Читать книгу Fiódor Dostoiévski: Crime e Castigo - Fiódor Dostoievski - Страница 13

Capítulo 1

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Raskólnikov esteve deitado durante muito tempo. Às vezes parecia sair do seu torpor e então notava que a noite ia adiantada. Não lhe acudia contudo a ideia de se levantar. Por fim notou os primeiros alvores do dia. Estendido de costas, não conseguira ainda libertar-se do letargo que pesava sobre ele. Gritos horríveis de desespero, soltados na rua, chegaram aos seus ouvidos; deviam ser os que ouvia todas as noites, às duas horas, debaixo da sua janela. Desta vez acordaram-no. «Ah! são os bêbedos que saem das tabernas», pensou ele. «São duas horas». Sentia uma impressão estranha, como se alguém o erguesse do sofá. «Será possível que já sejam duas horas?» Sentou-se e, sem querer, recordou-se de tudo.

Nos primeiros momentos julgou que perdia o juízo. Percorria-lhe o corpo uma terrível sensação de frio, originada pela febre que o acometera durante o sono. Tremia tanto que os dentes batiam uns contra os outros. Abriu a porta e escutou. No prédio todos dormiam. Lançou em volta de si um olhar espavorido. Como se esquecera de correr o fecho da porta quando entrara? Como se deitara sobre o sofá, com o chapéu na cabeça? Lá estava ele no chão, para onde rolara, junto do travesseiro. «Se alguém aqui entrasse o que julgaria? Que eu estava bêbedo ou...»

Correu à janela. Era já dia claro. Inspecionou-se dos pés à cabeça para verificar se o fato não estava manchado. Não podia confiar porém nessa inspeção incompleta. Despiu-se e passou nova revista à roupa, reparando em tudo com minuciosidade. Por três vezes recomeçou esse exame. Salvo umas gotas de sangue coalhado na parte inferior das calças, nada descobriu.

Pegou num canivete e cortou as extremidades franjadas das calças. Lembrou-se depois que tinha nas algibeiras a bolsa e os objetos que tirara do cofre da velha! Não pensara ainda neles e menos em escondê-los em qualquer parte.

Num momento despejou tudo sobre a mesa. Em seguida, tendo voltado os bolsos para se certificar de que nada lá ficara, levou todo o roubo para um canto do aposento, onde o forro que revestia a parede estava roto. Foi aí, debaixo do papel, que guardou as joias e a bolsa. «Pronto! Ficam em bom sítio!», pensou, satisfeito, erguendo-se um pouco e olhando com ar pasmado para o canto onde o forro, aluído, mostrava um grande vão. Porém logo um tremor convulso lhe agitou os ombros: «Meu Deus!», murmurou com desespero. «O que terei eu? Estará aquilo bem escondido? Será assim que se escondem as coisas?»

De facto, não contara com as joias. Pensara apenas em lançar mão do dinheiro da velha. Assim, a necessidade de esconder o roubo encontrava-o desprevenido.

«Mas agora, neste momento, terei razões para estar satisfeito?», pensou. «Será assim, realmente, que se escondem as coisas? Parece que a razão me foge!»

Extenuado, deixou-se cair sobre o sofá, sentindo de novo um arrepio. Quase sem querer, pegou num casaco de inverno, em tiras, que estava sobre uma cadeira e cobriu-se. Logo o sono se apoderou dele, acompanhado de delírio. Não teve mais a noção das coisas.

Cinco minutos depois acordou aflitíssimo e o seu primeiro movimento foi inclinar-se cheio de angústia sobre a roupa. «Como me deixei adormecer outra vez sem ter posto tudo em ordem! Porque ainda não fiz nada! O nó está na mesma pregado à manga do casaco. Não me lembrei disso. É uma prova esmagadora!» Arrancou a faixa de pano, rasgou-a em pedaços e meteu-a no embrulho que lhe servia de travesseiro. «Estes trapos não podem causar suspeitas... pelo menos na minha opinião!», repetiu ele, de pé, no meio do quarto, E com uma atenção que o esforço tornava penosa, olhou em redor para se certificar de que nada lhe esquecera.

Sofria de uma maneira horrível ao convencer-se de que tudo o abandonava: a própria memória, a mais elementar prudência...

«Será isto o princípio do castigo? É isso, é!»

De facto as franjas das calças, que cortara, estavam no chão, no meio do quarto, expostas ao olhar de quem ali entrasse.

«Onde tenho eu a cabeça?», exclamou, desanimado.

