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II
Antonino de Bizeux
ОглавлениеAntonino de Bizeux residia em Paris havia apenas dezoito mezes.
Até então vivera sempre na Bretanha, com seu pae, no seu palacio de Saint-Malo, ou, na epoca da caça, no castello que possuia proximo de Rascoff.
O visconde viajára muito.
Conhecia toda a Europa e as costas mediterraneas da Asia e da Africa.
Entrára na vida parisiense conservando todas as suas illusões, mas possuido do ardente desejo de se humanisar, como elle dizia, de se tornar distincto na distincta sociedade, de que passava a fazer parte.{20}
Caracter firme, sincero, honrado—honrado até á ingenuidade—os seus pensamentos eram purissimos, e na physionomia transparecia-lhe sempre o que pensava.
Na sociedade que frequentava, o visconde produzira primeiro o effeito d'um phenomeno, prestando-se ao desfructe, sem dar por isso.
Depois, pouco a pouco, fôra-se limpando da sua simplicidade primitiva e tomando pé na encapellada torrente parisiense.
Comtudo conservava o fundo de lhaneza natural, que lhe dava um certo cunho d'originalidade, e lhe valia um verdadeiro successo junto das mulheres, as eternas curiosas.
Tinha poucos ou nenhuns amigos.
O seu nome e a sua fortuna, porém, fizeram com que adquirisse innumeros conhecimentos na alta roda, onde zombavam, apesar de o estimarem, d'esse retardado da civilisação, a quem chamavam formoso bretão e selvagem.
Selvagem era elle seguramente, não porque lhe repugnasse o prazer, mas porque, entregando-se aos gosos que constituem meros passatempos, conservava puro o coração.
Sobre o ponto mulheres, absolutamente sem importancia para homens que frequentavam a sociedade em que elle vivia, o visconde pensava e procedia{21} contrariamente aos seus companheiros, porque elles tinham os seus amores, e Antonino só poderia ter um amor.
Em poucos mezes saboreára todos os prazeres possiveis sem se embriagar; estivera exposto a todas as seducções sem ser seduzido.
Não pertencia ao numero infinito de inactivos, que, segundo a phrase do seu compatriota Chateaubriand, atravessam a vida bocejando, e no seu dolente aborrecimento só teem uma ambição e um sonho: divertirem-se.
O visconde possuia solida instrucção, fallava duas ou tres linguas; era um litterato e um dilettante.
Amava a arte sob todas as suas variadas fórmas, mas sobretudo era apaixonado pela musica.
Por essa razão tornou-se dentro em pouco um dos mais assiduos habitués da Opera.
A sua cadeira raras vezes ficava vazia.
N'essa epoca, como já dissemos, brilhava na Opera Laura Linda, estrella de primeira grandeza que eclipsava todas as outras.
Antonino era ardente admirador da diva.
Adorava-lhe a voz e a expressão maravilhosa do canto.
Mas, coisa extraordinaria, passára muito tempo sem reparar que Laura era formosissima.
Poderia passar dias inteiros a admirar a grande{22} artista interpretando as obras dos mestres, que, se a encontrasse na rua, não voltaria a cabeça para a seguir com o olhar um minuto mais do que a qualquer outra mulher.
De resto, a sua admiração pela cantora jámais se manifestára de fórma a dar nas vistas.
Nem um bouquet offerecido, nem o menor transporte de enthusiasmo.
Limitava-se a applaudil-a, semelhando ser egoista do seu enlevo.
Os conhecidos commentavam a seu modo a assiduidade do visconde nas representações em que Laura tomava parte, e o recolhimento quasi extatico d'elle a partir do momento em que a cantora entrava em scena.
Todos consideravam Antonino apaixonado pela diva.
A primeira vez que uns amigos, por brincadeira, lhe disseram que o julgavam louco por Laura, elle admirou-se, mas nem tentou defender-se, convencido de que os seus interlocutores não comprehendiam a que sentimento obedecia.
Limitou-se a concordar, sorrindo, que as apparencias justificavam as suspeitas.
Mas a brincadeira produziu no visconde o effeito d'uma revelação.
A datar d'esse dia consultou o coração, espiando{23} todos os variados sentimentos que experimentava, perguntando a si proprio se os amigos não tinham, antes d'elle e sem que de tal desconfiasse, dado o nome exacto á attracção que Laura Linda exercia sobre elle.
A diva, pelo seu lado, reparára n'aquelle espectador que todas as noites, da sua cadeira, a seguia com olhar ardente.
De resto, tinham-lhe apontado o visconde como uma das suas victimas.
Deixára que lhe contassem tudo que constava do caracter do seu adorador, da reputação de selvageria de que elle gosava, mas não admittira que Antonino estivesse apaixonado por ella.
Fosse intenção ou simples desejo de ser admirada por aquella fórma, Laura quasi adivinhava o que o visconde sentia, e agradecia-lhe intimamente a reserva em que elle se conservava, reserva que desagradaria a qualquer outra.
Uma noite,—é possivel que acabasse d'ouvir fallar d'elle,—como tinha d'entrar em scena lentamente e em silencio, Laura fixou o visconde por muito tempo.
Áquelle olhar, todos os admiradores da diva se sentiram supplantados pelo formoso bretão.
