Читать книгу Entre o caffé e o cognac - Alberto Pimentel - Страница 10
PHYSIOLOGIA
DO
THEATRO BAQUET
ОглавлениеHa theatros que procuram a gente, em vez de ser a gente que os procura a elles.
Para ir ao Palacio de Crystal, por exemplo, é preciso ir lá procural-o ás ribas outr'ora solitarias que se aprumam sobre o Douro. Quando vamos ao theatro de S. João, sahimos de casa no proposito de ir ao espectaculo, como quando vamos almoçar á Foz ou jantar á Ponte da Pedra. É uma caminhada que se faz simplesmente por distracção. Todavia com o theatro Baquet não acontece o mesmo;—é o theatro que nos procura, é elle que nos dá na vista, que nos chama, que nos tenta.
Sahimos de casa para comprar um par de luvas, um chapéo, um casaco, umas botas, uma badine, um relogio, um frasco com conserva, uma caixa de charutos, um oboé, para tomar um banho, para mandar tingir{42} um collete, para reconhecer um attestado, e até para comprar tortas, por divertimento, porque eu já conheci um comilão de tortas ás direitas, que as trazia no bolso, e que de instante a instante se mettia n'um portal, como quem accende um charuto, para comer uma torta. No theatro guardava uma provisão de tortas na copa do chapéo, e ia-as comendo de intervallo a intervallo, fazendo no botiquim unicamente a despeza de um copo de agua. Mas voltando ao Baquet,—sahimos de casa para comprar qualquer coisa, e damos comnosco na rua de Santo Antonio. Fazemos a transacção, paramos á porta do theatro a lêr o cartaz, e vemos a passeiar no atrio o snr. Antonio Moutinho de Sousa, floreando a sua badine na posse da mais tranquilla felicidade, de modo a dar á gente tentações de ser empregado no theatro para vêr se tambem engorda.
Entra-se ao portal. Depois de entrar, é vergonhoso retroceder. N'este momento chega um actor cantarolando, e emquanto o bilheteiro faz o troco entra uma paviola com um sophá de velludilho encarnado e quatro cadeiras d'espaldares doirados. Por Deus! como aquelle actor ha-de cantar bem á noite, se até pela rua se anda ensaiando! como as cadeiras hão-de relampejar reflexos deslumbrantes á luz da rampa! Sae a gente e passa pelos cartazes com o reservado orgulho de quem sabe mais do que lhe dizem. O cartaz annuncia simplesmente o espectaculo, mas o comprador do bilhete sabe o que não diz o cartaz,—que entram no drama cadeiras com espaldares doirados.{43}
Á noite enxameia á porta do theatro o bando dos agiotas.
—Quer geral?
—Quer cadeira?
E a gente rompe por entre elles com a sobranceira indifferença de quem tem desde pela manhã, no bolso do collete, o divertimento que elles nos offerecem, esbofando-se.
No theatro Baquet ha sussurro nos corredores.
No theatro lyrico entram as senhoras, cobertas d'arminhos, friamente silenciosas, e assomam aos camarotes com a estudada compostura de quem vae ser retratado.
Muda o caso no Baquet; as senhoras charlam pelos corredores, e os homens descem rapidamente as escadas, cumprimentando e saltando.
Bem! É um theatro popular, onde os espectadores fallam alternadamente com os actores, e onde a gente póde espirrar á vontade sem que lhe digam do lado—sciu!
Os frequentadores habituaes do theatro Baquet—os das platéas, entenda-se—dividem-se, a meu vêr, em trez classes distinctas: espectadores fluctuantes, espectadores fixos, e espectadores moderados.
Os espectadores fluctuantes são os que occupam as primeiras filas da superior, e os logares das coxias na geral. Alguns,—especialmente os da superior,—trazem camelia ao peito e luva côr de canario. Mal desce o panno, saiem para o botiquim, para os camarins, e{44} para os corredores. Que teem elles que fazer em todos os intervallos? Que vão dizer? Nada. Saiem porque são fluctuantes. Entram á plateia quando começa a symphonia. Encostam-se á varanda da orchestra, com requebrada negligencia, olhando uns para os camarotes atravez do binoculo e outros cantarolando se estão em scena os Apostolos do Mal:
As moças da nossa aldeia
D'aldeia de S. Luiz,
Fallam sempre de maridos
E n'um enlace feliz;
ou se se representam as Mulheres de marmore:
Amas tu. Marco gentil,
Os salões cheios de flores,
Com uma alegria infantil
As danças, risos, amores?