Acudiu-lhe então uma ideia singular: pensou que o fato estava talvez enodoado do sangue e que o enfraquecimento das suas faculdades não lhe permitira distinguir as manchas, como se lembrou ainda que a bolsa podia estar também ensanguentada. «Mas então a algibeira deve estar suja de sangue, porque a bolsa estava húmida quando a guardei!» Puxou logo o forro da algibeira, que na verdade tinha nódoas. «Ao menos o raciocínio ainda não me abandonou por completo. Não perdi, portanto, nem a memória, nem a reflexão. Se as tivesse perdido, como me lembraria disto?», pensou triunfante, soltando um fundo suspiro de satisfação. «Tive apenas um acesso febril, que por instantes me perturbou a inteligência.»

E arrancou o forro da perna esquerda das calças. Nesse momento um raio de luz incidiu na bota esquerda. Pareceu-lhe descobrir um indício revelador. Descalçou-a. «Era na verdade um indício! A ponta da bota estava manchada de sangue. Com certeza pus, sem querer, o pé no sangue empapado... Como hei de arranjar isto? Como hei de livrar-me desta bota, destas franjas, do forro da algibeira?»

E deixou-se ficar no meio do quarto, tendo nas mãos todos esses objetos denunciadores.

«Se atirasse tudo ao fogão? Se calhar vão lá procurar... E se queimasse isto? Mas como hei de eu queimar isto? Não tenho fósforos... O melhor é deitar tudo fora», disse, sentando-se no sofá. «E já, sem perda de um momento!» Não obstante, em vez de pôr em prática essa resolução, encostou mais uma vez a cabeça ao travesseiro. Sentiu novo arrepio e voltou a embrulhar-se nos farrapos. Durante muito tempo, horas mesmo, no seu espírito fixou-se esta ideia: «É preciso ir já atirar com isto para qualquer parte!» Quis levantar-se, mas não pôde. Por fim, umas pancadas vibradas com violência na porta arrancaram-no a esse torpor.

Era Nastásia.

— Anda, abre, se és vivo! — gritou ela. — Estás sempre a dormir. Passas dias inteiros enroscado como um cão. És tal e qual, tal e qual um cão! Abre, não ouves? Já lá vão as dez horas.

— Talvez não esteja — disse uma voz de homem.

«Ah! é o porteiro... Que quererá ele?»

Estremeceu e sentou-se no sofá. O coração parecia querer saltar-lhe fora do peito.

— Então quem havia de fechar a porta com o fecho? — replicou Nastásia. — O senhor fechou-se! Tem talvez receio de que o raptem! Abre, anda, acorda!

«Que quererão eles? A que virá o porteiro? Está tudo descoberto. Devo resistir ou abrir a porta? Que vão para o diabo!»

Ergueu-se um pouco, estendeu o braço e correu o fecho. O quarto era tão pequeno que, mesmo deitado no sofá, Raskólnikov podia abrir a porta.

Nastásia e o porteiro entraram.

A rapariga fitou o hóspede com um modo estranho. Raskólnikov olhou para o porteiro, como quem perdeu de todo a esperança, e este estendeu-lhe em silêncio um papel cinzento, dobrado pelo meio e lacrado.

— É uma citação do comissariado — disse ele.

— De que comissariado?

— Do da polícia, naturalmente. Já se sabe que de outro não podia ser.

— Chamam-me à polícia! Porquê?

— Não sei. Como o chamam, tem de vir.

Examinou com atenção o inquilino, olhou à sua volta e ia a sair quando Nastásia disse, olhando para Raskólnikov:

— Parece que estás pior!

A estas palavras o porteiro voltou-se.

— Desde ontem que tem febre.

Raskólnikov não respondeu, conservando o papel na mão, sem o abrir.

— Ora deixa-te estar — disse a criada compadecida, vendo que se ia erguer. — Estás doente? Não vás! Não será coisa de urgência. Que tens aí na mão?

Raskólnikov olhou: tinha na mão direita as franjas das calças, a bota e o forro arrancado da algibeira. Adormecera agarrado a tudo isso. Mais tarde, procurando a explicação do caso, lembrou-se de que estivera desfalecido devido a um acesso de febre e que, depois de ter apertado tudo na mão, adormecera profundamente.

— Dorme agarrado a uns trapos, como se fossem um tesouro! — E, dizendo isto, Nastásia estorcia-se com o riso nervoso que lhe era peculiar.

Raskólnikov escondeu, num gesto rápido, debaixo da roupa, tudo quanto tinha nas mãos e fitou a criada com um olhar penetrante. Conquanto não se sentisse em estado de refletir, compreendia que não se lhe dirigiam daquela forma se soubessem tudo. «Mas a polícia?»

