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Capítulo 6

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Raskólnikov soube depois com que intuito o quinquilheiro e a mulher convidaram a Isabel a ir a sua casa. O caso era simples. Uma família estrangeira, na miséria, queria desfazer-se de alguns objetos, em especial vestuário e roupas de mulher. Essa gente desejava entender-se com uma adeleira, e Isabel exercia essa profissão. Tinha larga clientela, porque era muito honrada e não pedia preços exorbitantes. Com ela não era necessário regatear. Falava pouco. Como dissemos, era concentrada e tímida.

Havia algum tempo que Raskólnikov se tornara supersticioso, e mais tarde, quando pensava no caso, não tinha dúvidas em ver nele a razão de ações estranhas e misteriosas. No inverno antecedente, um estudante seu conhecido, Pokoriev, antes de regressar a Kharkov, dera-lhe, conversando, o endereço da velha Alena Ivanovna, para o caso de necessitar empenhar qualquer objeto. Durante muito tempo Raskólnikov não foi a casa da velha, porque as suas lições garantiam-lhe o sustento. Mês e meio antes dos acontecimentos que referimos lembrou-se do endereço. Tinha dois objetos pelos quais poderia obter algum dinheiro de empréstimo: um relógio de prata, que pertencera a seu pai, e uma aliança de ouro com três pequenas pedras encarnadas, oferta de sua irmã no momento de se separarem.

Decidiu-se então a levar o pequeno anel a Alena Ivanovna. Logo à primeira vista, e antes mesmo de saber qualquer coisa a seu respeito, a velha inspirou-lhe ódio. Depois de ter recebido das suas mãos usurárias dois bilhetinhos, entrou num Kaktir, de mau aspeto, que encontrou no caminho. Abancou, pediu chá e pôs-se a refletir. Um pensamento estranho, vago, ainda mal definido, dominava-lhe por completo o espírito. Numa mesa próxima estava sentado, junto de um oficial, um estudante que não se lembrava de ter encontrado. Os dois acabavam de jogar o bilhar e dispunham-se a tomar chá. No meio da conversa, Raskólnikov ouviu o estudante dar ao oficial o endereço de Alena Ivanovna, viúva de um prefeito de colégio que emprestava sobre penhores. Ao nosso homem pareceu extraordinário ouvir falar de uma criatura a casa de quem fora pouco antes. Isto foi sem dúvida um mero acaso. Porém Raskólnikov lutava nesse momento com uma impressão que não podia vencer, e eis senão quando, como se fosse de propósito, alguém vem tornar maior essa impressão: o estudante contava ao amigo diversos pormenores acerca da vida de Alena Ivanovna.

— É um excelente recurso — dizia ele. — Em casa dela encontra-se sempre meio de obter dinheiro. Rica como um judeu, pode, de um instante para o outro, emprestar cinco mil rublos, e no entanto aceita penhores do valor de um. É uma criatura providencial, para nós! Todavia não passa de uma hedionda megera!

E contou que era má e caprichosa, que nem vinte e quatro horas de espera concedia, que todo o penhor que não fosse retirado no dia fixado no contrato estava irremediavelmente perdido para o mutuário. Emprestava por um objeto apenas a quarta parte do seu valor, levando cinco e seis por cento de juros ao mês, etc. O estudante, disposto a tagarelar, informou ainda que a miserável velha era de pequena estatura, muito baixa, o que não a impedia de por vezes bater na irmã Isabel e de a manter na mais completa dependência, a despeito dos seus dois archines e oito verchoks de altura.

— Essa é outro fenômeno! — disse ele, rindo.

