Читать книгу Fiódor Dostoiévski: Crime e Castigo - Fiódor Dostoievski - Страница 8

Capítulo 4

Оглавление

A carta da mãe sensibilizara-o muito. Todavia, quanto ao ponto principal, não teve um momento de hesitação. Ainda não havia terminado a leitura e já tinha tomado a sua resolução: «Enquanto viver, este casamento não se realiza. Que vá para o inferno o senhor Loujine! O caso é claro!», murmurou ele, sorrindo, com ar triunfante, como se estivesse seguro do resultado. «Não, mãe; não, Dounia; não me enganam! E ainda se desculpam por terem tomado tal resolução sem me consultarem! Julgam agora que é impossível desmanchar o projetado casamento! Pois veremos se é ou não! E que motivos alegam: ‘Pedro Petrovitch tem tantos afazeres que só pode casar a vapor!’ Não, Dounia, compreendi tudo, adivinho o que me querias dizer, sei quanto pensaste toda a noite, passeando no teu quarto, e o que pediste à Virgem de Kazan, cuja imagem está no quarto da nossa mãe. O Gólgota custa a subir! Hum! Eis o que está combinado: Dounia vai casar com um homem positivo e que tem já uma fortuna, o que não é para desprezar; tem duas colocações e simpatiza, segundo as palavras da minha mãe, com as ideias das gerações modernas. A própria Dounia diz que parece boa pessoa. Este parece vale um mundo! Confiando nesta aparência é que a Dounia vai casar! Admirável! Sempre gostava de saber o motivo porque a mãe se refere na sua carta às ‘gerações modernas’! Será apenas para acentuar bem qual o caráter do personagem ou será com o fim de captar a minha simpatia em favor do senhor Loujine? Oh! que tática! Há ainda um outro facto que desejava esclarecer: até que ponto teriam elas levado a sua franqueza, uma para com a outra, durante o dia e a noite que antecederam a resolução da Dounia? Chegariam a alguma formal explicação ou ter-se-iam compreendido, sem quase terem necessidade de dizer o que pensavam? A julgar pela carta, sinto-me mais inclinado para esta última hipótese. A mãe achou-o um tanto vaidoso e, dada a sua simplicidade, comunicou-o à Dounia. Esta, por sua vez, aborreceu-se e respondeu zangada. Era bem de ver! Uma vez que assim estava decidido, que já não podia voltar atrás com a sua palavra, a observação da mãe era, pelo menos, inútil. E para que me diz ela: ‘Estima muito a tua irmã. Lembra-te de que te adora muito mais do que a si própria’? Não sentirá a consciência a acusá-la de ter sacrificado a filha ao filho? ‘És a nossa felicidade futura e tudo quanto temos no mundo’... Oh, minha mãe!»

A sua exaltação aumentava de momento a momento e se nesse instante tivesse encontrado o senhor Loujine, talvez não resistisse ao desejo de o assassinar.

