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Capítulo 7

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Como da sua última visita, Raskólnikov viu que entreabriam a porta devagar e, pela fenda, dois olhos brilhantes se fixaram nele com uma expressão de desconfiança. Nessa altura a serenidade abandonou-o e cometeu um disparate de tal ordem que podia ter deitado tudo a perder.

Receando que Alena Ivanovna tivesse medo de se encontrar a sós com um indivíduo cujo aspeto não era dos mais tranquilizadores, puxou a porta para fora de forma que a velha não voltasse a fechá-la. A usurária não tentou fazê-lo, porém não largou o fecho, sendo assim arrastada para o patamar. Como se mantivesse atravessada no limiar e não deixasse a passagem livre, Raskólnikov avançou para ela. Assustada, deu um passo para trás, quis falar, mas não pôde pronunciar uma palavra e fitou o visitante com um olhar de grande espanto.

— Boa tarde, Alena Ivanovna — cumprimentou ele, no tom mais despreocupado que pôde afetar. — Trago-lhe... um objeto... mas entremos... para o avaliar. É preciso examiná-lo à luz... — E sem esperar que a velha o convidasse a entrar, passou para o quarto. A usurária seguiu-o, ao mesmo tempo que se lhe desentravava a língua.

— Meu Deus! Mas que quer? Quem é o senhor? O que deseja?

— Então, Alena Ivanovna, não me conhece? Sou Raskólnikov! Tome, é o penhor de que lhe falei no outro dia. — E apresentou-lhe o embrulho.

Alena Ivanovna ia examiná-lo, mas, reconsiderando, ergueu a cabeça, cravou um olhar penetrante e desconfiado no visitante que, com tal sem-cerimônia, se tinha introduzido em sua casa. Fitou-o assim durante um minuto. Raskólnikov julgou ler no olhar da velha uma expressão escarninha, como se desconfiasse de tudo. Sentiu que perdia o sangue-frio, que chegava a ter medo e que, se esse mudo inquérito durasse mais meio minuto, com certeza deitaria a fugir.

— Porque olha desse modo para mim, como se não me conhecesse? — interrogou ele com aspeto de zangado. — Se aceita o objeto, está muito bem; se não o quer, acabou-se, vou a outra parte. O que não é necessário é fazer-me perder tempo.

Estas palavras escaparam-lhe sem as ter premeditado.

A linguagem decidida de Raskólnikov produziu ótima impressão na velha.

— Porque tem tanta pressa, menino? E o que vem a ser isto? — perguntou ela, mirando o embrulho.

— É a cigarreira de prata de que lhe falei há dias.

A velha estendeu a mão.

— Como está pálido! E as mãos tão trémulas! Está doente, menino?

— Tenho febre — respondeu ele com secura. — Como não estar pálido se não tenho que comer! — concluiu a custo. As forças abandonavam-no de novo.

Tentou dar à resposta um tom natural. A velha aceitou o penhor.

— O que é? — perguntou ainda outra vez, tomando o peso ao embrulho e olhando o interlocutor.

— Um objeto... uma cigarreira... de prata... Veja.

— É singular, não parece de prata! E como isto está atado!

Enquanto Alena Ivanovna tentava desatar o pequeno embrulho, ia-se aproximando da luz — a despeito do calor asfixiante, pois fechara todas as janelas. — Nessa posição voltara as costas ao visitante e durante alguns momentos não se preocupou com ele. Raskólnikov desabotoou o casaco e puxou o machado, sem o tirar de todo do nó corredio, limitando-se a segurá-lo com a mão direita. Sentia que os membros se lhe paralisavam. Receou deixar cair a arma, ao mesmo tempo que a cabeça começou a andar-lhe à roda.

— Que demônio está aqui dentro — exclamou Alena Ivanovna zangada, fazendo um movimento para o lado de Raskólnikov.