A conversa derivou para Isabel. O estudante falava dela jovialmente, rindo sempre. O oficial escutava-o com atenção e pediu-lhe para lha mandar a casa a fim de a encarregar do arranjo da roupa. Raskólnikov não perdeu uma única palavra dessa conversa; soube assim muitas coisas. Mais nova do que Alena Ivanovna, de quem era apenas irmã colaça, Isabel tinha trinta e cinco anos. Trabalhava dia e noite para a velha. Em casa desempenhava os serviços de cozinheira e lavadeira, fazia trabalhos de costura, que vendia, ia aos dias lavar casas, e tudo quanto ganhava passava-o às garras aduncas da irmã. Não se atrevia a aceitar qualquer trabalho ou encomenda sem prévia autorização de Alena Ivanovna.

Esta, e Isabel bem o sabia, fizera já testamento, no qual a irmã era apenas contemplada com a mobília. Querendo estabelecer uma série perpétua de orações, em sufrágio da sua alma, a velha legara toda a fortuna a um convento da província de N... Isabel pertencia à classe burguesa e não ao tchin. Era uma mulher alta e desenxovalhada. Tinha uns pés enormes, sempre metidos nuns velhos sapatos sem tacões, mas muito cuidadosa com a sua pessoa. O que mais provocava o espanto e a hilaridade do estudante era a Isabel andar sempre grávida...

— E dizes que é um horror! — observou o militar.

— É muito trigueira, realmente. Parece um soldado vestido de mulher. Contudo não se pode dizer que é um monstro. A fisionomia é muito bondosa e os olhos têm uma grande expressão de ternura. A prova está em que agrada a muita gente. É muito sossegada, paciente, meiga e de caráter dócil... E o sorriso chega a ser atraente.

— Dar-se-á o caso de gostares dela? — perguntou o oficial, rindo.

— Agrada-me pela excentricidade. Quanto à maldita velha, asseguro-te que era capaz de a assassinar para a roubar, sem o menor remorso — acrescentou o estudante.

O oficial riu-se e Raskólnikov estremeceu. Estas palavras tinham um tão extraordinário eco no seu coração!

— Olha lá, vou fazer-te uma pergunta a sério — disse muito animado o estudante. — Há pouco gracejava, sem dúvida, mas atende: de um lado temos uma velha doente, parva, estúpida e má, um ente que não é útil a ninguém, antes pelo contrário, prejudicial a todos, cuja existência não se justifica e que pode amanhã morrer de morte natural... Estás entendendo?

— Entendo, sim! — respondeu o oficial que, vendo o amigo entusiasmado, o escutava com interesse.

— Bem. Do outro lado está o vigor da mocidade, a frescura que se fana e perde por falta de amparo… e como este vemos aos milhares e por toda a parte! Quantas centenas ou milhares de obras úteis se poderiam realizar com o dinheiro que aquela velha vai legar a um convento? Poderiam talvez reconduzir-se ao bom caminho centenas, milhares de criaturas; dezenas de famílias arrancadas às garras da miséria, à dissolução, à ruína, ao vício, aos hospitais… e tudo com o dinheiro daquela mulher! Matem-na e apliquem o seu dinheiro em benefício da humanidade! E julgas que o crime (se é que nisto havia crime!) não seria sobejamente compensado por um sem número de obras meritórias? Por uma só vida, milhares de vidas arrancadas à perdição! Por uma criatura de menos, cem criaturas restituídas à vida! É uma questão de aritmética! Quanto pesa na balança social a vida de uma mulher caquética, estúpida e má? Menos do que a vida de um piolho ou de um percevejo; menos, por certo, porque essa velha é uma criatura malfazeja, um flagelo dos seus semelhantes. Num destes dias, encolerizada, mordeu com tal fúria um dedo da Isabel que pouco faltou para lho cortar!

— De facto, não é digna de viver! — observou o oficial. — Mas que queres tu? a natureza…

— Oh! meu caro amigo, a natureza corrige-se, emenda-se. Se assim não fosse, ficava-se sempre amarrado a preconceitos. Sem isso, não haveria grandes homens. Fala-se do dever, da consciência (e eu nada direi em contrário!), porém, como interpretamos nós essas palavras? Se me dás licença, vou ainda fazer-te outra pergunta.

