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O Nobel de Jorge Luis Borges

Saímos da sala que possui a Unsam na Saenz Peña, Coetzee e eu. Estávamos cansados, afinal haviam sido quatro horas intensas de aulas sobre os livros de Mia Couto. Me lembro muito bem que já estava fazendo frio no outono porteño, de um abril de 2016.

A nossa amizade surgiu devido a um contato por correio eletrônico, que trocamos quando um amigo em comum nos colocou juntos em um seminário sobre literatura sul-africana que aconteceria no Chile. Isso foi em meados dos anos 2003. Desde então não deixamos de nos comunicar. Coetzee, além de professor, era um grande escritor. Tinha já escrito alguns romances bastante interessantes e que tinha tido grande aceitação tanto da crítica quanto dos leitores. Eu era apenas um contista meia-boca que mandava seus contos para Coetzee, que olhava e dizia que estavam bons, mas eu nunca acreditava. Uma coisa era certa: eu dava aulas mais animadas do que as dele. Ele sempre deixava nos alunos uma estranha sonolência; acredito eu que o motivo seja sempre a sua fala bastante pausada e com volume baixo. Além, claro, dos seus olhos estarem mais no infinito do que nas pessoas ao seu redor, o que, claramente, chateava um pouco os alunos. Eu era — e acho que ainda sou — mais expansivo. Adoro contar sobre a vida dos autores que estamos falando, mudar a entonação da voz cada vez que falo sobre um determinado tema. Tinha — e tenho, acho — uma boa expressão facial também, o que ajuda muito a deixar o público atento, sempre à espera da próxima ação.

Éramos, sim, amigos.

Quando saímos na rua, ele estava silencioso como é o pátio do Mercado de las Luces e ficou esperando que eu, mais uma vez, indicasse algum lugar para que comêssemos. Eu comeria um bom bife de chorizo, com gordura e ao ponto, e ele alguma coisa verde. Certamente viveria até os cem anos, era o que eu sempre pensava quando olhava para ele.

O curso era para ser de um mês, e já estávamos na metade. Aquela era, por incrível que possa parecer, a primeira vez que íamos comer sozinhos, sem a companhia ou de alguns alunos ou de outros professores, que sempre davam um jeito de dar uma passadinha para um oi e ficar nos esperando para ciceronear e nos mostrar alguma coisa sobre como o mundo estava centrado naquilo que eles estavam realizando em suas investigações. Às vezes eu até me esquecia que trabalhava dentro da academia universitária, mas daí aparecia alguém com seu discurso estranhíssimo, e eu me recordava na mesma hora.

Entramos em um restaurante próximo à Avenida Corrientes, que estava toda iluminada, como de costume. Por estarmos em um momento sozinhos, Coetzee — supreendentemente, tenho que ressaltar — resolveu me acompanhar em uma garrafa de vinho. Na Argentina os vinhos são incríveis e podem ser muito baratos. Como eu sempre gostei de vinho que fosse barato, sempre queria levar caixas e mais caixas de garrafas para o Brasil, mas isso sempre acabava por me deixar insatisfeito porque era um desejo impossível.

Como era uma novidade, resolvi que não pediríamos taças e sim uma garrafa. E disse a ele “Vou até pagar por essa garrafa, porque isto deve ser comemorado!”.

Ele riu, do jeito dele.

“Maestro, por favor, lo mejor vino que tenés… hasta 90 pesos”, disse eu, mantendo a parcimônia.

Ele riu às gargalhadas da minha decisão de não gastar muito. Alguns dizem que são somente nesses momentos em que ele fala ou comigo ou com uma outra amiga nossa, que também é professora de literatura, que John ri da forma como ria naquele momento.

Porém não consegui fazer com que ele comesse um bom pedaço de carne, como era o esperado. Ele escolheu a tal coisa verde, envolta em uma massa de não sei o quê — não conheço nem o nome que se dá a essas coisas.

