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(NO DOMINGO GORDO DE 1873)
ОглавлениеElle é grande e triste. Não obstante hade esta noite encher-se de sociedade sedenta de recrear-se. As senhoras estão nos camarotes como livros de marroquim em estantes de mogno. Lêem-se as etiquetas e passa-se adeante.
Os bailes de mascaras permittem em toda a parte que se atire uma flôr, um rebuçado, uns versos. Alli não. O mais que se atira é um... olhar. O mais que se faz é um cumprimento. Bonitos livros mas em sanskrito. Tudo luxuoso e frio.
É que elle, o theatro de S. João, é grande e triste.
No Palacio de Crystal um baile de mascaras é uma batalha; os galopes são cargas de bayoneta. No theatro de S. João valsa-se para passeiar á roda com outra mascara. No palacio bebe-se Xerez ou Porto; em S. João parece que todas as pessoas estão costumadas a{34} tomar vinho em... pilulas. Gostam de comer delicadamente um cacho d'uvas, e sentem-se horrorisadas deante d'uma garrafa. Para ir a S. João basta haver ceiado; para ir ao Palacio é preciso ter comido uma ceia. S. João é uma sala; o Palacio é uma avenida. Em S. João é uma visita; no Palacio é uma escaramuça; a S. João vae o mascara; ao Palacio vão as mascaras.
Depois que dá meia noite parece estremecer a grande nave do Palacio na vertigem do galope. É um assalto á quaresma que está perto, uma lucta, um combate; é preciso vencel-a e dançar ainda em quarta feira de cinza. É uma invasão das hostes do carnaval pelos reinos das endoenças. Ah! tu estás ahi, ó roxa penitencia, a dois passos de distancia, palida dos teus jejuns, angustiada pelos teus cilicios, arrependida dos teus erros! Pois bem. Nós somos o vendaval da alegria, que saccode as tranças loiras da Magdalena peccadora. Tu queres impor-nos o arrependimento, e nós queremos vencer-te para que nos deixes valsar algumas horas mais.
E rompem de esfusiada pelo salão fóra os pares, parecendo correr todos a aggredir um ponto invisivel, um inimigo mysterioso.
No theatro de S. João o baile de mascaras não é uma refrega mas um acampamento. Parece descançar-se em vez de combater-se. As armas estão ensarilhadas, porque é a noite em que mais se dispensa o binoculo. Espera-se que sejam duas horas da manhã para retirar. Quando começa o sopro do Euro, o vil quebranto{35} a agitar as arvores da Batalha, principiam a rodar as carruagens. É que tambem as palidas bellezas parecem sopitadas pelo vil quebranto. Esta phrase é d'um grande poeta contemporaneo, o snr. Raymundo Felgueiras, no final d'uma formosa quadra que eu li algures:
Cahiste, como a rosa desfolhada,
Que não via murcho o purpurino encanto,
Não aos beijos da brisa perfumada,
Mas ao sopro do Euro, ao vil quebranto.
Ás duas horas murcha o purpurino encanto. Os candelabros bruxoleam. Os porteiros—aquelles homens mysteriosos que ninguem ainda pôde vêr de dia na rua—dormem pelos corredores dentro dos seus amplos casacões.
Sae-se pois ás duas horas, fugindo ao tempo, emquanto nos outros theatros se corre ainda atraz do tempo para detel-o.
O Camões do tecto tem já fechado o unico olho que lhe resta. João Baptista Gomes resona. Almeida Garrett está aborrecido por não vêr damas a quem esteja galanteando. Gil Vicente, o falso Gil Vicente do theatro de S. João, pensa em escrever um novo romance satyrico modelado pelo seu Gargantua et Pantagruel. Que mistiforio é este! Gil Vicente a escrever romances satyricos... em francez! Perdão, é que o Gil Vicente do theatro de S. João não é Gil Vicente mas Rabelais.
Eu lhes conto.{36}
Quando se tractou de pintar o tecto do theatro, os administradores da casa a esse tempo perguntaram ao meu erudicto amigo o snr. José Gomes Monteiro se conhecia os retratos de João Baptista Gomes e Gil Vicente. Sua ex.ª indicou o paradeiro do retrato de João Baptista, e pelo que tocava ao de Gil Vicente certificou os administradores do theatro de que não havia deixado retrato. Esta circumstancia pareceu contrarial-os vivamente.
—Mas, volveu o consultissimo bibliophilo, podem facilmente fazel-o substituir por outro escriptor.
—Isso prejudica um pouco o nosso plano.
—Sim; nós optamos pelo Gil Vicente, acrescentou outro administrador, e... queremos o Gil Vicente.
—Mas se não deixou retrato!