— Perdão, cabe-me agora a vez de te interrogar. Deixa-me perguntar-te uma coisa.

— Pergunta!

— É isto: estás aí a falar com assomos de eloquência, que parece estares convencido e pretendes convencer. No entanto, se te perguntar: És capaz de matar essa velha? Que dizes? Sim ou não?

— Certamente que não! Falo em nome da Justiça... Não se trata de mim...

— Então, e uma vez que declaras não seres capaz de a matar, é porque a ação não seria muito regular! Jogamos mais uma partida?

Raskólnikov sentia-se muitíssimo agitado. Por certo esse diálogo nada tinha de singular, nada que o impressionasse. Mais de uma vez ouvira expor ideias análogas; apenas o tema era diferente. Não obstante, como foi o estudante desenvolver pensamentos iguais aos que nesse momento afluíam ao cérebro de Raskólnikov? E porque singular acaso, quando ele saía de casa da velha, ouvia falar dela? Tal coincidência pareceu-lhe sempre extraordinária. Estava escrito que esta simples conversa de café teria uma influência decisiva no seu destino...

Quando voltou do Mercado Geral, atirou-se sobre o sofá, onde ficou imóvel durante uma hora. No quarto reinava a mais completa escuridão. Não tinha velas e, ainda que as tivesse, não pensaria em acendê-las. Nunca pôde lembrar-se se durante esse tempo pensou nalguma coisa. Por fim apoderaram-se dele os mesmos arrepios febris de há pouco e então ocorreu-lhe a ideia de se deitar no sofá. Um sono profundo se apoderou desde logo dele.

Dormiu muito mais do que costumava e não sonhou. Nastásia, que entrou no quarto no dia seguinte, às dez horas, teve dificuldade em o acordar. A rapariga trazia-lhe pão e, como no dia antecedente, o resto do seu chá.

— Ainda se não levantou! — exclamou, indignada. — Como se pode dormir assim!

Raskólnikov ergueu-se com esforço. Tinha dores de cabeça. Pôs-se a pé, deu uma volta pelo quarto e de novo se deixou cair no sofá.

— Outra vez! — exclamou Nastásia. — Está doente?

Não respondeu.

— Quer chá?

— Depois — murmurou a custo. E fechando os olhos, voltou-se para a parede.

Nastásia, de pé, observava-o.

«Talvez esteja doente», pensou, antes de se retirar.

Às duas horas voltou, trazendo um caldo. Raskólnikov estava ainda deitado. Não tomara o chá. A rapariga zangou-se e começou a abaná-lo com violência.

— O que tem para dormir dessa forma? — perguntou, olhando-o com desprezo.

Sentou-se, não respondeu uma única palavra e manteve os olhos fitos no chão.

— Está ou não doente? — interrogou Nastásia.

Gomo a primeira, esta segunda pergunta não obteve resposta.

— Devia sair — aconselhou ela com mais brandura, após um breve silêncio. — O ar devia fazer-lhe bem. Come alguma coisa, não?

— Logo — murmurou Raskólnikov com voz débil. — Deixa-me — e apontou-lhe a porta.

Nastásia demorou-se ainda um momento, observando-o com compaixão, e por fim saiu.

Ao cabo de alguns minutos ergueu os olhos e, deparando com o chá e o caldo, começou a comer.

Engoliu três ou quatro colheradas sem apetite, maquinalmente. A dor de cabeça passara. Quando terminou a ligeira refeição, estendeu-se outra vez no sofá. Não pôde conciliar o sono e ficou de bruços, imóvel, com o rosto sobre a almofada. A sua fantasia mórbida recordava quadros fantásticos. Imaginava-se em África. Fazia parte de uma caravana parada num oásis. Em volta do acampamento cresciam palmeiras, os camelos descansavam e os viajantes dispunham-se a jantar. Dessedentaram-se numa límpida fonte, através de cuja água azulada, de uma deliciosa frescura, se viam no fundo pedras de diversas cores e areias palhetadas de ouro.