«Hum! É verdade», continuou ele, tentando coordenar as ideias que se lhe baralhavam na cabeça, «é verdade que, para conhecer uma pessoa, é necessário ter convivido com ela, observando-a com cuidado. Além disso o senhor Loujine não deve ser difícil de compreender. Em primeiro lugar é um homem de negócios e ‘parece’ bondoso; o resto, são coisas infantis, com um certo ar de graça. ‘Ofereceu-nos até uma grande mala!’ Depois desta prova, como duvidar da sua bondade? A noiva e a futura sogra metem-se ao caminho numa carroça, tendo apenas para as resguardar da chuva um reles toldo. Como se não conhecesse essas carripanas! Que importa? O trajeto até à estação é apenas de noventa verstas. Depois vêm com o maior prazer ‘num compartimento de terceira classe...’ Têm razão: a capa deve-se talhar conforme o pano. No entanto, em que pensa o senhor Loujine? Não esqueçamos que se trata da sua noiva! Será possível que ignore que, para fazerem esta viagem, necessitaram de um empréstimo sobre a pensão? Com certeza o seu espírito mercantil considerou isto como uma espécie de sociedade, na qual cada associado tem que entrar com a sua quota parte; no entanto não há paridade alguma entre o custo da mala, por muito grande que seja, e o da viagem. Não compreendem isto ou fingem não compreender. O caso é que parecem satisfeitas! Contudo, que frutos poderemos esperar de semelhantes flores? O que mais me irrita neste procedimento não é tanto a mesquinhez como o mau gosto; o namorado dá a entender o que será o marido... E a mãe, que atira o dinheiro pela janela fora, conquanto chegará a S. Petersburgo? Com três rublos em metal ou com dois bilhetinhos, como diz... a... velha... Com que meios contará para viver? Devido a quaisquer razões, reconheceu que era preferível separar-se da Dounia quando casasse. Alguma palavra indiscreta desse amável cavalheiro foi um clarão para ela, por mais que queira fechar os olhos à realidade. Tenciona recusar, diz ela ainda! Então com que recursos conta viver? A sua pensão de cento e vinte rublos, sujeita ao desconto da importância emprestada por Afanase Ivanovitch? Na aldeia ainda tecia lenços de malha e bordava, apesar de que esse trabalho não lhe rendia mais de vinte rublos por ano. Evidentemente, a despeito de tudo, conta com a generosidade do senhor Loujine. ‘Ele próprio insistirá para não me separar da minha filha’. Pois sim! A mãe é assim, não há que admirar! Mas a Dounia? É impossível que não compreenda esse homem e vai desposá-lo! A sua liberdade moral e a sua alma eram-lhe muito mais queridas do que o seu bem-estar! Para não ter que renunciar a elas, preferia comer pão negro e beber água. Não as trocaria pelo Sleswig-Holstein, quanto mais pelo senhor Loujine. Era assim a Dounia que eu conheci, e por certo ainda não mudou! Bem sei que é penoso viver sob o teto de qualquer Svidrigailov, ou andar de terra em terra, ou passar a vida inteira a aturar rapazes, ganhando duzentos rublos por ano. Não é das melhores coisas, não! Mas a minha irmã preferia ir trabalhar para casa de um plantador da América ou de um alemão da Lituânia a aviltar-se, unindo por mero interesse pessoal a sua existência à de um homem a quem não amasse e com quem nada tivesse de comum! Ainda que o senhor Loujine fosse de ouro puro ou de brilhantes, não se prestaria a ser a sua legítima mulher. Que motivo a resolveu então? Qual será a chave do enigma?»

Refletiu um momento.

«Ora», exclamou, «o motivo é bem claro. Não procede em proveito próprio. Por quantia alguma se venderia para conseguir o seu bem-estar ou mesmo para escapar à morte. Entretanto vende-se por uma outra pessoa, por um ente querido e adorado! É esta a explicação do mistério: é por nós, pela mãe e por mim, que ela se sacrifica. Vende toda a sua vida I Oh! nesse caso violenta-se o senso moral: leva-se ao mercado a liberdade, o repouso, a própria consciência, tudo! Perca-se embora a vida, mas que as pessoas adoradas sejam felizes! Mais ainda, recorre-se à subtil casuística dos jesuítas, transige-se com os próprios escrúpulos, chegamos mesmo a persuadir-nos de que é preciso proceder assim, visto a utilidade do fim justificar o meio. Eis como nós somos e a razão porque andamos por cá! É certo que aqui, no primeiro plano, se encontra Rodia Romanovitch Raskólnikov. É preciso garantir-lhe a felicidade, conseguir-lhe os meios de concluir o seu curso, de vir a ser sócio do senhor Loujine, de chegar a fazer fortuna, nome, glória, se possível for! E a mãe? Essa só pensa no seu querido Rodia, no seu primogénito. Não é natural que sacrifique a filha a este filho, o seu predileto? Corações ternos e injustos! Mas isto que vão fazer, equivale a aceitar a sorte de Sofia Marmeladov, a eterna Sofia, que há de existir enquanto existir o mundo! Mediste bem a teu sacrifício? Sabes, Dounia, que viver com o senhor Loujine é igualares-te à Sofia? ‘Aqui não pode haver amor’, escreve a mãe. Então, se não pode haver amor, nem estima, se pelo contrário há antipatia, repulsão quase, em que difere esse casamento da prostituição? Maior desculpa portanto tem a Sofia; esta vendeu-se, não para aumentar um relativo bem-estar, mas porque viu a fome, a verdadeira fome, instalada entre os seus! E se mais tarde o sacrifício for superior às tuas forças, se vieres a arrepender-te do teu ato, quantas lágrimas verterás em silêncio… porque tu não és Marfa Petrovna! E então o que será da mãe? Quando agora já está inquieta, o que fará quando vir as coisas por outro prisma, como elas na verdade são? E eu? Porque eu, sim, também sou alguém! Não aceito o teu sacrifício, Dounia, nem o teu, minha mãe. Enquanto viver não se realizará esse casamento.»

