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O PRIMEIRO DE JANEIRO

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O Primeiro de Janeiro é como os viajantes que teem de partir ao romper da manhã: passa a noite a fazer a mala.

Quem vae de jornada prepara-se para todas as eventualidades: mette ao sacco seis lenços supranumerarios para uma constipação; a casaca para uma soirée inesperada; um frasco d'agua sedativa para uma nevralgia; dois livros para uma hora d'aborrecimento; os sapatos de borracha para um dia de chuva. Ainda como o touriste, o Primeiro de Janeiro dispõe-se a poder satisfazer todas as reclamações que o assaltem no caminho: para os impacientes leva na mala os telegrammas, para os negociantes as cotações, para os politicos o artigo, para os ociosos o folhetim, para os alviçareiros as noticias, para os interessados os annuncios, e para as senhoras as modas.{18}

Os passageiros vão sentados no vehiculo; elle vae a correr pelo caminho. Quando o comboyo parte, apparece-lhes nas Devesas; quando chega a Aveiro, encontram-no na estação; quando passa em Coimbra, o Primeiro de Janeiro salta aos vagões e diz aos viajantes engalfinhando-se na portinhola: Aqui estou!

Que prodigio de ubiquidade é este? Como é que o jornal chega primeiro que o homem! Ah! é porque o homem é o barro, e pesa, e o jornal o pensamento, e vôa. Nasceu da faisca electrica e do vapor; é irmão gemeo da locomotiva. O comboyo leva o homem; o jornal o pensamento. O motor d'um é a machina; o do outro o espirito humano. São os passaros da civilisação, as aguias do progresso. Por isso Arsenio Houssaye disse: «O jornal é a ave errante que atravessa o mundo: prendei-lhe a vossa ideia á asa, e a vossa ideia florirá nos mais remotos desertos.»

Nada ha menos complicado que o jornal e mais complexo que elle: é a sociedade, a raça, a civilisação e o seculo. É o thermometro que mostra o grau da vitalidade popular, a lente que reproduz a lucta das gerações, o melhor historiador e a melhor historia.

Poderemos chamar ao Genesis o jornal da creação do mundo, o que nos leva a crêr que esta manifestação do pensamento publico não data unicamente dos tempos de Guttemberg, mas vae pelas idades a dentro procurar origem no fiat creador que deu fórma e movimento ao nada. Á medida que a intelligencia do homem ia profundando a sonda n'este mar de bellezas infinitas{19} que o verbo creador espraiou entre as balisas do universo, e se foram arando os mares, e desbravando as florestas, e povoando cidades e consolidando imperios, a vida das nações tomou um incremento que se não poderia registar em longas chronicas, como os commettimentos da antiguidade, senão que dia a dia, hora a hora, momento a momento. A personalidade moral do homem dilatou-se e, na impossibilidade material de estar em toda a parte, diffundiu o seu pensamento em particulas que voaram aos grandes centros attrahidas pela gravitação que regula a harmonia das sociedades. Então o jornal renasceu de si mesmo, multiplicou-se, e começou a collaboração universal dos povos á beira da prensa d'onde todos os dias parte o mensageiro alado a sacudir da plumagem as ideias que o homem lhe prendeu. É o correio do mundo, o postilhão dos seculos; anda sempre e não cança. Cada geração tem o seu temperamento collectivo, as suas paixões, as suas luctas, os seus revezes e os seus triumphos. O jornal, que é tudo isso, irá resuscitando amanhã do tumulo que se fechou hontem, e acompanhará o movimento febril das gerações que se succedem. O que viajar mais depressa, será sempre o mais querido. Espera-o a officina e o albergue com a impaciencia de quem sabe a hora a que deve chegar um mensageiro. A velocidade é indispensavel, mas ainda não é tudo. É preciso que o jornal não seja egoista, não roube ao operario o pão do corpo para lhe dar o pão do espirito, que não esbulhe as creanças do patrimonio que o salario do pae vae dilatando cada dia. Urge{20} pois que o jornal tenha azas para chegar depressa, e que reuna á velocidade a modicidade para sustentar equilibrio entre a receita intellectual, que o jornal representa, e a receita economica, que o trabalho produz.

O Primeiro de Janeiro reune estas duas condições maximas, que se completam pela sanidade da doutrina, e mais d'uma vez tem nas primeiras horas do dia entrado ao albergue e á fabrica firmado pelos primeiros escriptores do paiz. Realisa o desideratum que em 1848 intensamente preoccupava o espirito de Alphonse Karr: «Eu publicava então em Paris—diz o author das Tresentas paginas—um jornal a 10 reis, no qual collaboravam os nomes mais celebres e mais festejados. Queriamos vêr se as classes populares preferiam—como pensam alguns—o vinho tinto das barreiras ao Château-Laffitte e ao Rheno;—queriamos fazer a experiencia e dar-lhes o Château-Laffitte e o vinho do Rheno pelo preço do vinho d'Argenteuil. Por dez reis—o preço das mais grotescas e das mais odiosas especulações—fazer vender um jornal bem impresso, em bom papel, com artigos dos mestres da litteratura.»