De repente o som de um relógio chegou-lhe aos ouvidos, fazendo-o estremecer. Chamado à realidade, levantou a cabeça, olhou para a janela e, depois de ter calculado que horas seriam, ergueu-se a toda a pressa. Andando nos bicos dos pés, aproximou-se da porta, abriu-a com a maior precaução e escutou. O coração palpitava-lhe com violência. A escada estava no mais completo silêncio. Dir-se-ia que toda a gente da casa dormia. «Como pude deixar tudo para o último momento? Nada fiz, nada preparei!», disse de si para consigo, sem se dar a razão de tal descuido. E talvez fossem seis as horas que acabavam de soar!

À inércia sucedeu uma atividade extraordinária e febril. De resto, os preparativos não eram demorados. Procurava não se esquecer de coisa alguma; o coração palpitava-lhe de tal forma, que com dificuldade respirava. Em primeiro lugar tinha de fazer um nó corredio e adaptá-lo ao casaco: trabalho de um minuto. Procurou entre a roupa que lhe servia de travesseiro uma camisa velha, que já não fosse suscetível de conserto. Rasgou-a e com as tiras fez uma espécie de ligadura de oito palmos do comprimento e um de largura.

Depois de a ter dobrado em duas, despiu o casaco de fazenda de algodão, espessa e forte — era o único que possuía — e começou a coser pelo lado de dentro, debaixo do sovaco esquerdo, as duas pontas da ligadura. As mãos tremiam-lhe ao executar este trabalho; completou-o ainda assim com tal perfeição que, quando vestiu o casaco, nenhum vestígio deixava transparecer. Havia muito tempo que comprara a agulha e a linha. Bastara-lhe tirá-las da gaveta.

Quanto ao nó corredio, destinado a transportar o machado, era resultado de uma ideia engenhosa que tivera quinze dias antes. Aparecer na rua com um machado na mão era impossível! Esconder a arma sob o casaco era ver-se na necessidade de a segurar sempre com a mão, e essa posição forçada chamaria sem dúvida a atenção; ao passo que apoiado pelo lado do ferro, no nó corredio, o machado não cairia nem o obrigaria a constranger-se. Podia mesmo evitar que se movesse; bastava segurar a extremidade do cabo com a mão metida na algibeira. Dada a largura do casaco — um verdadeiro saco — o movimento da mão na algibeira não podia ser notado.

Concluída a tarefa, Raskólnikov estendeu o braço sobre o sofá e, introduzindo os dedos numa fenda do soalho, tirou de lá o penhor de que tivera o cuidado de se munir há muito. Na verdade esse objeto nada valia; era uma simples régua de madeira envernizada, com o comprimento e a largura de uma cigarreira de prata usual. Num dos seus passeios encontrara por acaso esse bocado de madeira num pátio, junto de uma oficina de marcenaria. Aplicou-lhe uma pequena chapa de ferro, delgada e polida, mas de menores dimensões, que também apanhara na rua. Depois de as apertar uma contra a outra, ligou-as com um cordel e embrulhou tudo num pedaço de papel branco.

Esse pequeno embrulho, ao qual diligenciara dar uma aparência graciosa, foi em seguida atado, por forma a tornar-se demorada a operação de o desatar. Era um meio de prender por momentos a atenção da velha. Enquanto ela procurasse desmanchar o nó, Raskólnikov poderia aproveitar a ocasião própria. A chapa de ferro destinava-se a fazer pesar mais o embrulho, a fim de que, no primeiro momento, a usurária não desconfiasse que lhe levavam uma simples régua de madeira. Raskólnikov metera o embrulho na algibeira quando ouviu alguém dizer do lado de fora:

— Já deram seis há muito!

«Há muito!.. Oh! meu Deus!»