De repente, parou,

«Não se há de realizar? Mas que podes fazer para o impedir? Opor o teu veto? E com que direito? O que podes prometer-lhes para te permitires tanta arrogância? Comprometer-te-ás a dedicar-lhes toda a tua vida, todo o teu futuro, quando tiveres acabado o curso e obtido uma colocação? E isso é ainda para depois, mas agora? É necessário fazer já alguma coisa, percebes? E o que fazes tu agora? Vives à custa delas. Levas uma a pedir emprestado sobre a sua pensão e a outra a solicitar um adiantamento de ordenado aos Svidrigailov! Com o pretexto de que mais tarde serás milionário, pretendes hoje dispor a teu belo prazer da sorte das duas! No entanto poderás desde já tomar sobre ti o encargo de ocorrer às suas necessidades? Daqui a dez anos, talvez! Entretanto tua mãe cegará a tecer lenços de malha ou a chorar, com a saúde arruinada, devido a privações de toda a espécie. E tua irmã? Vamos, pensa nos perigos que a tua irmã pode correr nesse largo período de dez anos! Pensaste?»

Experimentava um amargo prazer, fazendo a si próprio estas dolorosas perguntas, que de resto não eram novas para ele. Havia muito que elas o assaltavam a cada instante, exigindo respostas que ele se sentia incapaz de lhes dar. A carta da mãe fulminara-o como se fosse um raio. Reconhecia agora que passara a época das lamentações, que nada remedeiam, e que, em vez de increpar a sua impudência, lhe cumpria fazer fosse o que fosse e o mais depressa possível. Era necessário tomar desde já uma resolução qualquer ou...

«Ou renunciar à vida!», exclamou ele, de súbito. «Aceitar, de uma vez por todas, o destino como ele é, abafar todas as aspirações, abdicar em definitivo do direito de ser livre, de viver, de amar!»

Raskólnikov lembrou-se de repente das palavras que Marmeladov proferira na véspera: «Compreende, compreende, senhor, o que significam estas palavras: não ter para onde ir?»

Estremeceu, Um pensamento que na véspera o assaltara apresentou-se de novo ao seu espírito. Não foi, contudo, a lembrança desse pensamento que o fez estremecer. Sabia já, ou antes, pressentia que havia de voltar, e esperava-o. Contudo essa ideia não era em absoluto como a da véspera e a diferença estava no seguinte: o que há um mês, ou ontem ainda, era apenas um sonho, surgia agora sob um novo aspeto deveras assustador. O jovem rapaz tinha a consciência dessa diferença... Sentia uma grande agitação no cérebro e uma nuvem toldar-lhe a vista.

Olhou em volta, procurando alguma coisa. Precisava sentar-se e o que procurava era um banco. Encontrava-se na Avenida de E... A cem passos havia um. Caminhou para ele a toda a pressa, mas no trajeto sucedeu-lhe uma pequena aventura que durante alguns momentos o absorveu por completo.

Quando olhava na direção do banco avistou uma mulher que seguia a uns vinte passos de distância. A princípio não lhe ligou maior importância do que às diversas coisas que encontrara no caminho. Muitas vezes lhe sucedera, por exemplo, entrar em casa sem conseguir lembrar-se do itinerário que seguira; geralmente caminhava sem reparar em coisa alguma. Todavia essa mulher tinha uma aparência tão estranha que Raskólnikov não pôde deixar de a notar. À surpresa sucedeu a curiosidade, contra a qual tentou opor-se, mas bem depressa se tornou superior à sua vontade. De súbito quis reconhecer o que havia de extraordinário nessa mulher. Pela aparência, a transeunte devia ser muito nova. Apesar do excessivo calor, ia com a cabeça descoberta, sem guarda-sol nem luvas, agitando os braços de uma maneira ridícula. Levava no pescoço um lenço atado ao lado; o vestido era de seda, muito mal posto, desacolchetado e rasgado na cintura, junto ao cós. Pelo rasgão via-se um farrapo oscilar de um lado para o outro. E, a juntar a isto todo, a passeante, não se podendo suster nas pernas, cambaleava. Este encontro acabou por absorver toda a atenção de Raskólnikov. Aproximou-se da rapariga, precisamente quando ela chegava junto do banco, no qual se deitou, em vez de se sentar, inclinando a cabeça para trás e cerrando os olhos, como uma pessoa prostrada de cansaço. Não lhe foi difícil concluir que estava embriagada. O caso pareceu-lhe tão extraordinário que a si próprio perguntou se não estaria enganado. Tinha diante de si uma esbelta criança de dezessete anos, talvez mesmo de quinze. O rosto emoldurado por uns cabelos louros, era bonito, mas estava afogueado. Parecia inconsciente.