— Queres chá? Queres que to traga? Ainda há lá uma gota...

— Não. Vou já à polícia — balbuciou.

— Nem tens força para descer a escada!

— Devo lá ir...

— Faz o que quiseres.

E a rapariga saiu atrás do porteiro. Raskólnikov foi logo examinar à janela as franjas das calças e a ponta da bota: «Têm manchas, mas não se distinguem: a lama e o atrito encobrem a cor. Quem não souber, não dá por isso. Por consequência a Nastásia, do lugar onde estava, não podia notar coisa alguma. Graças a Deus!» Então, com as mãos trémulas, abriu o papel e leu-o repetidas vezes, acabando no final por compreender. Era uma citação redigida nos termos do costume: o comissário da polícia do bairro intimava Raskólnikov a apresentar-se no comissariado às nove horas e meia.

«Quando chegou a citação? Por mim, nada tenho com a polícia... E logo hoje», pensou, sentindo-se dominado por uma horrível ansiedade. «Senhor, oxalá que isto acabe o mais depressa possível!» E quando ia prosternar-se para rezar, desatou a rir, não da prece, mas de si mesmo. Começou a vestir-se. «Vou perder-me! mas deixá-lo, acabou-se! Vou calçar a bota! Afinal, com a poeira das ruas, as manchas cada vez desaparecerão mais». Porém, apenas a acabou de calçar, cheio de receio e repugnância, descalçou-a logo.

Refletindo em seguida que não tinha outras botas, voltou a calçá-la, sorrindo. «Tudo isto é condicional, relativo e talvez até haja apenas desconfiança e nada mais». Esta ideia, a que se agarrava sem convicção, não o impedia de sentir um tremor geral. «Vamos! Até que enfim me calcei!» Todavia a hilaridade deu lugar à prostração. «Não! É demasiado para as minhas forças...», pensou. As pernas vergavam-se-lhe. «É medo», disse de si para si.

O calor atordoava-o. «É uma cilada! Arranjaram este pretexto para me apanharem. Quando lá chegar, vão direitos à questão», continuou ele com os seus botões, dirigindo-se para a escada. «O pior é que estou meio dementado e posso cair nalguma indiscrição...»

Já na escada, lembrou-se que os objetos roubados estavam mal-escondidos no forro da parede. «Talvez me chamem de propósito para virem revistar o quarto durante a minha ausência!», pensou. Estava no entanto tão desalentado, aceitava a hipótese da sua prisão com um tal desprendimento que essa apreensão deteve-o apenas um segundo.

«Oxalá que isto acabe depressa!»

Chegando à esquina da rua, por onde na véspera seguira, lançou um olhar furtivo e inquieto na direção da casa. Desviou porém logo os olhos.

«Se me interrogarem, talvez confesse», pensou ao aproximar-se do comissariado.

A repartição mudara há pouco para o quarto andar de uma casa situada a um quarto de versta da sua habitação.

Antes da polícia se instalar na nova casa, Raskólnikov tivera uma vez de ajustar contas com ela, mas por um caso insignificante e havia já muito tempo. Quando transpôs o portal, viu à direita uma escada por onde descia um moujik com um livro na mão. «Naturalmente é um porteiro. A repartição deve, portanto, ser aqui». E subiu ao acaso. Não queria pedir indicações.

«Entro, ajoelho-me e conto tudo...», pensava enquanto subia ao quarto andar.

A escada era estreita e íngreme, coberta de uma lamice escorregadia. O calor sufocava. Os contínuos subiam e desciam, sobraçando livros, cruzando com agentes de polícia e com grande número de pessoas que tinham assuntos a tratar com a autoridade. A porta do comissariado estava aberta de par em par.

Raskólnikov entrou e parou na primeira sala, onde alguns moujiks esperavam.

Ali, como na escada, o calor era intensíssimo; além disso, a casa, pintada de fresco, tresandava a óleo até provocar náuseas. Depois de esperar um instante, Raskólnikov resolveu-se a entrar na sala imediata. Seguiam-se muitos cubículos estreitos e baixos. O rapaz estava cada vez mais intrigado. Ninguém reparava nele. Na segunda sala trabalhavam alguns amanuenses, um pouco mais bem vestidos do que ele. Toda essa gente tinha uma aparência singular. Dirigiu-se a um deles:

— O que quer?

Mostrou a citação.

— É estudante? — interrogou o amanuense depois de lançar os olhos sobre o documento.

— Fui, fui estudante.

O empregado olhou para ele, mas sem curiosidade. Era um homem de cabeleira desgrenhada que parecia dominado por uma ideia fixa.