Correu para a porta, aplicou o ouvido e começou a deslizar pelos degraus como um gato. Faltava o essencial: ir buscar o machado que estava na cozinha. Há muito que decidira servir-se de um machado. Tinha em casa uma espécie de sacho, porém essa arma inspirou-lhe pouca confiança, e menos confiança ainda lhe mereciam as suas forças. A escolha recaiu no machado. Deve notar-se, a propósito, uma singular particularidade: à medida que as suas resoluções tomavam caráter definitivo, mais claramente percebia o absurdo e o horror delas. Apesar da tremenda luta que se travava no seu foro íntimo, nem por um momento podia admitir que viesse a executar os seus projetos!

Mais! se o problema tivesse fácil solução, se todas as dúvidas se desvanecessem, se todas as dificuldades se removessem, talvez tivesse renunciado logo ao seu intento, como a um absurdo, a uma monstruosidade, a um impossível. Contudo restava-lhe ainda um certo número de pontos a esclarecer, de problemas a resolver. Quanto a conseguir o machado, não se preocupara com isso. Nada mais fácil! Nastásia, à noite, quase nunca estava em casa; ia para casa das vizinhas amigas ou para as lojas, o que provocava grandes ralhos da patroa.

Na ocasião própria bastaria, pois, entrar na cozinha e tirar o machado, indo pô-lo no seu lugar uma hora depois, quando tudo estivesse concluído. Ainda assim poderiam surgir dificuldades: «Suponhamos», pensava Raskólnikov, «que daqui a uma hora, quando vier pôr o machado na cozinha, a Nastásia já está em casa? Nesse caso terei de esperar uma nova ausência da criada. Mas se tiver dado pela falta dele? Procura-o, resmunga... quem sabe? porá talvez a casa em alvoroço e aí está uma circunstância perigosa!»

Tudo isto eram pormenores com que não queria preocupar-se, pois não tinha tempo para isso. Tratava do essencial, pondo de lado os acessórios, nos quais pensaria apenas quando tivesse tomado uma resolução sobre o caso. Esta última condição, a essencial, parecia-lhe irrealizável. Não supunha que no momento preciso iria deixar de refletir e seguiria direito ao fim... Mesmo no último ensaio — na visita que fizera à velha para se assegurar em absoluto da situação — faltou-lhe muito para se ensaiar por completo. Comediante sem convicção, não pudera sustentar o papel e fugira indignado contra si próprio.

No entanto, sob o ponto de vista moral, Raskólnikov tinha razões para considerar a questão resolvida. A sua casuística, como uma lâmina afiada, cortara todas as objeções, e não as encontrando já no espírito, tentava encontrá-las fora dele. Dir-se-ia que, impulsionado por um poder irresistível e sobre-humano, procurava a todo o transe um ponto fixo a que se agarrasse. Os acontecimentos operaram nele de uma forma absolutamente automática; tal como um homem que, apanhado pelo casaco nas rodas de uma engrenagem, ficasse logo preso pela própria máquina.

O que mais o preocupava e aquilo em que muitas vezes pensava era a razão porque todos os crimes são descobertos com tanta facilidade, bem como a pista de quase todos os criminosos.

Chegou a diversas conclusões curiosas. A seu ver, a principal razão do facto consistia menos na impossibilidade material de ocultar o crime do que na própria personalidade do criminoso: num grande número de casos este experimentava, na ocasião do crime, uma diminuição da vontade e do entendimento e era por isso que procedia com uma leviandade pueril, uma rapidez extraordinária, quando mais necessárias lhe eram a circunspeção e a prudência.

Raskólnikov comparava este eclipse das faculdades intelectuais e o desfalecimento da vontade a uma afeção mórbida que se manifestava a pouco e pouco, que atingia o máximo de intensidade pouco antes de praticado o crime e que subsistia sob a mesma forma durante o ato e ainda depois — mais ou menos tempo conforme os indivíduos — para terminar em seguida, como todas as doenças. Um ponto sobre que tinha dúvida era se a doença determinava o crime ou se o próprio crime, em virtude da sua natureza, não seria sempre acompanhado de algum fenômeno mórbido. Todavia Raskólnikov não se sentia ainda em estado de resolver esta questão.

