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O QUE FOI E O QUE É

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O dia 12 d'outubro de 1833 era de festa para todo o Porto, cidade que vae sempre na vanguarda das iniciativas patrioticas.

Celebrava-se o anniversario natalicio de sua magestade imperial o senhor D. Pedro de Alcantara, duque de Bragança, e regente do reino.

Ao amanhecer, ao meio dia e á noite salvaram as baterias das linhas de defeza ao norte e ao sul do Douro. O general Stubbs, commandante do exercito do norte, passou revista ás tropas estacionadas em seus acantonamentos nas linhas. Estiveram embandeiradas algumas ruas da cidade e estoirou durante o dia muito fogo do ar.

Tanto que foi noite, houve illuminação geral, e abriram-se de par em par as portas do theatro de S. João onde a sociedade dos actores nacionaes, em commemoração de tão faustoso dia, representara um elogio dramatico denominado Gloria de Lisia, terminado o qual elogio{26} o governador das Armas da Provincia levantou vivas á familia real.

A Chronica constitucional do Porto, unico jornal que a esse tempo era lido de portuenses, escrevendo do espectaculo diz que diversas obras Poeticas, e Hymnos encheram os intervallos do Drama que foi á scena.

O snr. João Nogueira Gandra, proprietario da typographia onde se imprimia a Chronica, publicou ao depois em opusculo todos os sonetos que se recitaram n'essa noite e na seguinte, em que o espectaculo se repetiu.

N'aquelles tempos com tal impetuosidade repuxava o patriotismo poetico do imo peito, que não bastavam as breves horas d'uma noite a dar-lhe vasão. Os vates incendidos em amor da patria ficavam com o metro reservado para a noite seguinte, como hoje os nossos parlamentares ficam com a palavra reservada para a sessão immediata.

Deixemos porém as bellesas de 1833 estadeando seus dotes naturaes nos camarotes do theatro de S. João, enviesando olhares mais amorosos que patrioticos aos cysnes que punham fóra da balaustrada o pescoço, cujos musculos se avolumavam apopleticamente quando a onda do estro refervia nos gorgomilos enfartados.

Onde iremos nós levar a nossa mysanthropia, fugindo o congresso do que mais selecto havia em ambos os sexos na sociedade portuense? Mais selecto não podemos dizer, porque faltavam muitas pessoas da melhor{27} roda contemporanea, entre as quaes bardos que hoje se diriam satanicos, e que antepunham o contacto das garrafas á contemplação de mulheres formosas.

Esses taes leram na vespera o seguinte annuncio inserto na Chronica constitucional do Porto:

«Amanhã sabbado 12 do corrente, se abre o novo Caffé do Commercio na rua nova dos Inglezes aonde se encontrarão diversidades de Vinhos e Licores engarrafados, Nacionaes e Estrangeiros.»

A novidade do acontecimento e a perspectiva de lauto beberete devia de attrahir numerosa concorrencia ao Caffé do Commercio, que pela primeira vez se abria n'essa noite na casa onde actualmente está o escriptorio da companhia de seguros Garantia.

Em conformidade com a opulencia botiquineira d'esse tempo, o novo Caffé do Commercio tinha cortinas de chita e mostrava sobre o balcão uma longa fila de copos, voltado para cima o fundo, que servia de base a um limão.

Como ainda então não estivessem arruinados pela dyspepsia os estomagos nacionaes, e houvesse portuguezes que bebiam um quartilho de geropiga com o simples condimento d'uma azeitona, eram minguadas as docerias nos botiquins e ordinariamente limitavam-se a melindres e bichinhas. Quando porém os negociantes da baixa se sentiam enfraquecidos á hora do lunch ou da merenda, não se repletavam com assucarices de nenhuma substancia. O petisco mais em voga eram ostras que vinham de Lisboa já cosinhadas no unico vapor de carreira{28} que então havia, e que se comiam no novo Caffé do Commercio, a 60 rs. cada uma.

Calcule-se do consumo dos liquidos n'aquelle estabelecimento tão prosperamente aberto, depois de saber-se que os mais appetecidos e procurados comestiveis eram ostras, mollusco sobremodo irritante para o systema nervoso, e talvez causa primaria da depreciação da geração actual.

Mas voltemos á abertura do novo Caffé solemnisada na rua dos Inglezes com vistosa illuminação que sobrelevava as demais.

Apollo presidiu em espirito á bacchica tunantada.

Os vates empunharam as lyras e, por muito costumados á dedilhação, até das bambas cordas tiraram muito correctos sonetos, mais lisongeiros ao duque de Bragança que agradecidos ao proprietario do botiquim, não obstante sentirem enervado o braço pela acção cada vez mais intensa dos liquidos.

Parece que deposta a oitava-rima, por inopia de pojantes Camões, a fórma de metro mais patriotica n'aquelles tempos era o soneto, que, por muito familiar que fosse a festa, havia forçosamente de ser allusivo aos acontecimentos politicos da epocha.