«Por este não chego a saber nada. Tudo lhe é indiferente», pensou Raskólnikov.

— Dirija-se ao chefe da repartição — disse o amanuense indicando com o dedo o último compartimento.

Raskólnikov entrou. Esta divisão, a quarta, era estreita e estava cheia de gente um pouco mais bem vestida do que aquela que vira até ali. Entre os assistentes havia duas senhoras. Uma delas estava vestida de preto, mas muito pobre. Sentada em frente do funcionário escrevia qualquer coisa que este lhe ditava.

A outra era uma criatura bastante cheia, rosto avermelhado, trajando com luxo: um enorme broche que trazia no peito atraía as atenções. Estava de pé, um pouco afastada, na atitude de quem espera. Raskólnikov entregou a intimação ao funcionário. Este lançou-lhe um olhar rápido e disse-lhe:

— Espere um pouco. — E continuou ditando à senhora de luto.

O rapaz respirou mais livremente. «Decerto não foi por causa daquilo que me chamaram!» A pouco e pouco foi recuperando a serenidade. Pelo menos diligenciava, tanto quanto possível, encher-se de ânimo.

«A menor indiscrição, a mais pequena imprudência, bastam para me trair! Hum, o diabo é não se poder respirar aqui», acrescentou. «Sufoca-se! Tenho a cabeça azoada como nunca...»

Sentia um horrível mal-estar e receava não poder manter-se senhor de si. Quis fixar o pensamento em qualquer coisa diferente, porém não conseguiu. A sua intenção fixava-se somente no chefe da repartição. Queria decifrar a fisionomia daquela criatura. Era um rapaz de vinte e dois anos, cujo rosto trigueiro, de uma grande mobilidade, o fazia parecer mais velho. Vestia com elegância, tinha o cabelo apartado até à nuca por uma risca feita com arte. Nas suas mãos, tratadas a preceito, brilhavam alguns anéis e sobre o colete pendia uma corrente de ouro. Dirigiu-se, em francês, a um estrangeiro que ali se encontrava, falando com toda a correção.

— Luísa Ivanovna, sente-se — disse ele à senhora ricamente vestida, que continuava de pé, conquanto tivesse uma cadeira ao lado.

— Ich danke — respondeu ela, e sentou-se, compondo as saias, impregnadas de perfumes.

Espalhado em volta da cadeira, o vestido de seda azul, guarnecido de rendas brancas, ocupava quase metade da pequena sala. A dama parecia contrariada por exalar tanto perfume e ocupar tanto espaço. Sorria com expressão ao mesmo tempo tímida e audaciosa; no entanto a sua inquietação era evidente.

A senhora de luto levantou-se. No mesmo instante entrou com estrondo um oficial, de aspeto resoluto, que movia os ombros a cada passo que dava. Atirou para cima da mesa com o capacete e sentou-se numa cadeira de braços.

Ao vê-lo, a dama luxuosamente vestida levantou-se e fez uma grande vénia. O oficial não lhe ligou a menor importância, mas ela não ousou voltar a sentar-se na sua presença. Este personagem era o adjunto do comissário da polícia. Tinha grandes bigodes ruivos espetados e feições delicadas, porém pouco expressivas, denunciando apenas uma certa audácia. Olhou de lado para Raskólnikov, não sem um certo ar de indignação. Conquanto fosse muito modesta a aparência do nosso herói, a sua atitude contrastava com a miséria do vestuário. Esquecendo a mais rudimentar noção de prudência, Raskólnikov afrontou com tanta altivez o olhar do oficial que este se sentiu irritado.

— Que queres? — interrogou ele, com certeza admirado por um maltrapilho não baixar os olhos ante o seu olhar fulminante.

— Mandaram-me aqui vir... fui citado... — respondeu Raskólnikov.

— É o estudante a quem exigem o dinheiro — explicou o chefe da repartição, desviando a atenção da papelada que tinha diante de si. — Aqui tem — e estendeu a Raskólnikov um processo, designando-lhe certo ponto. — Leia.

«Dívida? Que dívida?», pensou ele. «Então não é por aquilo!» E estremeceu de alegria. Experimentou um alívio extraordinário, inexprimível.

— Mas para que horas foi citado, senhor? — perguntou o oficial, cujo mau humor aumentava. — Intimam-no para as nove horas e aparece às onze?

— Entregaram-me esse papel há um quarto de hora — respondeu logo Raskólnikov, já irritado. — Doente, com febre, não foi sem custo que aqui vim!

— Não grite tanto!

— Não grito, estou falando no meu natural. O senhor é que está gritando. Sou estudante e não admito que me falem desse modo.