Raciocinando assim, persuadiu-se de que estava ao abrigo de semelhantes desordens morais que conservaria sempre a inteligência e a vontade enquanto praticasse o atentado, pela simples razão de que esse atentado «não era um crime». Passaremos sobre os argumentos que o levaram a esta última conclusão, limitando-nos a dizer que, nas suas preocupações, o lado prático, as dificuldades meramente materiais, ficaram em último plano. «Conserve eu a serenidade e a força de vontade, quando chegar o momento, e triunfarei de todos os obstáculos...» Porém não se decidia. Confiava menos do que nunca na persistência das suas resoluções e, quando chegou o momento, despertou como de um sonho.

Não chegara ainda ao fundo da escada quando uma insignificante circunstância o desnorteou. No patamar onde a hospedeira residia encontrou aberta, como sempre, de par em par, a porta da cozinha e olhou para dentro: não estaria lá a dona da casa, na ausência da Nastásia, e quando não estivesse, teria a porta do quarto bem fechada? Não o veria, quando entrasse a buscar o machado? Era disso que pretendia certificar-se. Ficou portanto admirado ao ver que Nastásia se encontrava na cozinha, tirando roupa de um cesto e estendendo-a numas cordas. Quando o nosso homem se aproximou, a rapariga, interrompendo o trabalho, voltou-se e fitou-o até ele desaparecer.

Raskólnikov desviou os olhos e passou, fingindo não ter reparado. Lá fora tudo por água abaixo: não tinha machado! Esta contrariedade abalou-o.

«Como me persuadi», pensava ele, descendo os últimos degraus da escada, «de que nesta ocasião a Nastásia devia estar ausente? Como se me encasquetou isto na cabeça?»

Sentia-se sucumbido. Despeitado, teve vontade de se rir de si próprio. Em todo o seu ser refervia uma cólera selvagem.

Parou indeciso no portal. Ir para a rua sem destino? Não estava disposto a isso. Por outro lado era muito desagradável voltar a subir e ir meter-se no quarto. «E pensar que perdi uma ocasião como esta!», resmungou, de pé, em frente do cubículo do porteiro, cuja porta estava aberta.

De repente estremeceu. No escuro do compartimento, a dois passos, brilhava qualquer coisa debaixo de um banco, à esquerda... Raskólnikov olhou em redor. Ninguém. Aproximou-se com cautela do cubículo, desceu os dois degraus e chamou em voz baixa pelo porteiro. «Bem, não está cá, mas não deve ter ido para longe, porque deixou a porta aberta». Com a rapidez do relâmpago correu para o machado — era na verdade um machado — e tirou-o de baixo do banco, onde estava entre duas achas. Colocou-o no nó corredio, meteu as mãos nos bolsos e saiu. Ninguém o vira? «Não foi a inteligência que me ajudou neste lance, foi o diabo!», pensou, com um sorriso estranho. O feliz acaso que acabava de o auxiliar contribuiu muitíssimo para o animar.

Na rua caminhou tranquilamente, gravemente, sem se apressar, receando causar suspeitas. Não olhava para ninguém e procurava mesmo atrair o menos possível a atenção. De súbito, pensou no chapéu. «Meu Deus! Anteontem tive dinheiro e podia ter comprado um boné!» E do fundo da sua alma rompeu uma praga.

Olhando por acaso para uma loja verificou serem sete horas e dez minutos. O tempo urgia e no entanto não podia deixar de dar uma volta, porque não queria que o vissem chegar a casa da velha por aquele lado.

Há dias, quando tentava representar na mente a situação em que se encontrava agora, parecia-lhe, por vezes, que devia estar muito assustado. Ao contrário, porém, da sua espectativa, não sentia receio algum. No espírito borbulhavam-lhe pensamentos estranhos ao seu desígnio, mas de curta duração. Quando passou junto do jardim Ionssoupov, pensou na utilidade de estabelecer em todas as praças públicas fontes que refrescassem a atmosfera. Depois, por uma série de insensíveis transições, pensou que se o Jardim de verão tivesse a extensão do Campo de Marte e ligasse com o Jardim do Palácio Miguel seria uma maravilha...

