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Conta-se a anecdota de certo prelado de uma diocese do Alemtejo, homem de lettras afamado, que viveu no tempo do marquez de Pombal e que, em estando entregue aos seus trabalhos litterarios, de nada mais queria saber.

Um anno, pelo tempo das boas-festas, estava o bispo sentado á banca, no seu vasto escriptorio—um salão do paço episcopal—quando um diocesano entrou para cumprimental-o.

O prelado não deu tento da entrada do homem, tanto era o interesse que lhe merecia o assumpto de que estava tratando.

—Sr. bispo! apostrophou timidamente o recem-chegado.

O bispo não ouviu.

—Sr. bispo! tornou a exclamar o visitante.

Nada! O bispo não ouvia.{39}

Então, muito compromettido, o visitante resolveu-se a empurrar uma cadeira para fazer barulho.

O bispo voltou de subito a cabeça. Viu-o, e perguntou:

—O que é que quer?

—Eu vinha visitar v. ex.ª

E o bispo, continuando a escrever, respondeu:

—Pois visite, visite.

*

**

O curso do quinto anno de direito estava simulando audiencias, como é costume, fazendo um estudante de juiz, outro de escrivão do processo, outro de official de diligencias, etc.

Constituiu-se o tribunal, e o professor da cadeira disse ao estudante que representava de juiz:

—Ha sussurro na sala. O que faz o sr. juiz?

—Toco a campainha, e recommendo silencio ao auditorio.

Mas o professor insistiu:

—Continua o sussurro. O que faz o sr. juiz?

—Torno a tocar a campainha, e de novo recommendo silencio.

—Mas supponha que não basta isso. O sussurro continua.{40}

—N'esse caso, direi: Official, tome nota das pessoas que estão fazendo sussurro, para serem autuadas.

—Mas o sussurro redobra.

E o estudante, já muito atarantado, exclama:

—Redobra!

—Sim, senhor,—o sussurro redobra.

O estudante pensa um momento...

—Então, insiste o professor, o que fazia o sr. juiz?

—Eu? Eu fazia isto: punha o chapeu na cabeça e dizia: Está levantada a sessão.

Riu o professor, riu todo o curso, e o estudante salvou-se da entalação d'aquelle dia,—por ter tido uma idéa e um chapeu.

*

**

Havia um grande capitalista, que, por ter um sobrinho muito extravagante, já lhe não queria dar vintem.

Um dia appareceu-lhe o sobrinho annunciando que ia partir para os Estados Unidos, onde poderia vender melhor do que em Portugal, dizia elle, o segredo de uma invenção maravilhosa.

O tio, picado de curiosidade, quiz saber no que consistia a maravilhosa invenção. Recusa do sobrinho. Insistencia do tio. Finalmente, o{41} sobrinho revelou o seu segredo: tinha descoberto o processo de fazer oiro. O tio, tão rico como ambicioso, resolve comprar-lhe o segredo por seis contos de réis. O sobrinho, simulando alguma difficuldade, acaba por vender-lhe a receita, que o tio paga immediatamente. Concluida a transacção, despedem-se, mas, já no fundo da escada, diz o sobrinho ao tio:

—Ah! esquecia-me uma coisa, meu tio. Para que a receita dê resultado satisfatorio, é preciso que o tio, quando quizer fazer oiro, não se lembre do elephante branco.

E saiu com o dinheiro na algibeira.

O tio tratou de montar o seu laboratorio, e de realisar a receita. Mas, por mais que quizesse affastar do seu espirito a idéa do elephante branco, essa terrivel idéa acudia-lhe sempre, pelo que jámais conseguiu tirar da compra que fizera o resultado que esperava...

*

**

Não sei quando, nem mesmo onde, existiam dois esposos, que se enriqueceram... de filhos. A boa fortuna parecia apostada em querer que elles esgotassem todos os nomes do Flos sanctorum.

Começaram pelos vulgares. Os primeiros filhos chamaram-se Manuel, Joaquim, Antonio, João. Depois passaram a escolher nomes romanticos:{42} Arthur, Laura, Beatriz, Egberto. Por ultimo, tiveram que lançar mão dos nomes mais esquisitos e arrevesados: Cunegundes, Tecla, Mafalda, Thimoteo.

Um dia, quando já era difficil saber a conta de todos os filhos, e acertar-lhes de prompto com os nomes, saiu o pae a passeio e, longe de casa, encontrou na rua uma creança que chorava, escondendo o rosto entre as mãos.