Esta resposta encolerizou o oficial a tal ponto que por momentos nem pôde proferir palavra. Dos seus lábios saíam apenas sons inarticulados. Deu um salto na cadeira.

— Cale-se, pois não sabe que está na presença da autoridade. Não seja insolente.

— O senhor também está na presença da autoridade — replicou com aspereza Raskólnikov — e não só grita, como fuma. É, portanto, o senhor quem nos ofende a todos.

Sentia um grande alívio ao proferir estas palavras.

O chefe da repartição sorria, olhando os interlocutores. O petulante oficial ficou por momentos pasmado.

— O que tem o senhor com isso? — perguntou ele por fim, afetando grande serenidade para ocultar o seu desconserto. — Faça a declaração que lhe pedem, ande! Mostre-lhe isso, Gregorievitch. Há queixas contra si. Não paga o que deve. É uma boa sanguessuga!

Raskólnikov não o escutava já. Pegara no papel, impaciente por descobrir a decifração daquele enigma. Leu primeira e segunda vez e não entendeu.

— O que é isto? — perguntou ele ao chefe da repartição.

— É um documento de dívida do qual lhe pedem o pagamento. Pode pagá-lo desde já com os juros ou declarar quando poderá efetuar o pagamento. Neste caso é necessário comprometer-se a não se ausentar da capital e a não vender nem sonegar os seus haveres até integral pagamento. Pelo que diz respeito ao credor, esse pode vender-lhe os bens e persegui-lo com o rigor da lei.

— Mas eu... eu não devo nada a ninguém.

— Não temos nada com isso. Vieram aqui entregar uma letra protestada, no valor de cento e quinze rublos, assinada pelo senhor, há nove meses, à senhora Zarnitzine, viúva de um professor, e que essa senhora entregou em pagamento ao conselheiro Tchebarrov. Mandámo-lo, portanto, intimar para que viesse prestar as suas declarações.

— Essa senhora é a minha hospedeira!

— E então, o que tem isso?

O chefe da repartição olhou, com um sorriso indulgente e ao mesmo tempo triunfante, para este noviço que ia aprender, à sua custa, o processo usado para com os devedores. Contudo, que lhe importava agora a letra? Que importância tinha a reclamação da hospedeira? Valia lá a pena apoquentar-se com isso, ligar-lhe a menor atenção!? Estava ali lendo, escutando, respondendo, interrogando, mas fazendo tudo isso maquinalmente. A certeza de estar salvo, a satisfação de ter escapado a um perigo iminente, eis o que nessa ocasião predominava no seu espírito.

Por enquanto as precauções e os cuidados estavam afastados. Foi um minuto de verdadeiro alívio, de uma satisfação indiscritível. Entretanto nessa ocasião rebentou uma verdadeira tempestade na repartição. O oficial, que não engolira ainda a afronta ao seu orgulho, procurava um desforço. E começou de repente a tratar com indelicadeza a senhora vestida com elegância que, desde que ele fizera a sua imponente entrada, não cessara de o olhar com um sorriso estúpido.

— E tu, desvergonhada? — vociferou ele, numa grande gritaria. A senhora de luto saíra já. — O que sucedeu a noite passada em tua casa? Hein? Não deixas de dar escândalo! Sempre rixas e bebedeiras! Apetece-te ir para a cadeia? Já te disse que acabaria por perder a paciência. És de facto incorrigível!

O próprio Raskólnikov deixou cair o papel e examinou espantado a elegante dama, tratada com tão pouca cerimônia. Não tardou porém a compreender do que se tratava e a história começou a interessá-lo. Escutava aquilo com prazer, dava-lhe até vontade de rir. Sentia os nervos irritados.

— Ilia Petrovitch! — atalhou o chefe da repartição, reconhecendo logo que seria inoportuna a sua intervenção naquele momento porque sabia, por experiência própria, que era impossível retê-lo quando o oficial seguia naquela carreira desenfreada.

A elegante dama tremera a princípio, sentindo a tempestade desencadear-se-lhe sobre a cabeça; no entanto, coisa singular, à medida que ia ouvindo, a fisionomia tomava-lhe uma expressão cada vez mais sorridente, não tirando os olhos do terrível oficial! A cada momento fazia vénias e esperava a oportunidade para tomar a palavra.