Espectadores fixos são uns sujeitos pesados, que não se mexem na cadeira, e que conversam nos intervallos com os visinhos da direita e com os visinhos da esquerda, incommodando-se com os espectadores fluctuantes que os obrigam a levantarem-se ao sahir e ao entrar.
Espectadores moderados são, a meu vêr, os que saiem em dois intervallos, quando a peça tem cinco actos, e os que só incommodam o porteiro no fim do drama se depois do drama vae comedia. São methodicos. Da ultima vez que saiem não é por variedade mas unicamente por methodo. Vão buscar o guarda-chuva{45} ou a bengala para evitarem os apertos da confusão no fim do espectaculo.
Passemos ás galerias. A galeria é um mundo dentro d'um theatro. De hemispherio a hemispherio medeia o oceano-platéa. As ondulações, as correntes, e as tempestades estão na platéa, mas nas galerias ha a variedade do atlas:—alli é que estão as castas, os systemas, as luctas, a verdadeira liberdade do homem e a verdadeira emancipação da mulher.
Pouca gente leva uma creança para um camarote, mas o povo leva os seus filhos para a galeria. É que reside alli a soberania popular. Os mil episodios, que por via de regra accidentam a vida das nações, reproduzem-se nas galerias.
Ha em todos os espectaculos do Baquet—digam se não é verdade—uma creança que chora: um visinho da esquerda que se oppõe á expansão vocal da creança, e um visinho da direita que proclama alto e bom som a liberdade da larynge.
Estas luctas são eterno apanagio do povo.
Ha sempre um velho, ou bonacheirão, rosado, inxundioso, que diz graçolas, e é o divertimento dos visinhos durante os intervallos, ou um velho zarolho, de cabello em ss e chapéo quinhentista, silencioso, que se não levanta toda a noite, e que faz a critica do drama e da platéa pela unica janella que a Providencia lhe deixou aberta para vêr a humanidade.
O velho gordo, se vê que uma lorette põe a cabeça fóra da galeria, para ser vista, acode logo a dizer:{46}
—Estenda a cabeça, estenda, que lhe caiem os pingos das vélas!
O velho sêco olha com o seu luzio para a toilette, e volta logo a cara para o outro lado, porque de si para si fez austeramente a seguinte reflexão:
—Bem te entendo!
Ha sempre nas galerias um cicerone. É ordinariamente um cocheiro, de jaqueta e chapéo redondo; explica todas as situações da peça ainda que seja nova.
—Ella agora vae pegar n'aquella flôr!
Ás vezes, mórmente se o drama é novo, o cocheiro engana-se, e a actriz em vez de pegar na flôr bebe um copo d'agua.
O cicerone não se acobarda. Continua a explicar;—explica tudo.
Isto facilmente se comprehende. O cocheiro precisa de presumir-se sabio. Pergunta-se-lhe:
—Sabes onde mora F.?
—Sei, meu amo.
Não sabe. Vai andando á espera que lhe batam na janella da carruagem.
—Pára; é aqui.
—É aqui; eu bem sabia.
O cocheiro precisa realmente de dizer que sabe.
Vamos agora ao botiquim. O botiquim do Baquet offerece curioso estudo. É preciso ser-se philosopho para se exercer o logar de botiquineiro alli. De contrario, ao cabo do primeiro intervallo, o botiquineiro estaria{47} doido com toda a certeza. O snr. Magalhães, botiquineiro, é pois um philosopho.
—Uma sangria!
—Gelatina!
—Uma limonada!
—Uma orchata.
—Um grog!
N'uma palavra, é nem mais nem menos que todos os espectadores fluctuantes a dizerem ao snr. Magalhães:
—Retalhe n'um momento o seu botiquim e dê a cada um de nós um fragmento.
Qualquer homem menos philosopho responderia:
—Ó senhores! não os posso servir a todos ao mesmo tempo! Sem este senhor beber a limonada, não dou ao senhor o grog.
Isto era o mesmo que perder a freguezia.
O snr. Magalhães descubriu um optimo systema para viver com todos. Como seja grande a concorrencia, alguns espectadores, em rasão da sua mesma natureza fluctuante, já estão no corredor no momento em que deviam pagar. O snr. Magalhães bem percebe que é logrado, mas não se afflige. Tem a paciencia de esperar para o dia seguinte. D'esta maneira tudo vae bem.
Conta-se de Mazarino dizer: «Cantam! Deixal-os cantar; elles o pagarão.» Toda a philosophia do snr. Magalhães tem por eixo esta anecdota de Mazarino: «Escapam-se! Elles o pagarão.»