Apiedou-se, dirigiu-se á creança, levantou-lhe a cabeça, achou que tinha uns olhos bonitos, e disse-lhe:

—O que fazes tu por aqui, meu menino!

—Ando perdido.

—Pobre creança! Sabes quem é a tua familia?

—Não estou bem certo d'isso, meu sr.

—Tens fome?

—Muita, muita.

—E frio?

—Muito frio...

—Está bem, anda d'ahi comigo.

Onde ia elle levar a creança? Ora! onde é que o negociante feliz vai depositar os seus lucros? No Banco. Pois o Banco onde esse feliz casado enthesourava todos os lucros da sua prosperidade conjugal era... a sua propria casa,—o seu lar.

Chega elle, muito contente, com a creança pela mão.{43}

—Querida mulher! disse ao entrar em casa. Trago-te mais uma creança...

—Outra?!

—Sim, filha, tu és bondosa, compassiva, has de comprehender o impulso do meu coração.

—O que queres dizer?

—Quero dizer que encontrei na rua, abandonada, esta pobre creança, que não sabe ao certo quem são os seus pais e onde moram.

E o pequeno, escondendo o rosto choroso entre as mãos, arquejava, soluçava...

—Vendo-o, pensei commigo mesmo: Onde cabem vinte, podem caber vinte e um. Eis aqui está o que eu pensei, e trouxe-o commigo.

—Que Deus nos ajude, homem! mas já estávamos tão sobrecarregados!

—Quando tinhamos apenas seis filhos já diziamos isso mesmo! E comtudo tem havido logar para todos, nenhum d'elles ainda morreu de fome.

—Pois bem! fique o pequeno.

A creança conservava-se ao canto da casa, soluçando, arquejando.

—Disseste que era bonito o pequeno?

—Olha para elle, e verás os lindos olhos que tem!

—Levanta a cabeça, meu menino.

A creança não se mexia. Arquejava, soluçava.

Então foi preciso levantar-lhe a cabeça quasi á força.{44}

—Ora esta! exclama a dona da casa.

—O que é?! pergunta o marido.

—É o nosso Augusto!

Eram tantos, que já nem o pai os conhecia!

*

**

Sabem o que é muito difficil no carnaval?

É encontrar um companheiro que nos não incommode e que nos não contrarie.

Ah! isso é que é muito difficil!

Eu apenas conheço um caso em que certo amigo meu poude encontrar o melhor dos companheiros para um baile de mascaras.

Esse companheiro era um general, que parecia excellentemente disposto: alto, forte, com um bello bigode branco, e algum brilho ainda nos olhos.

O meu amigo convidou-o para irem a um baile de mascaras. Acceitou logo. Foram.

Uma vez no baile de mascaras, o meu amigo sentou-se junto a duas mulheres mascaradas. O general tambem. O meu amigo fallava-lhes. Ellas respondiam. Só o general estava calado, parecendo comtudo excellentemente disposto.

Convidou-as o meu amigo para irem ceiar todos juntos. O general não oppôz a menor resistencia.

—Pois sim! vamos lá ceiar, disse elle.{45}

Foram ceiar.

As mulheres tiraram a mascara. O meu amigo disse a uma das mulheres que gostava muito d'ella, o general não disse nada á outra.

Comeram. O general comeu tambem. No fim da ceia, queimaram todos quatro as suas cigarrilhas. O general parecia excellentemente disposto. Desabotoou o collete, repotreou-se na cadeira, accendeu segunda cigarrilha.

Veiu a conta. O meu amigo quiz pagar toda a despeza; o general não consentiu, quiz pagar tambem a sua parte.

Sairam.

O meu amigo, voltando-se para o general, disse-lhe:

—E agora?

O general, parecendo sempre muito bem disposto, inclinou-se ao ouvido do meu amigo, e disse-lhe:

—Olhe, meu caro, eu já não tenho condição nenhuma para gostar de um baile de mascaras.

E o meu amigo, sem se desconcertar, sem se surprehender, offereceu o braço direito a uma das mulheres, o braço esquerdo á outra, e disse ao general, que continuava a parecer muito bem disposto:

—Boa noite, general.{46}

*

**

Certo estudante, tendo faltado ás aulas, apresentou uma certidão de doença, falsa.

O medico que a passára era uzeiro e vezeiro em justificar a cabula dos estudantes, que lhe pagavam a justificação.

Do alto da cathedra, o professor, tendo relanceado os olhos á assignatura da certidão, perguntou:

—Ó sr. Fulano! se estivesse doente chamava este medico para o tratar?

O estudante respondeu com promptidão e firmeza:

—Não, senhor.