— Em minha casa não houve gritos nem rixas, senhor — apressou-se ela a dizer logo que lhe foi possível. Falava bem o russo, mas com acentuação alemã. — Não se deu nenhum escândalo. Aquele homem apareceu lá bêbedo e pediu três garrafas de cerveja. Pôs-se a tocar piano com os pés, o que ó impróprio de uma casa respeitável como a minha, e partiu as teclas. Observei-lhe que não devia proceder daquela forma, e então agarrou numa garrafa e começou a bater com ela em toda a gente. Chamei logo Karl, o porteiro. Assim que o viu, atirou-lhe com a garrafa à cabeça e fez outro tanto à Henriqueta. A mim deu-me cinco bofetadas. É inacreditável tal procedimento numa casa tão séria, senhor oficial. Gritei por socorro. Ele abriu a janela que deita sobre o canal e começou a grunhir como um porco. Que vergonha! Isto atura-se, porventura? Ir para a janela grunhir como um porco! Forrom! Forrom! Forrom! O Karl puxou-o para dentro e com efeito nessa ocasião arrancou-lhe uma aba do casaco. Reclamou por tal quinze rublos de indemnização. Para o calar, paguei do meu bolso cinco rublos pela aba, senhor oficial. Foi esse malcriado quem fez escândalo!

— Basta, basta! Já te disse, já te repeti...

— Ilia Petrovitch! — atalhou outra vez o chefe da repartição.

O oficial lançou-lhe um olhar rápido e viu-o abanar cabeça.

— Pois bem, pelo que te diz respeito, nada mais tenho a dizer-te, veneranda Luísa Ivanovna — continuou o oficial. — Se houver mais algum escândalo na tua respeitável casa, meto-te na jaula, como vulgarmente se diz. Entendeste? Vai com Deus e lembra-te de que te não perco de vista.

Com amabilidade requintada, Luísa Ivanovna cumprimentou para todos os lados, mas, quando ia recuando e fazendo mesuras, esbarrou de costas com um garboso militar, de porte risonho e expressivo, possuidor de umas magníficas suíças louras. Era o comissário de polícia, Nikodim Fomitch.

Luísa Ivanovna curvou-se quase até ao chão e saiu com passinhos miúdos.

— Outra vez o raio, os relâmpagos, o trovão, a tromba de água, a tempestade! — disse, em tom jovial, Nikodim Fomitch ao seu adjunto. — Excitaram-te e desesperaste-te! Ouvi-te na escada.

— Então que fazer! — disse Ilia Petrovitch, mudando-se com uma enorme papelada para outra mesa. — Aquele senhor estudante, ou ex-estudante, não paga o que deve, assina letras e recusa abandonar a casa que habita. Temos várias queixas contra ele, e é este cavalheiro que se ofende por eu fumar um cigarro na sua presença. Antes de achar que os outros lhe faltam ao respeito, não seria conveniente respeitar-se mais a si próprio? Olhe para ele, não parece que o seu aspeto requer a maior consideração?

— A pobreza não é vício. Bem sabemos quanto o meu amigo Pólvora se incendeia com facilidade! Provavelmente julgou-se ofendido e não pôde conter-se — continuou Nikodim Fomitch, dirigindo-se a Raskólnikov. — Mas não andou bem. Este senhor é uma excelente pessoa, afirmo-lho eu, porém um pouco arrebatado! Exalta-se, enfurece-se, mas depois de ter desabafado, acabou-se tudo. É um coração de ouro! No regimento chamavam-lhe «Tenente Pólvora...»

— E que regimento aquele! — exclamou Ilia Petrovitch, sensibilizado com as últimas palavras do comissário.

Raskólnikov desejou dizer-lhe alguma coisa agradável.

— Queira desculpar, senhor — começou, dirigindo-se a Nikodim Fomitch. — Coloquem-se os senhores na minha situação... Estou pronto a dar a este senhor todas as explicações se por acaso fui incorreto com ele. Sou um estudante doente, pobre, esmagado pela miséria. Abandonei a Universidade porque nesta ocasião não tenho meios de subsistência. Espero dentro em pouco receber dinheiro... Minha mãe e minha irmã residem na província de... Por estes dias devem-me mandar dinheiro e então pagarei. A minha hospedeira é uma boa mulher, todavia, como já não dou lições e há quatro meses não lhe pago, não me dá de jantar. Não compreendo esta história da letra! Então quer que lhe pague nesse momento? Não o posso fazer! Os senhores bem vêm que não…

— Não temos nada com isso... — observou o chefe da repartição.