Tudo levava a crer que não sabia onde se encontrava.

Raskólnikov não se sentou, nem se quis retirar, e por isso ficou de pé, diante dela, sem saber o que devia fazer. Já dera uma hora e sentia-se um calor insuportável. Raras pessoas passavam nessa Avenida, que em geral é pouco frequentada. Todavia, a uns quinze passos, se tanto, na beira do passeio, estava parado um homem que, com certeza, desejava aproximar-se da rapariga com reservadas intenções. Também, por certo, a avistara à distância e a seguira. No entanto a presença de Raskólnikov incomodava-o: olhava-o irritado, de soslaio, esperando com impaciência o momento em que este farrapilha lhe cedesse o lugar. Vestindo com elegância, este indivíduo, que devia ter uns trinta anos, era espadaúdo, forte, corado, de lábios vermelhos e farta bigodeira. Raskólnikov encolerizou-se e sentiu vontade de o insultar.

Deixou por momentos a rapariga e aproximou-se dele:

— Olá, Svidrigailov! Que faz por aqui? — exclamou ele, cerrando os punhos, enquanto um sorriso sardónico lhe entreabriu os lábios, que começavam a orlar-se de espuma.

O elegante cavalheiro franziu o sobrolho e na fisionomia desenhou-se-lhe uma expressão de altivez e de surpresa.

— Que quer isso dizer? — interrogou com arrogância.

— Quer dizer que dê meia volta, que se ponha a andar...

— Cuidado com a língua, seu canalha...

E ergueu a bengala. Raskólnikov, com os punhos cerrados, atirou-se a ele, sem pensar na desigualdade de forças. Porém sentiu que o agarravam pelas costas. Era um polícia que punha termo à questão.

— Então, meus senhores, então, não lutem no meio da rua. O que querem? Quem é o senhor? — perguntou com ar severo a Raskólnikov, reparando nos seus andrajos.

Este olhou atentamente para quem lhe fazia a pergunta. O polícia, que usava bigode e suíças brancas, tinha o aspeto de um valente soldado e parecia inteligente.

— É exatamente do senhor que preciso — disse ele, agarrando-o por um braço. — Fui estudante e chamo-me Raskólnikov... O senhor pode também saber isto — acrescentou, voltando-se para o outro. — Venha comigo, vou mostrar-lhe uma desgraça...

E continuando a segurar o polícia pelo braço, conduziu-o junto do banco.

— Aqui está uma rapariga embriagada. Veio até aqui quase aos tombos. É difícil saber a sua situação social, porém não tem aparência de vadia. O mais provável é que a tenham obrigado a beber e abusassem dela! É talvez uma principiante... compreende? Depois, a cair de bêbeda, puseram-na na rua. Veja em que estado trás o vestido. Não foi ela que se vestiu, vestiram-na; e foram mãos imperitas, mãos de homem, que fizeram esse trabalho. Agora olhe para este lado: este janota, em quem queria bater há pouco, não o conheço e vi-o agora pela primeira vez. Encontrou-a também na rua, certificou-se de que estava embriagada, que não tinha consciência de coisa alguma, e queria aproveitar-se dessa circunstância para a levar a alguma casa suspeita... É isto mesmo, pode ter a certeza que não me engano... Reparei como ele a olhava e seguia. Transtornei-lhe os planos e sua excelência esperava agora que me fosse embora. Como se lhe há de tirar das mãos esta presa? Como havemos de conseguir que vá para casa?