Saiamos do botiquim para fallarmos ainda d'uma{48} classe supplementar de frequentadores, que já iam esquecendo. São os espectadores-meteoros. Não compram bilhete pela simples rasão de não terem tempo de o comprar. Entram á platéa e dizem ao porteiro:
—Eu saio já.
Está o panno em cima. (Elles entram sempre quando o panno está em cima). Encostam-se á varanda da orchestra. Passam em revista os camarotes, medem a plateia com um só olhar, e saem. Vae a gente a procural-os, e já não os vê. São meteoros; desappareceram. Quando a gente os procura, já estão em outro theatro. Tambem por sua vez são philosophos; toda a philosophia d'elles está no adverbio já.
—Eu saio já.
E vêem tudo.
Ora eu, se fosse actor e fizesse beneficio, havia de perguntar ao porteiro:
—Você quantos jás conhece?
A esses é que eu passaria bilhetes para vêr o que respondiam.
Agora me lembro! Salvavam-se ainda com o mesmo adverbio:
—Já tenho.
Depois de conhecida a nau e a tripulação, justo é fallar do piloto, que vai tranquillamente encostado á cana do leme, sereno em meio da azafama geral, saboreando-se nos mil accidentes de bordo, como homem que morreria nostalgico se porfiasse a sorte em arrancal-o ao mar.{49}
O Palinuro do Baquet é o snr. Antonio Moutinho de Sousa, actual empresario.
Nasceu para o theatro como o piloto nasceu para as vagas.
É alli que elle vive feliz.
Derivaram os primeiros annos de sua vida na eschola e na ourivesaria de seu pae, mas chegado a idade em que no espirito começam a desabrochar as tendencias, boas ou más, ao sabor das quaes havemos de fazer a peregrinação terrena, o snr. Moutinho, contados 24 annos, embarcou para o Rio de Janeiro, e foi escripturar-se no theatro do Gymnasio.
Os jornaes brasileiros de 1858 festivamente commemoram a brilhante apparição do snr. Moutinho no Gymnasio. Ha um periodo notavel do Correio Mercantil que diz assim: «O primeiro passo da sua vida artistica como os dos antigos guerreiros da sua patria nas areas d'Africa a derrubarem nos campos da lucta os obstaculos que lhes impediam a victoria, foi grandioso e decisivo! Percorreu em um só dia o escabroso e longo estadio que conduz o talento ao perystilio do sanctuario das artes.» O ser actor revelou-lhe que tambem podia ser litterato,—dramatisou, folhetinisou e versejou agradavelmente, mas todos os lances solemnes da sua vida ao theatro os deveu.
Casou em primeiras nupcias com a actriz D. Ludovina Devecchy, e em segundas com a actriz D. Amelia Simões.
Parece que todo o seu fito foi escolher esposa que{50} comprehendesse as tradições gloriosas do theatro e houvesse sacrificado no altar do bello.
Se o snr. Moutinho tivesse casado com certa dama que uma vez dissera ter ouvido uma peça em cinco dramas, o snr. Moutinho requereria immediatamente divorcio.
Como empresario tem o seu camarim. Podia ter simplesmente um escriptorio, mas o snr. Moutinho quer ter camarim para se enganar a si proprio. Passa as noites d'espectaculo a tomar café. É um velho habito theatral. Quer excitar os nervos para as luctas da scena, como se houvesse de representar.
Encontram-se n'elle todos os requisitos d'um empresario, e até, se attendermos unicamente ao homem, conheceremos que o snr. Moutinho está entre a gordura do empresario Palha e a gordura do empresario Price. Todavia affigura-se-nos que o snr. Moutinho poderá fazer um d'aquelles admiraveis prodigios que só se conseguem no theatro, e vem a ser—representar um papel de galan tendo proporções de empresario.
É preciso acabar, e sahirmos do Baquet.
Toda a gente sabe como se sae do Baquet: hombro com hombro, braço com braço. Tanto se aproximam os espectadores á sahida, que é talvez essa a rasão de se conhecerem todos uns aos outros. Um sujeito conhecemos nós que ao sahir uma noite do Baquet metteu a mão no bolço do bournous para tirar a charuteira, e encontrou com grande surpresa uma caixa de prata. Só então reconheceu haver introdusido a mão no bolso do{51} espectador que vinha a par. Passou angustias para se salvar com dignidade do equivoco... Ora são justamente estas peripecias, todas as circumstancias que ahi ficam amontoadas, que dão ao theatro Baquet uma individualidade caracteristica.{52}
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