— Também é essa a minha opinião. Mas dê-me licença para me explicar... — continuou Raskólnikov, dirigindo-se sempre a Nikodim Fomitch e não ao chefe. Diligenciava assim despertar a atenção de Ilia Petrovitch, conquanto este afetasse nada ouvir e fingisse ocupar-se em absoluto com os seus papéis. — Deixe-me dizer-lhe que vivo em casa dela há quase quatro anos, desde que cheguei da província, e em tempos… afinal, porque não hei de confessar?... comprometi-me a casar com a filha. Fiz-lhe uma promessa formal nesse sentido. Ela agradava-me, ainda que não estivesse perdido de amores. Em resumo, era um criançola; a hospedeira deu-me largas e levei uma vida... pouco regular...

— Ninguém lhe pede essas explicações e não temos tempo para lhas ouvir — atalhou de um modo insolente Ilia Petrovitch.

Raskólnikov continuou porém com animação.

— Dê-me, no entanto, licença para lhe contar como o caso se passou, posto que reconheça a inutilidade desta declaração. Há um ano essa menina morreu de febre tifoide. Continuei a ser hóspede da senhora Zarnitzine, e quando foi viver para a casa que agora habita disse-me, amigavelmente, que lhe merecia a maior confiança... mas que, para sua garantia, desejava que lhe assinasse uma letra de cento e quinze rublos, quantia que representava o total da minha dívida. Assegurou-me, uma vez de posse desse documento, que continuaria a conceder-me crédito ilimitado e que nunca, «nunca (foram estas as suas palavras) negociaria essa letra»... Agora que não tenho lições, agora que não tenho que comer, vem exigir o pagamento. Como se há de classificar este procedimento?

— Todos esses pormenores, senhor, nada importam — replicou com dureza Ilia Petrovitch. — O que é necessário é fazer a declaração que lhe exigiram. O resto, a história dos seus amores e as outras não vêm ao caso.

— Oh! que severidade — interrompeu Nikodim Fomitch, que se sentara à secretária e folheava vários papéis um tanto contrariado, ao que parecia.

— Escreva — intimou o chefe da repartição a Raskólnikov.

— Mas o que hei de escrever? — perguntou este, num tom sacudido.

— Eu vou ditar.

Raskólnikov teve a impressão que, depois da sua confissão, o chefe da repartição tratava-o com mais desdém. Contudo, caso singular, passou a ser-lhe indiferente o juízo que dele fizessem, e essa mudança operou-se rápida como um relâmpago. Se refletisse por um momento, admirar-se-ia de ter podido, um minuto antes, conversar daquela forma com os empregados da polícia e levá-los até a ouvirem-lhe as suas confidências. Agora, pelo contrário, se em vez de estar cheia de gente da polícia, a sala se enchesse de repente dos seus amigos mais queridos, não encontraria talvez uma palavra para lhes dizer, tanto sentia o coração vazio de sentimentos.

Experimentava apenas a penosa sensação de um grande isolamento. Não se sentia magoado pela circunstância de Ilia Petrovitch haver sido testemunha das suas confidências; nem fora a petulância do oficial que de repente produzira na sua alma essa revolução. Que lhe importava, nessa altura, a sua própria ignomínia? Que lhe importavam aquelas fanfarronices, aqueles militares, a letra, o comissariado da polícia? Se nesse momento o condenassem a ser queimado vivo, não se comoveria, nem escutaria até ao fim a leitura da sentença.

Dava-se nele um fenômeno inteiramente novo, sem precedentes. No seu foro íntimo compreendia ou — o que era muito pior — sentia que estava para sempre afastado do convívio dos homens, que lhe era proibida qualquer expansão sentimental, como a de há pouco, que lhe era impossível sustentar qualquer conversa, não só com a gente da polícia, mas até com os seus próprios parentes. Nunca, até esse momento, experimentara sensação tão cruel.

O chefe da repartição começou a ditar a fórmula da declaração usada em tais casos: «Não posso pagar. Comprometo-me no entanto a satisfazer esse débito em... Não sairei da cidade. Não venderei nem farei cedência dos meus haveres, etc.»

— Mas o senhor não pode escrever. A pena treme-lhe na mão — observou o funcionário, olhando-o com curiosidade. — Está doente?

— Estou... Sinto que a cabeça me anda à roda... Queira continuar.

— É apenas isso. Assine.

O chefe da repartição pegou no papel e desviou a sua atenção para outros indivíduos.

Raskólnikov pousou a pena, mas em vez de se retirar encostou os cotovelos à mesa e apertou a cabeça entre as mãos. Parecia que lhe enterravam um prego no pescoço. Nessa altura acudiu-lhe uma ideia extraordinária: dirigir-se a Nikodim Fomitch e contar-lhe o caso da velha com todos os seus pormenores. Levá-lo em seguida ao seu quarto e mostrar-lhe os objetos escondidos no buraco da parede. Esta ideia dominou-o por tal forma que chegou a levantar-se para a pôr era prática. «Não será melhor refletir um momento?», pensou. «Ou devo seguir a primeira inspiração e ver-me livre deste peso quanto antes?» Hesitando, ficou como que chumbado ao chão. Entre Nikodim Fomitch e Ilia Petrovitch travou-se uma animada conversa, que Raskólnikov ouviu.