Não havia um momento a perder. Tirou o machado debaixo do casaco, levantou-o no ar, segurando-o com ambas as mãos e, quase maquinalmente, porque se sentia sem forças, deixou-o cair sobre a cabeça da velha. Porém, vibrado o primeiro golpe, voltou-lhe logo a energia perdida.

Alena Ivanovna estava, como de costume, com a cabeça descoberta. Os cabelos grisalhos e raros, untados com azeite, formavam uma delgada trança, presa na nuca por um bocado de pente de chifre. O golpe fendeu-lhe a nuca, para o que contribuiu a pequena estatura da vítima, que apenas soltou um gemido e cambaleou, tendo, contudo, ainda forças para levar as mãos à cabeça, numa das quais conservava o embrulho. Então Raskólnikov, cujos braços recuperaram todo o vigor, vibrou mais dois golpes na cabeça da usurária. O sangue golfou abundante e o corpo caiu pesadamente no chão. Vendo cair a vítima, Raskólnikov recuou; mas, de repente, inclinou-se sobre o rosto da velha: estava morta. Os olhos muito abertos pareciam querer saltar das órbitas e os arrancos da agonia tinham-lhe dado às feições um aspeto horrível.

O assassino pousou o machado no chão e preparou-se para revistar o cadáver, tomando as maiores precauções a fim de não se manchar com o sangue. Recordava-se de que, na sua última visita à velha, esta tirara as chaves da algibeira direita do vestido. Estava na plena posse das suas faculdades intelectuais; não sentia vertigens nem o menor atordoamento, no entanto as mãos continuavam a tremer-lhe. Mais tarde recordou-se de que fora muito cauteloso e que tivera o maior cuidado em não se sujar... Depressa encontrou as chaves. Como da outra vez, estavam todas presas numa argola de aço.

Raskólnikov passou logo ao quarto da cama.

Este compartimento era muito pequeno. De um lado havia um grande oratório cheio de imagens e do outro um leito muito limpo, com coberta de seda, feita de retalhos e acolchoada. Junto da parede estava uma cômoda. Caso singular! Quando Raskólnikov começou a experimentar as chaves, um arrepio percorreu-lhe todo o corpo. Pensou por um momento em abandonar tudo e retirar-se, mas essa ideia durou um instante: era já tarde para recuar.

Um sorriso contraiu-lhe os lábios ao pensar em tal, para logo em seguida ter um sobressalto terrível: se por acaso a velha não estivesse morta e voltasse a si? Largou as chaves, correu para junto do corpo da velha, pegou no machado e preparou-se para descarregar novo golpe sobre a vítima; porém a arma, já erguida, não desceu. Alena Ivanovna estava morta e bem morta, não havia dúvida. Inclinando-se mais uma vez para a examinar de perto, verificou que o crânio estava despedaçado. O sangue empapava no chão. Reparando de repente num cordão que a usurária tinha ao pescoço, puxou-o com força, mas o cordão resistiu e não partiu. O assassino tentou então tirá-lo, fazendo-o descer ao longo do corpo. Foi mais feliz nesta tentativa. O cordão encontrou um obstáculo e deixou de descer. Raskólnikov levantou, cheio de impaciência, o machado, pronto a ferir o cadáver, para cortar com o mesmo golpe o nó. Resolveu no entanto não proceder com tanta brutalidade. Por fim, depois de dois minutos de esforços que lhe deixaram as mãos arroxeadas, conseguiu partiu o cordão com o gume do machado, sem tocar no cadáver. Como supusera, do cordão pendia uma bolsa a par de uma pequena medalha esmaltada e duas cruzes, uma de cipreste e outra de cobre. A bolsa, ensebada — um pequeno saco de camurça — estava cheia. Raskólnikov meteu-a na algibeira, sem verificar o conteúdo, atirou as cruzes sobre o peito da velha e, levando o machado, entrou a toda a pressa no quarto da cama.