O polícia, que compreendeu tudo, pôs-se a refletir. Não podia ter dúvidas sobre as intenções do homem espadaúdo. Inclinou-se sobre a rapariga para a ver mais de perto e na sua fisionomia desenhou-se uma profunda compaixão.

— Que desgraça! — exclamou, abanando a cabeça. — É ainda uma criança. Caiu numa cilada, com certeza... Olhe iá, menina, onde, mora? Diga, onde mora?

Entreabriu a custo as pálpebras, olhou espantada para os dois e fez um gesto, como que para os afastar.

Raskólnikov remexeu a algibeira e tirou vinte kopecks.

— Tome — disse. — Alugue uma carruagem e leve-a a casa. O que é preciso é saber a morada.

— Menina — gritou outra vez o polícia, depois de guardar o dinheiro — vou buscar um carro e eu próprio a levo a casa. Onde fica a sua casa? Onde mora?

— Oh! meu Deus! eles agarram-me! — murmurou ela, repetindo o mesmo gesto que fizera há pouco.

— Que coisa ignóbil! Que infâmia! — disse o polícia, cheio de compaixão e indignado. — A grande dificuldade é saber-se onde mora! — continuou, dirigindo-se a Raskólnikov, que de novo examinou dos pés à cabeça, parecendo-lhe muito estranho este indigente tão generoso. — Encontrou-a longe daqui?

— Já lhe disse que caminhava na minha frente, aos bordos, por esta mesma Avenida. Quando chegou junto do banco, deixou-se cair.

— Que barbaridades se praticam por este mundo, meu Deus! Uma rapariga tão nova e embebedar-se desta maneira! Enganaram-na, certamente! Tem o vestido rasgado! Muito vício há por aí! Talvez os pais sejam gente nobre, caída na miséria. Há tanta gente assim, agora! A aparência dela é de filha de boa família.

E mais uma vez se inclinou para a rapariga.

Talvez ele próprio fosse pai de raparigas bem-educadas, que parecessem filhas de famílias nobres.

— O que é necessário — continuou Raskólnikov — é não a deixarmos à mercê deste patife! É claro que o tratante tem o seu plano formado e não arreda pé dali!

Levantara a voz e indicava o sujeito com o gesto. Este, percebendo que falavam a seu respeito, quis zangar-se, mas depressa mudou de tática, limitando-se a lançar ao inimigo um olhar de desprezo. Em seguida, e muito devagar, afastou-se uns dez passos e voltou a parar.

— Não lhe há de deitar a mão — disse com ar pensativo o polícia. — Ao menos, se dissesse onde reside! Sem essa indicação... Menina, menina! — chamou, inclinando-se sobre a rapariga.

Esta abriu de repente os olhos, olhou fixamente os dois e pareceu voltar a si. Levantou-se e seguiu em sentido inverso ao caminho por onde viera.

— Que importunos! Que desavergonhados! Agarraram-se a mim! — exclamou, agitando de novo os braços, como para afastar alguém.

Caminhava muito depressa, mas com pouca firmeza. O janota começou a segui-la pelo outro passeio, sem a perder de vista.

— Esteja tranquilo, não a há de apanhar — disse o polícia. E seguiu atrás deles.

Neste momento operou-se nas disposições de espírito do Raskólnikov uma reviravolta tão completa como rápida.

— Ouça! — gritou ao polícia, que se voltou. — Deixe-o lá. Que se divirtam! O que tem o senhor com isso?

O polícia, surpreendido, olhou para Raskólnikov, que começou a rir-se. Não fez caso e continuou a seguir o desconhecido e a rapariga.

«E lá se foi com os meus vinte kopecks», disse ele com os seus botões quando ficou só. «há de aceitar também dinheiro do outro e deixa-o com a rapariga. Que diabo de ideia a minha de armar em benfeitor! Tenho, porventura, obrigação de defender a primeira criatura que me aparece? Com que direito? Em honra de que santo? Ainda que se devorem uns aos outros, que tenho com isso? Para que dei eu os vinte kopecks?»

A despeito destas palavras, sentia o coração oprimido. Sentou-se no banco. As suas ideias baralhavam-se, sentia-se incoerente. Custava-lhe a pensar fosse no que fosse. Ambicionava cair num sono profundo, em que esquecesse tudo por completo, e acordar de forma a começar uma vida nova...