— É impossível. Ponham-nos em liberdade aos dois. Em primeiro lugar há uma série de coisas inverosímeis. Veja bem: se tivessem praticado o crime, para que haviam de chamar o porteiro? Para se denunciarem? Por astúcia? Não. Isso era de uma grande subtileza. Enfim, o estudante Pestriakov foi visto pelos dois porteiros e por uma mulher, junto do portal, na ocasião em que entrava em casa: ia com mais três, que o deixaram à porta, e, antes de se afastar, ouviram-no perguntar aos porteiros onde morava a velha. Se fosse ali para a matar, teria feito tal pergunta? Quanto a Koch, sabe-se que esteve meia hora em casa do joalheiro do rés do chão antes de ir a casa da velha. Eram oito horas menos um quarto quando o deixou para subir ao quarto andar. Agora veja…

— Todavia, nas declarações deles há coisas inexplicáveis: afirmam que bateram à porta e que esta estava fechada. Ora, três minutos depois, quando voltaram com o porteiro, a porta estava aberta!

— Aí é que está o nó górdio. Não há dúvida que o assassino estava em casa da velha e que se fechara por dentro. Tê-lo-iam agarrado se o Koch não cometesse a imprudência de ir procurar o porteiro. Foi nesse entretanto que o assassino conseguiu escapar-se. O Koch benze-se ao falar nisto. «Ah! que se lá fico, o assassino saía de repente e matava-me com o machado.» Diz que vai mandar celebrar um Te Deum. Ah! ah! ah!

— E ninguém conseguiu ver o assassino?

— E como o haviam de ver? Aquilo não é casa, é a Arca de Noé! — observou o chefe da repartição, que ia seguindo a conversa.

— O caso é claro, bastante claro — repetiu Nikodim Fomitch.

— Não é tal. Escuro e bem escuro é que ele é! — declarou Ilia Petrovitch.

Raskólnikov pegou no chapéu e ia retirar-se, mas não chegou à porta.


***


Quando voltou a si, encontrou-se sentado numa cadeira. Alguém, à direita, o amparava, e à esquerda outro indivíduo tinha na mão um copo cheio de um líquido amarelo. Nikodim Fomitch, de pé, em frente dele, observava-o com atenção. Raskólnikov levantou-se.

— Então, sente-se doente? — perguntou num tom severo o comissário.

— Há pouco, quando escrevia a declaração, mal podia segurar a pena — disse o chefe da repartição, voltando a sentar-se à secretária e recomeçando o exame da sua papelada.

— Já se sente doente há muito? — perguntou do seu lagar Ilia Petrovitch, que também folheava papéis. Como os outros, aproximara-se de Raskólnikov quando este desmaiou. Porém, vendo que o rapaz recuperava os sentidos, voltou logo para o seu lugar.

— Desde ontem — balbuciou Raskólnikov.

— Mas ontem saiu de casa?

— Saí.

— E já estava doente?

— Já!

— E a que horas saiu?

— Das sete para as oito da tarde.

— E onde foi?

— Para a rua.

— Isso é claro!

Branco como cal, Raskólnikov respondeu a todas as perguntas em tom breve e sacudido. Os seus olhos pretos e profundos não se baixaram ante o olhar de Ilia Petrovitch.

— Não vês que mal se pode ter de pé! — interveio Nikodim Fomitch. — E...

— Não tem dúvida! — respondeu em tom enigmático Petrovitch.

O comissário da polícia quis ainda dizer alguma coisa. Calou-se, porque reparou que o chefe da repartição não desviava os olhos dele. Emudeceram todos, o que não deixou de ser estranhável.

— Está bem, não queremos mais nada — disse por fim Ilia Petrovitch.

Raskólnikov dirigiu-se para a porta. Ainda não tinha saído da sala e já a conversa se estabelecera de novo, muito animada, entre os três funcionários policiais. Dominando as outras vozes, a de Nikodim Fomitch formulava perguntas. Na rua, Raskólnikov sentiu-se por completo senhor do si.

«Vão proceder desde já a uma busca!», monologou, dirigindo-se a toda a pressa para casa. «Os mariolas desconfiaram!» O terror que momentos antes experimentara dominava-o agora de novo.

Fiódor Dostoiévski: Crime e Castigo

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