—Emfim, se a gente advinhasse como era Gil Vicente!
—Ah! isso póde muito bem ser.
—Pode ser?
—Muito bem...
—Como?
—Fazendo substituir Gil Vicente por outro escriptor da epocha.
—Óptima lembrança!...
—Qual ha de ser?
—Vejamos...
—Vamos a vêr se lembra.
—Lembro-me d'um! apostrophou o snr. José Gomes Monteiro.{37}
—Qual?
—Um escriptor da mesma epocha e cuja individualidade litteraria não deixa de ter seus pontos de contacto com Gil Vicente...
—Chama-se?
—Rabelais.
—Muito bem!
Procurou-se o retrato de Rabelais, e pintou-se Gil Vicente, aquelle Gil Vicente que o leitor póde vêr esta noite n'um dos quatro medalhões do tecto do theatro de S. João, e que a mim mesmo, que sei esta anecdota, me fez algumas vezes desconfiar de que não seja Rabelais, porque o meu binoculo me permitte vêr em grandes caracteres o nome de Gil Vicente sotoposto ao medalhão...
O caso é que Rabelais, á hora que os camarotes se despovoam, parece preparar na mente, a julgar pela contracção sarcastica das faces, um novo romance satyrico em que moteje da composta austeridade da sociedade portuense n'um theatro onde, ha cincoenta annos, se queimou fogo artificial no palco, executado por João Semelhes, e um palhaço divertiu os espectadores com a graciosa Macaquinha, e se dançou o Fandango, e se fez a exhibição da Corda Bamba.
Para os leitores que duvidarem da fidelidade d'estas asserções vou copiar alguns periodos de dois annuncios d'espectaculo n'aquelle theatro, no tempo em que alli trabalhou uma companhia de funambulos, o que devia d'acontecer ahi por 1824. Os avisos trazem{38} apenas indicado o dia; não me foi possivel precisar a epocha.
No primeiro aviso, correspondente a 24 de julho, lêem-se estes periodos:
«O Palhaço divertirá os Senhores Espectadores com novas, e diversas habilidades, entre as quaes executará a Scena do Bebado, dando fim a esta primeira parte a graciosa Macaquinha.»
Mais abaixo:
«Madama Joannita, e o Diabrete dançarão os Boleros, dando fim o divertimento com duas peças de Fogo Artificial de composição Italiana, executadas por João Semelhes, cujas constão de hum brilhante sol com variedades de côres, entre as quaes apparecerá o raro fogo azul, e outra que figura uma Rosa Italiana transparente, donde apparecerá por tres vezes um distico aluzivo a Sua Magestade fidelissima (D. João VI) formando-se no fim em uma brilhantissima Gloria, rodeada de lindissimas estrellas.»
Do segundo aviso, correspondente a 3 de fevereiro, basta citar estas linhas:
«... dançará depois Madama Joannina o Sólo Inglez, a que hão-de seguir-se os vistosos equilibrios do Menino, depois dos quaes se dançará o Fandango, terminando-se todo o devertimento com a Corda Bamba, onde o insigne Diabrete fará admiraveis difficuldades.»
A sociedade d'aquelle tempo riu e applaudiu com sincero enthusiasmo todas as facecias e evoluções da companhia de funambulos.{39}
Agora, por maior que seja a festa e o artista, parece que ninguem traz gratas sensações do theatro de S. João mórmente d'um baile de mascaras. Faz-se um silencio sepulchral nos intervallos. Ás vezes apenas se escuta um levissimo rumor: é uma fita que se agitou ou uma petala que se despegou d'um toucado. Em epochas mais turbulentas atiram-se estalos á plateia. Os artistas italianos, quando lá fóra lhes perguntam pelo clima de Portugal, já vão respondendo:
—É bom; o peior que tem é o estalo.
O estalo no Porto é como a febre amarella na America e a carneirada na Africa.
Tirante o accidente do estalo, o clima do theatro de S. João não prejudica ninguem. Sae a gente como entrou: quente se entrou quente, fria se entrou fria. Antigamente, quando se ceiava nos camarotes da quarta ordem, podia a gente sahir de lá com uma indigestão, ou, quando se exhibia a graciosa Macaquinha, rebentar um suspensorio, ou finalmente chamuscar o casaco quando o Semelhes queimava fogo artificial no palco.
Qualquer d'estas contrariedades podia ser perigosa, mas sendo a vida uma serie de perigos, viver era aquillo.
Agora, ó Catalani, ó Milanez, ó madama Joannita, ó phosphorecente Semelhes, eu lembro-me tristemente de vós, e desejo-vos; principalmente se ha estalo, invejo-te, Semelhes!{40}
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