O visconde, porém, longe de ficar satisfeito, parecia contrariado.{24}
É provavel que a cantora percebesse isso, porque muitas vezes durante a noite olhou para o visconde, constatando sempre que o seu olhar, apesar d'inoffensivo, produzia n'elle a mesma impressão desagradavel.
Até d'uma occasião o visconde levantou os hombros n'um movimento rapido, como irritado por ella se esquecer por momentos do papel que desempenhava.
Ao voltar ao seu camarim, Laura riu quando uma amiga lhe fallou d'Antonino.
—Apaixonado, aquelle?... Está enganada, disse ella. Será, quando muito, um amador, e com certeza um homem extraordinario. Ha bocado olhei algumas vezes para elle, que quasi protestou por eu me desviar do meu papel!
N'essa noite Antonino sahiu do theatro descontente comsigo e com a diva.
Parecera-lhe que ella se mostrara inferior ao talento que possuia, e zangou-se comsigo proprio: por julgar ter sido a causa das distracções em que a cantora incorrera.
Entrevira pela primeira vez a mulher através da artista.
Entrou em casa mal humorado, e por muitas horas a imagem de Laura passou ante o seu olhar sonhador, brilhante como em scena e fixando-o sempre.{25}
E os olhos fecharam-se-lhe, ao adormecer, suppondo estar ainda admirando a diva.
Pela manhã assaltou-o uma preoccupação.
Porque olhara Laura para elle?
Porque infringira a arte, porque commettera uma falta, a Linda, a impeccavel?
Á medida que reflectia, o ser palpavel, a belleza material, a mulher, absorvia-lhe imaginação.
Quando deu por isso encolerisou-se, e, só no seu quarto, disse alto, despeitado, quasi furioso:
—Não quero!
No dia seguinte foi para Opera como de costume, mas inquieto, perplexo, e pensando não voltar lá se, á entrada de Laura, sentisse a mais ligeira commoção.
A diva entrou, saudada pelos applausos dos seus adoradores.
Depois do primeiro acto Antonino sorriu dos seus terrores.
Por mais que se interrogasse durante todo o tempo que o acto durára, só encontrara em si o simples melómano.
Comtudo a sua tranquilidade não era obsoluta.
Apesar de tudo tremia a cada instante que ella o fixasse.
A Linda não tivera a mais ligeira distracção, conservara-se sempre a artista superior que nem um{26} segundo se esquece da personagem que desempenha, e nem de passagem o seu olhar encontrara o do visconde.
Esta ultima circumstancia não passou despercebida a Antonino, e muitas vezes lhe occorreu, primeiro sem o impressionar, e depois produzindo-lhe uma sensação desagradavel, que não estava longe do despeito. A diva n'essa noite foi surprehendente.
Quando, no fim do ultimo acto, o applauso irrompeu, unanime, só Antonino não deu o seu contingente de palmas ou flores.
Assistiu á ovação contrariado, franzindo as sobrancelhas descontente, como se soffresse com aquelle ligitimo triumpho da cantora.
Entre outros ramos, cahiu aos pés da diva um, de lilazes brancos, lançado ao proscenio por um espectador que estava proximo d'Antonino.
Porque apanhou Laura aquelle ramo, primeiro que qualquer outro?
E porque, ao apanhal-o, olhou e sorriu para o espectador que lh'o offerecera?
Qualquer explicaria o caso, dizendo comsigo que o lilaz seria a flor preferida pela diva.
O visconde, porem, é que não considerou explicavel o facto, e levantou-se da sua cadeira, bruscamente, sahindo apressado para os corredores e seguindo para casa sem demora.{27}
N'aquella noite teve febre.
No dia seguinte, ao ouvir um amigo fallar de Linda, declarou que ella declinava, que dera já o que tinha a dar, e que não tardaria em chegar a estado de só poder ser contratada para theatros d'operetta.
Por si, resolvera passar as noites na Comedia Franceza, porque, afinal, a musica, era uma arte secundaria.
Com effeito o visconde não appareceu na Opera durante duas semanas.
Amava Laura.
Como nunca amára, não comprehendia a razão do seu mal estar.
Amava-a; os proprios esforços que fazia para estrangular a voz do coração eram d'isso prova irrefutavel.
Amava-a, e sentia-se ingenuo, pateta, simples.
Pois não praticára a tolice de estremecer de raiva por um estranho lançar á diva um ramo de que ella gostara?
Amava-a... mas, em summa, tinha ainda força de vontade.
Saberia asphixiar o mal que apenas despontava!
Estava resolvido: não iria mais á Opera, não tornaria a ver a Linda, porque, custasse o que custasse, tinha de vencer aquella paixão estupida!
Quinze dias depois de proceder pela fórma que a{28} si mesmo impozera, convenceu-se de que podia voltar á Opera sem perigo.
Tinha a convicção de que se vencera; nada o impedia de voltar a assistir ao seu divertimento predilecto.
De resto, desejava colher a prova evidente da cura.
Nem um só doente ha que, depois de estar por muito tempo preso no quarto, não se sinta impaciente d'affrontar o ar livre, d'experimentar as suas forças.
Foi n'essas disposição confiantes que o visconde assistiu ao espectaculo da Opera, depois do qual se deu o fatal sinistro que narrámos no capitulo anterior.{29}