O Primeiro de Janeiro entrou abroquellado no certamen. Quiz vêr se o povo preferia o vinho da Bairrada ao vinho do Porto, e conheceu que era essa uma calumnia de pessimistas aristocratas. O povo lia a Formosa Mangalona e o Vicente marujo porque lhe não facultavam um jornal que simultaneamente lhe ensinasse as evoluções do mundo physico e do mundo moral, não porque o jornal tivesse a pretenção de resumir em si a{21} sciencia universal, mas porque da natureza mesma dos assumptos do dia derivavam os conhecimentos que o jornal espalhava. Trabalhou para lhe dar o vinho do Porto pelo vinho da Bairrada, e provou que a inanidade das classes baixas provinha do abuso da zorrapa com que dessedentavam o espirito diante da litteratura de cordel e cego andante. Luctou, batalhou, e conseguiu dar ao povo, por dez reis, um almoço de politica e litteratura,—o romance das nações e o romance dos homens.

Alphonse Karr, quando estava empenhado em tão santa crusada, devotou-se inteiramente a ella; não visitava o seu jardim de Sainte Adresse; esqueceu as flores e o mar. O Primeiro de Janeiro vive igualmente para o povo. Emquanto o povo dorme, vae o prelo imprimindo a ideia que pela manhã ha de saltar na rua.

Enxameiam á porta os gavroches como soldadesca impaciente de dar batalha. Esperam o almejado momento de transpôr o limiar. E no phrenesi do desespero saracoteam e gritam:

—Abram!

—São horas!

—Já é tarde!

Sentem ranger os gonzos. Apinha-se a multidão em vaga encapellada, e entra de tropel. Os empregados da machina dobram os jornaes. O distribuidor está de pé.

C'o a mão no junco, irado e não facundo,

Ameaçando a terra, o mar e o mundo.{22}

—Que leva hoje?

—A novidade?

—Diga, diga!

É o côro dos gavroches que pedem anciosamente o pregão. O distribuidor tem lido previamente o jornal. Faz signal de silencio e vota falla:

—Foi o raio que matou um homem.

Calam-se, conticuere omnes, a fixar na memoria o pregão. O receio de se esquecerem faz com que realmente se esqueçam. Lá pergunta um:

—É o homem que matou o raio?

—Toleirão! Foi o raio que matou o homem.

São-lhes distribuidos os jornaes; os gavroches rugem de impaciencia. Para que não haja rivalidades, saem todos ao mesmo tempo. É um furacão que passa.

Que sejam mancos ou não, pouco importa. N'aquelle momento todos teem azas... nos pés, como Mercurio. Estala a multidão na rua similhante a bombarda. É a noticia, o telegramma, o romance, a politica que sapatea no solo. Começa a vida no exterior. Saíu o sol. E o operario antes de trabalhar para o patrão trabalha para si,—vae lêr.

O que é feito do Moienes, do Morte-scaloia, do Pintasilgo, do Pau-preto, do Cacaracá? Desappareceram. Demoram-se apenas um segundo para entregar o jornal e receber o dinheiro. Resta unicamente o José Custodio, o melhor typo da collecção, sentado no passeio, repousando a perna manca, a lêr o jornal atravez da sua famosa luneta. É um grande egoista o José Custodio.{23} Antes de dar aos outros, quer para si. E depois fia-se no seu talento comico, e sabe, dando ouvidos ao orgulho, que os outros não vão mais depressa por ir primeiro. Basta-lhe apregoar para vender. Estão agrupados os pedreiros a almoçar. O José Custodio vae mancando e gritando:

—Licença que veio do governo para os côdeas usar bigode!

O sapateiro, quando elle passa gritando, berra de dentro. O José Custodio esbofa-se a apregoar:

—É a morte d'um sapateiro que morreu entalado com um pino!

O José Custodio é o epigramma, a satyra, a mordacidade vibrante. Por onde elle passa, incendeia o rastilho da curiosidade. Até certo ponto, encontrou um rival no Jeronymo, que tinha d'engenhoso quanto o José Custodio tem de mordaz. Eram os pimpões do rancho; reinadios como nenhum! O Jeronymo affeiçoou-se a um cão, ou o cão se lhe affeiçoou a elle. Comprou um carro de pau, que o fiel mollosso tirava, e onde levava o jornal; a ideia do vehiculo suscitou-lhe a tentação de negociar em larga escala. Começou a vender por sua conta folhetos e repertorios. Era um andar que luzia! Um dia aborreceu-se de ser feliz e desertou: o cão desertou com elle. Mas que imaginoso homem o Jeronymo! No tempo da guerra franco-allemã arranjou tres canas com encaixes de folha. A ultima tinha no topo uma campainha, um gancho e um saquitel que se moviam por correia. Sahia de noite o supplemento. Batia{24} com a cana na vidraça, a campainha tocava, no gancho ia o supplemento, o freguez abria a janella, e o Jeronymo descia o saquitel que trazia dentro dez reis.

Vejam que talento este! Ó prodigio!

Um cego muito conhecido, que ainda não encontrou cão fiel e precisa de ganhar a vida, assalariou um rapasinho que o conduz. O cego apregoa, e o rapasinho recebe o dinheiro para vêr se é falso.

E é assim que o jornal, que espalha a ideia, ampara a cegueira d'uns, a vida d'outros, e a pobresa de todos.

Olá! São elles, os gavroches, que pedem o jornal d'hoje. Espera-se unicamente pelo folhetim. Pois bem, o folhetim ahi vae.{25}

Entre o caffé e o cognac

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