A sua impaciência era enorme. Agarrou nas chaves e voltou à tarefa interrompida. Eram baldadas as tentativas para abrir o móvel, o que se devia atribuir mais aos repetidos enganos do que à tremura das mãos; via, por exemplo, que uma chave não servia na fechadura e teimava em fazê-la entrar. Entretanto recordou-se de uma conjetura que fizera na sua última visita: a chave grande, dentada, junta às outras mais pequenas, devia ser de algum cofre onde Alena tivesse talvez todo o seu dinheiro. Abandonando o móvel, procurou debaixo da cama, lembrando-se que é costume das velhas esconderem os pecúlios em tais sítios.

De facto, lá estava um cofre de pouco mais de um archine de comprimento, forrado de marroquim vermelho. A chave grande servia perfeitamente na fechadura. Logo que o abriu, viu sobre um pano branco uma peliça com guarnições encarnadas, debaixo da qual estava um vestido de seda e depois deste um xaile. No fundo parecia haver apenas farrapos. O assassino limpou ao marroquim vermelho as mãos ensanguentadas. «No encarnado o sangue percebe-se menos». Depois reconsiderou: «Meu Deus, estarei doido?»

Apenas porém tocou nas roupas, caiu de entre as peles um relógio de ouro. Revolveu então o conteúdo do cofre. Entre os farrapos havia vários objetos de ouro, representando, talvez, cada um deles um penhor. Eram pulseiras, cadeias, brincos, alfinetes de gravata, uns encerrados em estojos, outros embrulhados em pedaços de papel e atados com fios.

Raskólnikov não hesitou: encheu as algibeiras das calças e do casaco com as joias, sem abrir os estojos, sem tocar nos embrulhos. Porém teve de interromper-se.

Ouviu passos no quarto onde estava o cadáver. Sentiu-se gelado de pavor. Mas o ruído deixou de se ouvir. Julgou-se vítima de uma alucinação, quando, de repente, ouviu muito bem um grito, ou antes, um fraco gemido. Passado um minuto ou dois, tudo recaiu de novo num silêncio de morte. Raskólnikov sentara-se no chão, junto ao cofre, e esperava, respirando com dificuldade. De súbito estremeceu, agarrou no machado e saiu do quarto da cama.

No meio do aposento, Isabel, sobraçando um grande embrulho, contemplava com um olhar aterrado o corpo hirto da irmã. Pálida como um cadáver, parecia não ter forças para soltar um grito. À brusca aparição do assassino começou a tremer e um suor gelado inundou-lhe o rosto. Tentou erguer os braços, abrir a boca, mas não fez o menor gesto, não emitiu o menor som, e recuando a passos lentos, com os olhos fitos em Raskólnikov, meteu-se num canto. A pobre recuara sem dizer uma palavra, como se a respiração lhe faltasse. O assassino avançou para ela com o machado erguido. Os lábios da infeliz contraíram-se e tremeram como os das crianças, que têm medo, olhando fixamente o objeto que as aterra.

O terror dominava por tal forma a desgraçada que, vendo-se ameaçada pela arma, nem sequer pensou em preservar a cabeça, com esse gesto maquinal que em tais casos sugere o instinto da conservação. Afastou apenas o braço esquerdo e estendeu-o na direção do assassino, como para o desviar. O ferro abriu-lhe o crânio, fendendo toda a parte superior da fronte, até quase ao nariz. Isabel caiu como que fulminada, morta. Com a cabeça perdida, Raskólnikov pegou no embrulho que a segunda vítima trazia para logo o largar e correr para a casa de entrada.