Depois de falarmos o que estávamos fazendo de nossas vidas (porque, por incrível que possa parecer, não havíamos falado ainda sobre nós mesmos, já que chegamos em voos separados e sempre, a partir de então, estávamos na companhia de alguém), começamos, minto, comecei eu, porque Coetzee não falava dessas coisas, comecei a falar de como as coisas iam mal. Esse era um tópico em que sempre me detive e sempre pude falar por horas e horas sobre tal assunto. Alguns que me conheciam e que me convidavam de vez em quando para falar em mesas redondas sobre um monte de temas me diziam que era necessário que eu ficasse sempre por último, porque sempre acabava por destruir toda argumentação que se propunha otimista. Eu sou um pessimista. Mas não precisamos exagerar. Essa raiz que remonta à nossa latinidade me espanta em alguns momentos.

De repente me lembrei de uma passagem de Borges e resolvi citá-lo, primeiro porque estávamos em Buenos Aires e depois porque há que citá-lo sempre.

“Um dos heresiarcas de Uqbar havia declarado que os espelhos e a cópula são abomináveis, porque multiplicam o número dos homens”, eu disse, enquanto olhava com calma para minha taça de vinho, em mais uma demonstração artística de como a oratória mesclada à teatralidade era incrível.

“Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, falou pausadamente as palavras estranhas John.

Ele era um bom leitor de Borges; somos tão bons a ponto de gravarmos uma passagem de um dos tantos livros que lemos. Guardamos aquelas que nos são especiais e que conseguem nos tocar de alguma forma na emoção, independente de qual seja.

Respondi-lhe dando nome do livro, a página, editora e ano de publicação. Além do nome do conto novamente.

“É uma bonita citação. A tua cara, na verdade”. Não havia dúvidas: ele estava feliz aquele dia. Fazia até brincadeiras, o que eu achava bom, conhecendo-o como o conhecia e sabendo que ele era extremamente tímido.

Quando olhei para Coetzee, estava fazendo o mesmo gesto com sua taça de vinho. Me olhou com um sorriso de canto de rosto, bebeu um gole e disse:

“Mas eu sei uma coisa sobre Borges que você certamente não sabe, meu caro amigo”, dando mais uma risadinha.

Ele sabia muita coisa e, muitas vezes, não falava nada porque achava que aquilo não era necessário.

“O que é, seu velho estranho?”, disse-lhe eu, já sentindo em minha cabeça os efeitos do álcool.

“Primeiro, antes de contar, precisamos concordar com uma coisa: você e eu sabemos que a coisa mais séria que há para mim é a literatura, não?”

“Sim, sabemos”.

“Eu não ligo para a política mais do que um cidadão comum liga, sabendo que a mim não faz grande diferença qual partido está no poder”.

“Sim, eu sei, mas nós já conversamos sobre isso. Tua situação é bastante distinta da que acontece na América Latina”, tive que cortá-lo, porque para mim sempre se há que colocar esses pontos em destaque.

“Sim, eu sei. Já falamos sobre isso”.

“Pois é, porque no teu caso…”

“É diferente”, cortando-me, “porque eu sou branco e quando a África do Sul estava no apartheid eu era africâner e agora que dou aula na Universidade de Adelaide, na Austrália, tenho que ter consciência de que nesse país nunca houve uma ditadura militar, como as que acometeram os países latino-americanos”.

Eu simplesmente dei uma risada. Não é que ele tinha aprendido algo (aprendido?) com esses anos todos me escutando falar sobre esses assuntos da América Latina?

“Você está ficando chato com essa repetição, Bassi”, me disse, como quem ganha um duelo.

“Mas, por favor, continue…” disse-lhe eu, reconhecendo que ele sabia muito bem dar tapas de luvas.

“Pois bem, está preparado?”

“Diga, homem, ou morro antes de saber!”

“Borges ganhou o prêmio Nobel de Literatura”, disse, com o mesmo sorriso de J. M. Coetzee de sempre.

Eu comecei a gargalhar, claro.

“Eu sabia que você não ia acreditar. Justamente por isso que eu queria me certificar que estivéssemos de acordo sobre o fato de a literatura ser a coisa mais séria pra mim”, e senti que ele não ria enquanto falava isso.

Eu fiquei um tanto quanto receoso, porque sei — ou acho que sei — quando Coetzee fala sério. Mas eu também duvidava pelo fato de nunca ter encontrado com ele tomando vinho e não sabia se ele tinha um lado despojado, desses como quem fica muito feliz e fala bobagens quando bebe alguma coisa. Não parecia ser o caso de John, e eu não sabia como reagir, a não ser pelo lado da brincadeira.