«Pobrezinha!», exclamou ele, olhando para o banco onde a rapariga se deitara. «Quando voltar a si, há de chorar; depois a mãe saberá da aventura, bater-lhe-á, para juntar a humilhação à dor. É provável até que a ponha na rua... Ou quando não a abandone, qualquer Daria Frantzovna farejará a caça e teremos a rapariguita aos trambolhões, indo de queda em queda até ao hospital, o que não sucederá muito tarde. Logo que estiver curada, recomeçará a desgraça, até ir de novo parar ao hospital, com escala pela cadeia. Com dois ou três anos de vida, aos dezoito ou dezanove, estará perdida. Quantas que começaram como esta tenho visto acabar assim! Mas, enfim, dizem que é preciso! É uma percentagem, um prémio que tem de ser pago... certamente ao diabo para garantir a tranquilidade dos outros. Uma percentagem! Inventam na verdade lindas palavras e dão-lhes um ar científico que lhes fica a matar! Quando se diz ‘tantas por cento’ está dito tudo, é um caso arrumado. Se lhe dessem outro nome, talvez a coisa causasse mais preocupações... E, quem sabe? Talvez que a Dounia seja compreendida na percentagem do ano próximo, ou talvez ainda na deste! Onde queria eu ir?», pensou ele repentinamente. «É extraordinário. Tinha destino quando saí de casa. Logo que li a carta, saí... Ah! sim, agora me lembro: ia procurar Razoumikhine, em Vasili Ostrov... Mas que ia lá fazer? Como me veio à ideia visitar agora Razoumikhine? É singular!»

Nem ele próprio se entendia. Razoumikhine era um dos seus antigos condiscípulos da Universidade. É de notar que, quando Raskólnikov seguia o curso de direito, vivia muito só, não frequentava a casa de nenhum dos condiscípulos e não lhe aprazia receber as suas visitas, o que não tardaram em pagar-lhe na mesma moeda. Nunca tomava parte em reuniões, nem nos próprios divertimentos académicos. Era admirado pela sua aplicação ao estudo, mas não gozava da simpatia de ninguém. Muito pobre, orgulhoso e concentrado, a sua existência parecia envolver um mistério. Os condiscípulos queixavam-se dele por os olhar com indiferença, como se fossem crianças ou pessoas muito abaixo da sua craveira intelectual.

No entanto ligara-se a Razoumikhine ou, para melhor dizer, tinha mais confiança nele do que noutro qualquer. Talvez o seu gênio franco e alegre lhe despertasse uma maior simpatia. Era um rapaz muito vivo, expansivo e de uma bondade extrema. Os mais inteligentes condiscípulos reconheciam-lhe o merecimento e estimavam-no. Não era tolo, conquanto às vezes fosse de uma ingenuidade infantil. Os seus cabelos pretos, a cara por barbear e o seu tipo esguio e magro atraíam logo a atenção.

Tinha fama de valente. Uma noite, percorrendo as ruas de S. Petersburgo em companhia de alguns amigos, atirou ao chão, com um murro, um polícia que media um metro e noventa, aproximadamente. Por vezes entregava-se à embriaguez, mas quando lhe convinha mantinha-se na maior sobriedade. Se às vezes praticava loucuras imperdoáveis, noutras ocasiões mostrava uma prudência e juízo inexcedíveis. Nunca o viram acabrunhado ou sucumbido por qualquer contrariedade. Era homem para dormir num telhado, sofrer o frio e a fome, sem por um momento perder o seu bom humor habitual. Muitíssimo pobre, limitado aos seus próprios recursos, ganhava a vida regularmente, pois era ativo e conhecia uns certos locais onde, trabalhando, lhe era possível obter dinheiro.

Passou todo um inverno sem fogão e dizia a toda a gente que lhe era muito mais agradável, pois dorme-se muito melhor quando se tem frio. Tivera também de abandonar a Universidade por falta de meios; contudo, esperava continuar em breve o seu curso, não desprezando coisa alguma para melhorar a sua precária situação. Havia quatro meses que Raskólnikov não o visitava e Razoumikhine não sabia a sua morada. Tinham-se encontrado havia uns dois meses, porém Raskólnikov atravessara logo para o outro passeio, buscando esconder-se do condiscípulo. Este vira-o, mas receando incomodá-lo, fizera vista grossa.

Fiódor Dostoiévski: Crime e Castigo

Подняться наверх