Um dos cysnes levantou o pescoço e modulou este soneto, que logo foi distribuido pelos circumstantes:

Se brama pelos Ceos da Liberdade

O espantoso trovão da Tyrannia;

Se cobrem trévas a Lusa Monarquia,

Fulge o clarão da antiga Heroicidade.{29}

Quanto cresce a despotica maldade,

Assim dos povos o valor porfia,

Com o Chefe de Bragança por seu guia Enchem d'assombro a vindoura idade.

Dias felizes, dias venturosos,

Augura-nos o Ceo, em dons fecundo!

Maria e Pedro nos farão ditosos.

Daremos nobre exemplo á Europa, ao Mundo:

Que os Povos de ser livres sequiosos,

Calcam do despotismo o rosto immundo.

O segundo soneto afina pelo mesmo tom emphatico;

Thronos ha tido o Mundo, que producto

Foram tão só de Leis, e sangue herdado,

Quaes desde longo tempo celebrado

Os gosa Portugal indissoluto.

Outros não foram mais que excelso fructo

Da Justiça, e do Merito elevado;

Qual Viriato, e qual Sertorio honrado,

Reis ou Chefes por solido atributo.

Taes houve, e ainda os ha, a quem Cobiça,

Ou Acazo erigio, contra seu Dono

Fervendo a Execração que a Raiva atiça!

A Segunda MARIA em seu abono,

Em mais bases que as Leis e que a Justiça

Tem sobre corações firmado o Throno.

O terceiro soneto troa assim:

Se em nossa idade, ó Jupiter, quizeste

Com terrivel aspecto olhar a terra,

Se os males todos da sanguinea Guerra

Surgir do negro Barathro fizeste:{30}

A PEDRO tu doaste um dom celeste,

Que ao fero Usurpador confunde e aterra:

Monstro dos monstros, que no peito encerra

Tartareas serpes que vomitam peste!

PEDRO, d'altas virtudes coroado,

Olha nos Luzos inconcusso abono

De elevar sua Filha ao Solio herdado.

Nunca Lisia hade ter intruzo Dono;

Seu Rei é como os Numes adorado,

E tem nos corações firmado o throno.

Falta o quarto soneto;

Nos faustos Ceos de Lisia triunfante,

A Liberdade o grito levantando,

Ferros ao Despotismo vai lançando

De têmpera mais dura que o diamante.

Do Throno o esplendor salva constante

D'um principe brioso ao nobre mando:

O Solio, quasi em terra, sustentando,

Esmaga a Hydra de aspecto vacilante.

Oh Principe ditoso, exulta, e vive,

Para que esta Nação por Jove eleita

Dos teus Decretos os seus bens derive.

Da Patria, como Pai a olhar-te affeita,

De Lisia, que na gloria hoje revive.

Do salvo Povo, os corações acceita.

Não obstante o fallar-se de corações nas composições precedentes, parece que a viscera mais attendida na bambochata era o estomago, e a illuminação por igual abundante dentro e fóra.{31}

O dono da casa não tinha sobejos motivos para ficar lisonjeado da amabilidade dos convivas que não fallaram d'elle nem do botiquim.

O certo é que n'aquella epocha em que não havia editores, os vates lucraram duplamente com o brodio, porque ao depois se imprimiram os sonetos na typographia Gandra, sendo cada soneto precedido d'estes dizeres;

PUBLICADO E DISTRIBUIDO A 12 DE OUTUBRO

DE 1833:

POR OCCASIÃO DA ILLUMINAÇÃO,

QUE NA RUA NOVA DOS INGLESES DA CIDADE DO PORTO

SE PATENTEOU N'ESSE DIA DE ABERTURA

DA CASA DE CAFFÉ DO COMMERCIO

Custava o folheto, de quatro paginas, um vintem.

Se bem que os versos em 1833 estivessem mais baratos do que as ostras, os poetas, attento o pequeno dispendio da impressão, deviam enfardelar no mesmo sacco, a despeito do anexim, honra e proveito.

Ora este Caffé do Commercio, que recebeu ao nascer o baptismo da politica, veio depois a mudar-se para a Praça da Batalha com o nome de Aguia d'Ouro, sem todavia desmentir, apesar da mudança, as tradições que lhe embalaram o berço.

Venus do botiquim, sahiu da onda da revolução e mantem-se revolucionario, posto que decorado ao gosto moderno, com espelhos, mesas de marmore, e apainelado o tecto com manchas multiformes de humidade e immundicie.{32}

Não obstante o desgracioso do tecto, alli se travam ainda os grandes acontecimentos portuenses, as pateadas, os meetings, as eleições, e alli se discutem as magnas questões do estado.

Verdade é que ha outro botiquim onde se conversa de politica,—o Suisso.

Todavia este caffé usa entreter-se na tranquilla politica municipal, ao passo que os mais animados debates da Aguia versam sobre politica governamental.

Da Aguia tem sahido acontecimentos para a historia; do Suisso, que nos conste, apenas uma ou outra occasião sae uma embriaguez para a pharmacia.

Sem embargo muitas discussões da Aguia acabam por diluir-se em amoniaco.

Já disse pois o que foi a Aguia d'Ouro e o que é.

Quanto a mim, a Aguia d'Ouro é... o que foi.{33}

Entre o caffé e o cognac

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