Estava cada vez mais alterado, sobretudo desde que cometera o segundo assassinato, que não premeditara. Tinha pressa de fugir. Se naquele momento estivesse em estado de compreender melhor as coisas, se lhe tivesse sido possível calcular todas as dificuldades da situação, vê-la tão desesperada, tão horrorosa, tão absurda como de facto era, compreender quantos obstáculos tinha ainda a remover, talvez mesmo novos crimes a praticar, para poder abandonar essa casa e refugiar-se na rua, teria talvez renunciado à luta e ido, ato contínuo, denunciar-se. Não se podia dizer que fosse a pusilanimidade que o levara a isso, mas o horror do que fizera. Essa impressão ia tomando vulto a cada momento. Por coisa alguma se aproximaria agora do cofre, nem entraria no quarto.

A pouco e pouco o seu espírito preocupou-se com outros pensamentos e caiu numa espécie de vaga meditação. Por momentos o assassino parecia esquecer-se de si, ou antes, esquecer-se do principal para pensar em ninharias. Lançando os olhos para a cozinha, viu um alguidar com água: lembrou-se de se lavar e limpar o machado. O sangue tornara-lhe as mãos glutinosas. Depois de mergulhar na água o gume do machado, pegou num pedaço de sabão que estava no parapeito da janela e começou as suas limpezas. Quando acabou de lavar as mãos, ensaboou o cabo do machado, que estava também ensanguentado.

Limpou-se em seguida a uma roupa estendida a secar numa corda que atravessava a cozinha. Terminada a operação, aproximou-se da janela para examinar com cuidado o machado. Os vestígios de sangue tinham desaparecido, mas o cabo estava ainda húmido. Raskólnikov escondeu-o com cuidado debaixo do casaco, pendurando-o no nó corredio. Inspecionou depois o fato, tanto quanto permitia a fraca luz que iluminava a cozinha. À primeira vista o casaco e as calças nada apresentavam que originasse suspeitas, contudo as botas estavam manchadas de sangue. Limpou-as com um pano molhado.

Estas precauções, no entanto, não o sossegaram em absoluto, porque não podia ver bem e era possível ter-lhe passado despercebida qualquer mancha. Permanecia de braços caídos, no meio da sala, obsidiado por ideias aflitivas: o pensamento de que endoidecia, de que nesse momento estava incapaz de tomar alguma resolução e de garantir a sua segurança, de que o seu procedimento não era, porventura, o que convinha em tal situação... «Meu Deus! Devo partir, sem demora, o mais depressa possível», murmurou ele, e passou à casa de entrada, onde o esperava a impressão de terror mais intensa que até então experimentara.

Ficou petrificado, sem querer acreditar no que via: a porta exterior, que abria sobre o patamar, aquela a que batera e por onde pouco antes entrara, estava aberta. Por precaução, talvez, a velha não a fechara: nem tinha dado volta à chave, nem correra o fecho. Mas, meu Deus, não viera depois Isabel! Porque não lhe ocorrera então que a adeleira entrara pela porta? Bem sabia que não podia entrar pela fechadura.

Fechou a porta e correu o fecho.

— Não, não é isto... Preciso sair, depressa...

Puxou de novo o fecho e, entreabrindo a porta, pôs-se à escuta.

Aplicou o ouvido durante muito tempo. Em baixo, naturalmente à porta da rua, duas pessoas injuriavam-se. «Quem será esta gente?» Esperou com paciência. Por fim deixaram de se ouvir os doestos. Os contendores haviam-se retirado. Preparava-se para sair quando, no andar inferior, abriram uma porta e alguém começou a descer, cantando. «Porque fará esta gente tanto ruído?», pensou ele. E fechou outra vez a porta, continuando a esperar. Por fim o silêncio restabeleceu-se, mas no momento em que se preparava para descer, o seu ouvido apurado percebeu novo ruído.

Era o barulho distante de passos, de quem subia os primeiros degraus da escada. No entanto, logo que os ouviu, adivinhou a verdade: vinham, com certeza, para ali, para o quarto andar, para casa da velha. Como explicar esse pressentimento? O que havia nesses passos de tão significativo? Eram pesados, vagarosos e regulares.