“Então me explique isso melhor” disse, dando-lhe corda. Achei que o que necessitava era exercitar sua imaginação, e eu estava disposto a conceder isso a ele. Eu o fazia sempre. Estava sempre de brincadeiras com a imaginação.

“Pois eu tenho um primo que hoje mora na Suécia. Ele não é ligado à literatura, mas trabalha na Academia Sueca. Ele andou me contando algumas coisas e me disse que esse é um dos grandes segredos que o Nobel tem em sua história”, disse-me, entusiasmado.

“Você sabe que ele estava brincando com você, não é, John?”, disse-lhe.

“Poderia ser uma brincadeira, se ele não tivesse me enviado alguns documentos que comprovam isso”, falou Coetzee, como quem dá uma cartada final.

Eu não sabia direito o que falar. Achei que era um grande chiste, uma brincadeira. Se eu não o conhecesse e soubesse que esse não é geralmente o seu estilo, até poderia cair. Mas pensei também, poxa vida, ele é um ser humano (ainda que quase sempre não pareça ser) e pode, muito bem, querer passar um trote no amigo enquanto bebem um vinho. Sua vida já era regrada à base daquela gororoba verde que ele estava comendo, portanto em algum lugar deveria existir um pouco de felicidade naquele homem.

Resolvi, então, deixá-lo falar e fui atiçando-o com perguntas que o fizessem desenvolver aquela história. Fui dando corda para ver onde é que ele se enforcaria. Tenho quase certeza de que não fora tão convincente com a minha representação de surpresa, mas achei, num primeiro momento, que ele também estava ali para brincar com aquela situação.

“Mas me explique melhor essa questão de documentos enviados”, segui, “quais documentos são esses?”

“Bom, como eu te falei, esse meu primo é funcionário da Academia Sueca e trabalha no setor que outorga o Nobel. Ele desenvolve pesquisas históricas que possam ajudar no processo de divulgação da academia e isso, obviamente, lhe rende algumas portas abertas que levam por caminhos que humanos como eu e você não temos nem jamais teremos acesso”.

Era fantástico ver as suas expressões. Era incrível ver até onde aquilo poderia chegar. Meu pensamento estava mais interessado, nesse momento, em analisar as expressões faciais de Coetzee do que em prestar atenção nas suas palavras.

“Ele estava fazendo uma pesquisa sobre os prêmios que não foram entregues, porque os ganhadores recusaram-se a comparecer ao evento, por n motivos distintos”, continuou ele. “Em alguns casos, a história se torna bastante peculiar. Como Boris Pasternak, que não foi receber porque o regime soviético não o deixou. Ou então Sartre, que não quis o prêmio porque representava algo que era contra aquilo que ele acreditava”.

Eu ouvia atentamente. E claro que em alguns momentos pensava: como esse cara é bom em narrar uma história. Me sentia constrangido, porque afinal de contas eu nunca fora capaz de narrar algo daquele jeito e, todas as vezes em que escutava ou lia uma história de algum grande autor, ficava perplexo pela maneira como ele tinha habilidade de relacionar os fios aos rastros, como ele era perspicaz em saber em que ponto e qual palavra usar para expor aquele evento. Muitas vezes uma história banal deixa de ser nas mãos de um grande autor. Muitas vezes só o que sobra para os autores medianos para alcançarem a glória é usufruir da imaginação infinita, para ver se alguém acha algum interesse em lê-lo.

“Teve outro caso também”, continuou Coetzee, “em que seu conterrâneo recusou-se a colaborar com a Academia e por isso não ganhou o Nobel”.

“Quem foi esse?”, perguntei eu, com certa perplexidade. Eu sabia de alguns casos possíveis de Nobel para o Brasil, como Jorge de Lima, que era tido como certo ganhador do prêmio para o ano de 1958, mas morreu em 1953, e a Academia não premia autores falecidos. Ou então o sempre cotado Jorge Amado, que alimentou ao longo de anos a esperança tupiniquim de ganhar sua primeira medalhinha. Mas desse caso eu não fazia a menor ideia do que Coetzee estava falando.

“Carlos Drummond de Andrade, meu querido. Aquele mesmo que é uma de suas paixões”, me disse Coetzee, pegando a garrafa e colocando mais um pouco de vinho em nossas taças.

O homem que gostava dos russos

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