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IV
O dia seguinte

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Era quasi meio dia.

Laura acabára de se levantar, e recostara-se languida e como magoada ainda, sobre o canapé do seu salão, remexendo, distrahidamente, n'um montão de cartas e de folhas rasgadas de carteiras, que cobriam o marmore d'um velador.

Por entre os nomes do que vulgarmente se chama todo Paris, procurava um que não encontrava, e lia com indefferencia as palavras escriptas a lapis sobre os papeis que folheava.

Entretanto um bilhete houve que lhe prendeu a attenção por mais tempo.{42}

Era de Pozzoli.

Dizia o antigo emprezario de Laura:

«Morreu a Opera, viva o theatro dos Italianos! Pozzoli irá ámanhã a casa da distinctissima diva, levando um contracto em branco á sua ex e futura escripturada».

Ao ver o cartão de Lauretto Mina, a Linda franziu as sobrancelhas.

O tenor escrevera:

«Enforca-te Lauretto! Laura esteve prestes a ser queimada viva, e tu não estavas junto d'ella para a salvar».

Em compensação, sorriu-se ao ler um outro bilhete.

«Compuz hoje de manhã um cantico d'acção de graças, uma alleluia triumphante, que irei executar-te no meu violino, logo que possas receber o teu mais humilde admirador.

Remissy».

A diva resolveu responder sem perda de tempo ao violinista, convidando-o a almoçar no dia seguinte.{43}

Chamou para isso Jacintha, a sua creada de quarto, pedindo-lhe o necessario para escrever.

Jacintha, collaça de Laura, tinha poucos mezes mais que a cantora.

Era uma formosa rapariga, d'um trigueiro assetinado e quente, olhos e cabellos pretos, labios vermelhos e sensuaes.

Nunca abandonára a cantora, a quem estimava muito, mas a quem servia mal.

—Mais cartas, minha senhora, disse ella ao entrar, quasi todas entregues pelos proprios, que não subiram porque o porteiro não consentiu.

—Que deixe subir o dr. Despujolles quando elle chegar.

—Sim, minha senhora. E o sujeito que lhe salvou a vida?

—O sr. Antonino de Bizeux? Tambem! Há bocado disse-te o mesmo.

—Já se vê... Se não fosse elle estaria a senhora morta a estas horas. E eu tambem, porque se a senhora morresse, não lhe sobreviveria.

—É um homem deveras corajoso! disse Laura, pensativa.

—E bonito!

—Jacintha!...

—Perdão, minha senhora!... jurei-lhe que nunca mais chamaria bonito a qualquer homem, ainda{44} que elle fosse como S. Miguel Archanjo, e faltei ao meu juramento!... Mas não está mais na minha mão!

—Cala-te! interrompeu Laura, que não poude deixar de sorrir, e manda entregar immediatamente esta carta ao sr. Remissy, rua Favart.

Alguns minutos depois, Jacintha annunciava o dr. Despujolles.

—Eil-a! disse o medico ao entrar. Eil-a, a esta salamandra que atravessou impunemente as chammas!

—Infeliz da salamandra, respondeu Laura, que ficaria frita como uma carpa se não tivesse quem a ajudasse.

—Vejamos o pulso. Sabe que vim cá ás oito horas da manhã?

—Sei.

—Como me disseram que dormia, cedi o logar ao melhor dos medicos, o somno.

—Só consegui adormecer ás seis horas da madrugada.

—Pudera! Depois d'um tal abalo não admira. Hum! Está com febre, como era de prever. Vou receitar-lhe um calmante.

E chamou.

Appareceu Jacintha.

—Manda sem demora esta receita a uma pharmacia.{45}

—Sim, sr. doutor.

—E então? Há mais juizo agora?

Jacintha tornou-se purpurina.

—De certo, sr. doutor.

—Hein? Isso é verdade? Toma cuidado! Á primeira escorregadella, tens d'haver-te commigo!

Jacintha pegou na receita, e sahiu apressadamente.

—É necessario, disse o doutor a Laura, que a minha amiga possua uma solida reputação, para ter junto de si uma rapariga d'este quilate!

—Coitada! É tão bondosa e dedicada! Quer que a abandone?

—De certo que não! Estudo em Jacintha a força do instincto. É um precioso sujet physiologico para observar—desculpe-me o termo—o animal na mulher.

—Oh! doutor!

—Posso-lhe fallar assim, porque a minha amiga é toda espirito. Em si o animal não existe.

—Trata de desculpar-se com um cumprimento! Pois dir-lhe-hei que, em momento de perigo, o instincto é superior ao que o doutor chama espirito. A noite passada, quando na Opera se ouviu o primeiro grito de fogo, acabava eu de me vestir. Jacintha—o instincto—que estava no meu camarim, fugiu immediatamente, e eu—o espirito—que temo o fogo mais do que qualquer outra coisa no mundo, comecei a tremer, dobraram-se-me os joelhos, fiquei impossibilitada{46} de fazer o menor movimento. Jacintha, que ainda não tinha sahido, sacudia-me, queria arrastar-me. Tentei caminhar, e cahi desfallecida. Então ella sahiu, dizendo-me que ia buscar quem me soccoresse.