«Ele já chegou ao primeiro andar e continuou a subir... cada vez se ouve melhor... respira como um asmático... Prepara-se para subir ao terceiro andar... Aí vem!»

Raskólnikov teve a sensação de uma paralisia geral, como num pesadelo, quando nos julgamos perseguidos por inimigos que já estão próximos de nós, que vão assassinar-nos, e ficamos petrificados num sítio, sem podermos fazer o menor movimento.

O desconhecido começava a subir a escada do quarto andar. Raskólnikov, a quem o terror até então imobilizara no patamar, pôde enfim vencer o torpor e entrou a toda a pressa em casa, fechando logo a porta e correndo o fecho sem fazer o menor ruído. Neste momento foi guiado mais pelo instinto do que pela reflexão. Encostou-se à porta e escutou, mal se atrevendo a respirar. O visitante estava já no patamar. Apenas a porta os separava. O desconhecido estava para com Raskólnikov na mesma situação em que este se encontrara há pouco para com a velha.

O visitante respirou com esforço, por várias vezes. «Deve ser nutrido», pensou o assassino, apertando o cabo do machado. Tudo aquilo lhe parecia um sonho. O desconhecido puxou com violência pelo cordão da campainha.

Julgou, por certo, ouvir ruído no interior, porque durante alguns segundos pôs-se à escuta. Depois tornou a tocar, esperou ainda algum tempo e de repente, impacientado, puxou com toda a força pelo puxador da porta. Raskólnikov olhava aterrado para o fecho que oscilava na chapa, esperando a cada instante vê-lo saltar, tão fortes eram os empurrões. Pensou em o segurar com a mão, mas o homem podia desconfiar. A cabeça recomeçava a andar-lhe à roda. «Estou perdido!», pensou. Todavia recuperou a serenidade quando o visitante começou a monologar.

— Estarão a dormir ou alguém tê-las-ia estrangulado? Mulheres três vezes malditas! — resmungava. — Olá! Alena Ivanovna, velha bruxa! Isabel Ivanovna, beleza maravilhosa! Abram, suas excomungadas! Estarão a dormir?

Exasperado, tocou umas poucas de vezes seguidas, com toda a força. Este homem era, sem dúvida, íntimo da casa.

Ao mesmo tempo ouviram-se na escada uns passos ligeiros, apressados. Era mais alguém que subia para o quarto andar. Raskólnikov não percebeu a princípio a presença do recém-chegado.

— Será possível que não esteja ninguém? — perguntou este com voz alegre, dirigindo-se ao primeiro visitante, que continuava a puxar pelo cordão da campainha. — Bom dia, Koch!

«A julgar pela voz, deve ser um rapazito!», pensou Raskólnikov.

— Eu sei lá! Por pouco não arrombei já a fechadura — respondeu Koch. — De onde me conhece o senhor?

— Que pergunta! Ainda anteontem, no Gambrimos, lhe ganhei três partidas seguidas de bilhar.

— Ah!

— Então não estão em casa? É extraordinário! Direi mesmo, é estúpido! Onde teria ido a velha? Precisava falar-lhe.

— Também eu, meu rapaz, precisava falar com ela.

— E que remédio se lhe há de dar? Irmo-nos embora... Ai! ai! E eu que vinha pedir-lhe dinheiro emprestado! — exclamou o rapaz.

— Certamente não há outro remédio senão irmo-nos embora. Mas para que diabo me disse ela que viesse cá? Foi a própria bruxa que me marcou a hora. E é tão longe de minha casa aqui! Onde iria ela? Não entendo! Ela, que mal se move durante todo o ano, que está aqui a apodrecer, que sofre de reumatismo, logo hoje é que saiu!

— E se perguntássemos ao porteiro?

— Para quê?

— Para saber onde foi e quando volta.

— Hum... que diabo! perguntar! Ela nunca sai! — E voltou a abanar o puxador da porta. — Que diabo, não há remédio senão irmo-nos!