«É talvez desta forma que as pessoas levadas ao suplício fixam o pensamento em todas as coisas que encontram no caminho...» Procurou afastar esta ideia. Entretanto ia-se aproximando; o portão estava à vista. De súbito ouviu uma badalada. «Já serão sete horas e meia? É impossível. Deve estar adiantado!»

Mais uma vez o acaso o favoreceu. No momento em que chegava em frente da casa, um grande carro com feno passava pelo portão, ocupando-o em quase toda a largura. Raskólnikov pôde transpor o limiar sem ser visto, deslizando pelo espaço entre o carro e o umbral.

Logo que entrou no pátio, cortou à direita. Do outro lado do carro uns homens questionavam, gritando. Não o viram. Muitas das janelas que davam para o enorme saguão estavam abertas, mas Raskólnikov nem ergueu a cabeça: não teve coragem. O seu primeiro movimento foi alcançar a escada que levava aos aposentos da velha.

Respirando e pondo a mão sobre o coração para amortecer as violentas palpitações, preparou-se para subir a referida escada, depois de verificar que o machado estava bem seguro no nó corredio. A cada momento aplicava o ouvido. A escada estava deserta e as portas fechadas. Não encontrou ninguém. No segundo andar estava aberto um compartimento desabitado no qual trabalhavam uns pintores, que também não o viram. Parou um instante, refletiu e continuou a subir. «Seria melhor que ali não estivessem, mas... por cima ainda há dois andares...»

Chegara enfim ao quarto andar, à porta de Alena Ivanovna. A casa em frente estava desocupada. No terceiro andar, a divisão situada por baixo daquela que a velha habitava encontrava-se também desocupada; o bilhete existente na porta já lá não estava, porque o inquilino havia mudado. Raskólnikov sufocava. Houve um momento em que hesitou: «Não faria melhor indo-me embora?» Deixando porém a pergunta sem resposta, pôs-se à escuta: em casa da usurária não se ouvia o menor ruído. Na escada também reinava o mais absoluto silêncio. Depois de escutar por certo tempo, Raskólnikov lançou de novo um olhar em volta e apalpou o machado. «Não estarei muito pálido? Não se me notará a perturbação?», pensou. «Ela é desconfiada. É melhor deixar passar algum tempo para serenar».

Em vez de diminuírem, as pulsações do coração redobravam-lhe de violência. Não pôde esperar mais e, deitando a mão ao cordão da campainha, puxou. Segundos depois voltou a tocar com mais força. Ninguém respondeu. Puxar pela campainha muitas vezes era inútil e comprometedor. Por certo a velha, como estava só em casa e era desconfiada, não queria abrir. Raskólnikov conhecia os hábitos de Alena Ivanovna e aplicou de novo o ouvido à porta. As circunstâncias teriam desenvolvido nele uma especial faculdade de perceção — o que, regra geral, é difícil de admitir! — ou de facto seria o ruído facilmente percetível? Como quer que fosse, distinguiu que umas mãos se pousavam com cuidado no puxador e um vestido roçava pela porta. Pela parte de dentro alguém fazia o mesmo que ele: escutava junto da fechadura, procurando dissimular a sua presença.

De propósito fez barulho, proferiu algumas palavras e tocou a campainha, pela terceira vez e devagar, como quem não está impaciente.

Esse minuto deixou a Raskólnikov uma recordação imperecível. Mais tarde, ao pensar nele, não compreendia como pudera proceder com tanta astúcia quando sentia uma emoção tal que o privava por instantes de todas as faculdades intelectuais e físicas. Momentos depois percebeu que corriam o fecho.

Fiódor Dostoiévski: Crime e Castigo

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