seja, um cabo de vassoura, para fazer como os senhores que acreditam que um cabo de vassoura espantará o inimigo, ainda que não compreenda que suas pernas e seus braços são fracos e que podem ser quebrados com apenas um safanão. A casa foi tomada e ficou a lamúria e o amargo da vida, o peso de sua mísera existência em desunião sobre o que se passava na vida ao seu redor.

“Resista, homem!”, dizia a voz forte que gritava no quarto ao lado.

“Não quero”, respondia Júlio, sonhando.

Se não se pode querer, se o não querer é mais forte que a vontade de mudar o que está ao redor, é passível de julgamento quem abdica? É a decisão dos sábios, dos fracos ou o quê?

Acordou no meio da noite e, sem ter outra saída, como por exemplo a vontade involuntária de quem quer dormir sem pestanejar, levantou-se e foi fumar na janela.

Ali sentiu o peso da decisão. Estaria correto? Era válido ter feito o que fizera? Era besta indomável aquela que tinha lhe possuído, deixando-lhe sem o menor contato com a razão? Agora já estava feito. E para ele era algo como “Se sim está bem, se não, está também”. Querer queria, afinal, tinha um pouco de ego como temos todos os humanos. Sabia também que as dificuldades apareceriam e que ele teria que lidar, certas vezes, com o completo desconhecido, e não era mais sobre as questões do lugar, mas sim da vida prática, tais como: quanto custa isto e como converter ganhando o que ganho no valor que dê para me manter com o estômago cheio? Como viver aqui e saber que tenho que pedir chorizo de tal maneira? (Não se aprende a pedir chorizo lendo Proust, sabia-se há tempos; mas antes o pedido também não era uma preocupação).

Quando saiu o resultado, quedou-se triste. Queria correr e gritar, mas já não podia. Foi prático. Foi ver sua mãe. Deu-lhe um abraço e começou, entre choro e mais choro, a dizer-lhe palavras, promessas, que, no fundo, sabiam ambos que não seriam realizáveis. No início ele nem queria que fossem realizáveis. Mas agora pesava-lhe vê-la, entrando na velhice e vendo-o chegar com a notícia que tinha nas mãos em forma de bilhete de admissão. Mas as mães são fortes como o frio que faz na Patagônia. E são silenciosas da mesma forma quando querem.

Vendeu seus discos. Fez um bom dinheiro. Guardou apenas um: Stack O’Lee Blues. Aquele levaria consigo para onde fosse. Vendeu seus livros. Fez algum dinheiro. Os que não pôde vender, deu a algumas pessoas amadas, com a promessa de que estava entregando-lhes para que guardassem até seu retorno.

Tinha conseguido uma bolsa para estudar durante dez meses em Paris. Depois voltaria a Buenos Aires e continuaria dando aulas. A primeira carta que enviara era para pedir certificações que lhe dariam a possibilidade de trabalhar como tradutor, tanto de francês quanto de inglês. Iria para estudar literatura. Até o seu retorno as coisas estariam melhores. A vida seria outra, tal qual também seria o governo. Assim ele esperava: que as coisas mudassem e que, com essa mudança que era o sonho, a melhoria chegasse e se instalasse na Argentina, e Buenos Aires seria o melhor lugar para caminhar e desfrutar de um café com uma medialuna entre qualquer lugar no planeta.

Na segunda-feira, 15 de outubro, com o tempo ainda frio devido aos ventos que ainda eram bastante cortantes próximo ao porto, Júlio embarcou e, na popa do barco, começou a acenar para algumas pessoas próximas e amáveis que foram com ele ao cais. No percurso até o local, umas foram completamente quietas, sabendo que sentiriam sua falta. Outras falavam que aproveitasse a possibilidade, que era única, que ele era jovem e que deveria fazer tudo o que quisesse. “Mesmo porque dez meses passam rápido”, diziam alguns.

Quando estava a bordo do Provence, em direção a Paris, com o barco zarpando, sabiam todos, os que foram quietos, os que foram falando e também Júlio, que nunca mais iria voltar. Estava exilando-se de Buenos Aires, de sua vida pregressa e querendo ir para o infinito de possibilidades que o jogo lhe estava oferecendo. Sabia que eram responsabilidades dele todas aquelas ações. As cartas, o pedido que elas continham, a bebedeira, ou as bebedeiras, e os livros e discos, tudo isso eram escolhas dele.

Com sua infinita altura, a pequenez da culpa estava tentando tomar-lhe o coração, que era voluntarioso.

“Vou escrever quando chegar lá!”, pensou consigo mesmo. E, quando Buenos Aires já ia diminuindo na vista, foi sentar-se em uma cadeira e observar a gente que lá ficava.

O homem que gostava dos russos

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