— Espere! — exclamou o rapaz. — Olhe, vê como a porta resiste quando se puxa?

— Então?

— É a prova de que não está fechada só com a chave, mas sim também com o fecho. Não o sente mover-se?

— E depois?

— Não percebe? É claro que alguma delas está em casa. Se ambas tivessem saído, teriam fechado a porta por fora com a chave e não corriam o fecho por dentro. Não ouve o barulho que ele faz? Ora, para qualquer pessoa fechar uma porta por dentro é preciso estar em casa. É portanto evidente que estão cá.

— É verdade, é! — exclamou Koch, surpreendido. — Então estão cá!

E pôs-se a abanar a porta furiosamente.

— Veja lá, não puxe com tanta força. Aqui há qualquer coisa... O senhor tocou, puxou pela porta com toda a força e não abriram. Está claro que ou ambas estão desmaiadas ou...

— Ou… o quê?

— O que devemos fazer é ir chamar o porteiro, para ele próprio as acordar.

— Não é má ideia!

— Espere. Não saia daqui enquanto o vou chamar.

— Para que hei de ficar?

— Ninguém sabe o que poderá acontecer!

— Está bem, fico.

— Ainda espero vir a ser juiz instrutor! Aqui há qualquer coisa que não se percebe! — disse com vivacidade o rapaz, descendo a quatro e quatro os degraus da escada.

Ficando só, Koch tornou ainda a tocar, porém com menos força. Depois pôs-se a mover, com ar pensativo, o puxador, fazendo oscilar a lingueta, para se convencer de que a porta estava igualmente segura com o fecho.

Em seguida, respirando com esforço, agachou-se para olhar pelo buraco da fechadura, mas, como a chave estava pela parte de dentro, nada conseguiu ver.

Encostado à porta, Raskólnikov apertava o cabo do machado.

Tinha a impressão de estar delirando, mas preparou-se para fazer frente aos dois homens quando transpusessem o limiar. Mais de uma vez, ouvindo-os bater à porta, o assaltou a ideia de pôr termo àquilo e de os interpelar. Sentia vontade de os insultar. «Quanto mais depressa isto acabar, melhor!», pensava ele. «Ora esta...»

O tempo passava e não vinha ninguém. Koch impacientava-se.

— Ora, adeus! — exclamou ele, farto de esperar e descendo ao encontro do rapaz. A pouco e pouco o ruído dos passos, que ressoavam na escada, foi esmorecendo.

«Meu Deus! Que hei de fazer?»

Raskólnikov correu o fecho e entreabriu a porta.

Animado com o silêncio que reinava em todo o prédio e não estando nesse momento em estado de refletir, saiu, fechou a porta e começou a descer a escada.

Descera já alguns degraus quando ouviu um grande barulho ao fundo da escada. Onde havia de se meter? Não havia maneira de se poder esconder em parte alguma. Voltou a subir a toda a pressa.

— Ó diabo! diabo! para!

Aquele que assim gritava acabava de sair de um dos andares inferiores e descia os degraus a toda a pressa.

— Mitka! Mitka! O diabo leve o doido!

O afastamento não permitiu ouvir mais. O homem que proferira estas exclamações estava já longe. Restabeleceu-se o silêncio. Porém, mal cessara este incidente, outro se produziu: uns poucos de homens, discutindo, subiam em tumulto a escada. Eram três ou quatro. Raskólnikov distinguiu a voz sonora do rapaz. «São eles!», exclamou.

Não esperando já escapar-lhes, correu ousadamente ao seu encontro: «Suceda o que suceder!», pensou consigo. «Se me prenderem, deixá-lo! Se me deixarem passar, passarei. No entanto hão de lembrar-se de se terem cruzado comigo na escada.» Ia dar-se o encontro. Só um andar os separava... De súbito Raskólnikov encontrou a salvação! Uns degraus mais e, à direita, o aposento do segundo andar, onde trabalhavam os pintores, estava desabitado e com a porta aberta. Muito a propósito acabavam de o abandonar.