—Ah! a Jacintha fugiu? E pretende que ella é dedicada! Bonita dedicação, não haja duvida!

—Ouça o resto. Logo que chegou á rua e se viu livre de perigo, Jacintha lembrou-se de mim immediatamente. Entrou de novo no theatro, soluçando, querendo procurar-me atravez as chammas. E gritava: «Fui eu que a matei! quero morrer com ella!» Foram necessarios tres homens para a segurar, levando-a á força para um posto policial. Chegada lá, Jacintha cahiu n'um mutismo feroz. Como não podia salvar-me do fogo, tinha resolvido lançar-se ao Sena.

—Mas, afinal, como e por quem foi salva? Corre já sobre o caso, uma verdadeira lenda.

—E parece lenda, com effeito.

Seguidamente contou ao doutor as peripecias do seu salvamento até ao momento da morte tragica do bombeiro, em que ella de novo tinha perdido os sentidos.

—Quando voltei a mim, continuou Laura, estava n'uma pharmacia da rua de Peletier. Jacintha, que me tinha encontrado, soltava gritos d'alegria por me{47} ver abrir os olhos. O meu salvador estava ali tambem, com o fato, as barbas e os cabellos queimados, pallido, mas satisfeito por ver que eu voltava á vida. Reconheci-o como um dos habitués dos fauteuils d'orchestra. Exprimi-lhe o meu reconhecimento, e pedi-lhe que me dissesse como se chamava. Sabe o doutor o que elle me respondeu? Isto: «Sou alguem que passava, e que a salvou, salvando-se.» Foi a custo que obtive, ao subir para a carruagem que me conduziu a casa, que elle me desse o seu cartão.

—E conserva o cartão de tão modesto homem?

—Eil-o aqui... O doutor leu:

—ANTONINO DE BIZEUX.

—Conhece-o?

—De vista, apenas. Tenho-o encontrado em varios salões. É considerado como um original, meio selvagem. Lembro-me de o ver muitas vezes na Opera, e, se bem me recordo, dizia-se que elle estava apaixonado pela minha querida Laura.

—Engano! Quando muito estaria apaixonado pela minha voz. Se arriscou a vida, para salvar a minha, estou certa que foi unicamente por suppôr que não ha outra cantora que lhe faça sentir as mesmas emoções de dilettante.

—Parece-me isso inverosimil, observou o medico. Verá que, como recompensa, elle não se contentará{48} com a promessa d'uma nova escriptura na Opera. Já a veiu ver, sem duvida?

—Pedi-lhe que viesse, e assegurou-me que viria saber como eu estava. Julguei que tivesse vindo de manhã, emquanto dormi, mas não encontrei o cartão d'elle entre os outros.

—Se suppõe que será recebido, como merece, só se apresentará depois do meio dia. Entretanto lembre-se que não lhe receito só o que mandei buscar á pharmacia: é necessario que guarde um repouso absoluto. Prohibo-a de receber quem quer que seja.

—Tem de abrir uma excepção para o meu salvador, replicou Laura com vivacidade. A ingratidão não é droga que o doutor receite a ninguem, com certeza.

—Bem! Farei a excepção pedida! disse Despujolles sorrindo. Registo, comtudo, que a minha amiga desobedece ás prescripções do seu medico, o que é grave.

E retomando o tom serio do clinico, accrescentou:

—Asseguro-lhe que necessita do mais absoluto repouso durante muitos dias. N'este momento é a febre que lhe conserva as forças, mas em breve cahirá n'uma grande prostração nervosa, e sentirá a necessidade d'uma completa tranquillidade d'espirito.

—Comtudo... disse Laura.

—Não ha comtudos...{49}

—Não lhe fallarei de Pozzoli, que me propõe escriptura...

—Eu me encarrego de mandar Pozzoli para o inferno! D'aqui a oito dias tratará d'esse negocio.

—Ou quinze; isso é o menos. O peor é que escrevi a Remissy, convidando-o para almoçar ámanhã. Elle quer que eu ouça uma alleluia que compôz em minha honra...

—Então convide-me tambem, disse o doutor n'outro tom. Como estarei presente, não consentirei que falle. Remissy e eu a entreteremos.

—E o meu salvador? perguntou Laura. Se vier hoje não posso convidal-o para o almoço?

—Mau! Isso já é outro genero de distracção. Como serei do rancho, tratarei de vigiar, porque, na verdade, começo a ter ciumes do visconde.

—Que idéa!

—Pois sim! A verdade é que elle está apaixonado e é bretão. E um apaixonado que salva a vida da sua bella...

—O senhor sabe que eu sou sincera... interrompeu Laura.

—Sei. É a mulher mais franca que eu conheço. Direi até: a unica, em que pese á minha numerosa clientela feminina.

—Consola tanto nada ter que dissimular ou occultar! Pois bem; affianço-lhe, doutor, que, pensando no{50} sr. de Bizeux, não sinto a menor commoção indicativa d'amor; nem sombra d'ella! Que elle esteja ou não apaixonado por mim, confesso-lhe e declaro-lhe que nunca desejei tanto fazer de qualquer homem um amigo.{51}

O Romance d'uma cantora

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