«Foram eles talvez que saíram há pouco, fazendo aquela algazarra.» Percebia-se que a pintura das portas estava ainda fresca. Tinham deixado no meio do quarto uma lata de tinta e um grande pincel. Num segundo Raskólnikov introduziu-se no quarto desocupado e escondeu-se com a parede. Foi no tempo devido: os seus perseguidores chegaram um momento depois ao patamar, continuando a subir para o quarto andar e falando alto. Esperou que se afastassem e logo em seguida saiu na ponta dos pés e desceu a toda a pressa.

Ninguém na escada! Ninguém à porta! Transpôs, sempre a correr, o portal e, chegando à rua, tomou pela esquerda.

Raskólnikov tinha a certeza de que naquele momento os visitantes da velha, depois de se admirarem por verem a porta aberta, contemplavam cheios de horror os dois cadáveres. «Não lhes será por certo necessário mais de um minuto para adivinharem que o assassino conseguiu escapulir-se enquanto subiam a escada. Talvez mesmo desconfiem de que estava escondido no compartimento desocupado do segundo andar, quando subiam ao quarto». Enquanto fazia estas reflexões, não se atrevia a estugar o passo, apesar de estar ainda um pouco distante da primeira esquina. «Se entrasse num portal e esperasse lá um instante? Nada, isso não tem jeito! Se atirasse com o machado para qualquer parte? Se me metesse num trem? Nada, nada disso...»

Chegou por fim a um largo, mais morto do que vivo. Sabia que podia considerar-se salvo. Ali as suspeitas não podiam incidir nele. E depois era-lhe mais fácil não despertar a atenção no meio dos transeuntes. As sucessivas comoções tinham-no de tal modo prostrado que sentiu que as pernas se lhe vergavam.

Corriam-lhe pelo rosto grandes gotas de suor.

— Já tens a tua conta — disse-lhe alguém quando ia a desembocar no canal, julgando-o bêbedo.

Estava atordoado. Quanto mais caminhava, mais se lhe baralhavam as ideias. Quando chegou ao cais, assustou-se por ver tão pouca gente e, receando que o notassem em lugar tão pouco concorrido, voltou ao largo. Se bem que mal se aguentasse de pé, fez um grande rodeio para voltar a casa.

Quando lá chegou, ainda não estava na posse da sua serenidade. Por isso só se lembrou do machado, ao subir a escada. E, no entanto, o problema que tinha a resolver era dos mais sérios: tornar a colocar a arma onde a encontrara sem atrair a atenção. Se estivesse em estado de apreciar a sua situação, teria por certo compreendido que, em vez de colocar o machado no seu lugar, seria preferível desfazer-se dele, atirando-o para o pátio de uma casa qualquer.

Todavia, tudo correu à medida dos seus desejos.

A porta do cubículo estava encostada, mas não fechada, o que levava a crer que o seu morador estava em casa. Porém Raskólnikov perdera a tal ponto o raciocínio que abriu a porta. Se o dono da casa lhe perguntasse «O que quer?», talvez, sem dizer uma palavra, lhe tivesse entregado o machado. Por sorte não estava lá, como horas antes, e Raskólnikov pôde colocar o machado debaixo do banco, onde o tinha encontrado.

Subiu depois a escada e chegou ao quarto sem encontrar vivalma. A porta da hospedeira estava fechada. Logo que entrou em casa, deitou-se, mesmo vestido, no sofá. Não dormiu, mas caiu numa espécie de torpor. Se alguém tivesse então entrado no quarto ter-se-ia levantado e não poderia conter um grito. No seu cérebro chocavam-se pensamentos diversos e, por mais esforços que tenha feito, não conseguiu seguir nenhum...

Fiódor Dostoiévski: Crime e Castigo

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