*

**

Tinha Antonio Feliciano de Castilho ido ao Rio de Janeiro, e fôra recebido em audiencia particular pelo imperador D. Pedro II.

A conversação versou, como era natural, sobre assumptos litterarios.

Castilho havia sido prevenido de que o imperador, por amor á discussão com homens notaveis, gostava de que elles o contrariassem nas suas opiniões.

Assim avisado, se o imperador dizia que tal{47} objecto era branco, Castilho sustentava que esse mesmo objecto era preto.

O sr. D. Pedro II estava delirante de alegria, e propositadamente prolongava a conversação.

Veiu a ponto fallarem de versos alexandrinos.

O imperador declarou que não gostava do verso alexandrino, de que, como se sabe, Castilho era enthusiasta.

—Ser-me-ha licito, disse Castilho, perguntar a vossa magestade os fundamentos da sua opinião?

—Acho o alexandrino—replicou D. Pedro II, um metro inutil, por isso que é composto de dois versos de seis syllabas. Digam francamente que fazem versos de seis syllabas, e escusam de baptisar cada parelha de seis syllabas com o pomposo nome de alexandrinos.

Castilho replicou:

—O que faz vossa magestade quando tem sêde?

O imperador sorriu-se, e respondeu:

—Bebo agua.

—Ora muito bem! tornou Castilho, mas se vossa magestade beber agua por dois copinhos, não fica tão satisfeito como tendo-a bebido de um só trago por um copasio enorme.{48}

*

**

Um homem que se dava excellentemente com a mulher, e que tinha trez filhas muito bonitas e trez filhos muito espertos, não podia soffrer a sogra,—como quasi sempre acontece.

Um dia, ella adoeceu gravemente, muito gravemente. Foi preciso chamar o medico que, depois de lhe vêr a lingua e tomar o pulso, torceu o nariz.

—Isto não está bom! disse o medico.

—O que se ha de fazer então?

—Deitar-lhe bichas, já, immediatamente.

Mandou-se, sem perda de tempo, buscar as bichas, muitas bichas.

O bom do genro assistiu á chegada das bichas, viu-as deitar, chegou mesmo a perguntar se ellas tinham feito bem o seu dever: morder na sogra.

Á noite, no club, dizia elle:

—Assisti hoje a um combate de feras.

—Como assim?!

—Vi deitar duas duzias de bichas em minha sogra...

*

**

Certo professor de medicina perguntava a um estudante:{49}

—Por que é que no tratamento das feridas se emprega o panno de linho velho?

O estudante procurou qualquer razão, e disse-a.

—Não, sr., replicou o cathedratico.

O estudante tratou de procurar outra razão.

Observação do professor:

—Tambem não.

O estudante dá ainda tratos á cabeça para descobrir uma terceira razão.

Então o professor resolve-se a fazer luz no assumpto:

—Por duas razões, e nenhuma d'ellas o sr. foi capaz de descobrir! 1.ª Porque o panno de linho velho é mais barato. 2.ª Porque o panno de linho novo é mais caro.

*

**

Eu estava uma vez no escriptorio de um advogado meu amigo, homem de lettras, jornalista principalmente, que me pedira que esperasse emquanto elle acabava de escrever um artigo de fundo.

A penna rangia vertiginosamente sobre o papel.

Eis senão quando entra um saloio.

—Que é? perguntou o advogado escrevendo sempre.{50}

O saloio respondeu:

—Vinha consultar v. ex.ª sobre uma pequena questão.

—Vá dizendo.

O saloio olhou para o advogado, olhou para mim e olhou para um espelho que havia no escriptorio. Estava embaraçado, duvidoso de expôr o seu assumpto sem que o advogado se prestasse a dar-lhe toda a attenção.

—Vá dizendo, repetiu o advogado.

—Sr. dr.: Ha na minha terra uma mulher de má lingua, que traz todo o logar embrulhado. Por causa d'ella lavram inimisades de familia, questões entre casados, o diabo! Mas de cara a cara ella não se mette com ninguem; é só por traz da cortina. Veiu para lá ha tres annos, comprou uma casita, e trabalha de tecedeira. Mas o que ella tece melhor são intrigas. Por sua causa estou de mal com meu sogro e com meu cunhado. Eu e outros mais da freguezia queremos pôl-a fóra do logar, mas não sabemos a quem havemos de requerer...

E calou-se. O advogado continuava escrevendo.

—Não sabemos a quem havemos de requerer... repetiu o saloio.

O advogado não respondeu.

—Sr. dr., perguntou o saloio, a quem havemos nós de requerer?

O advogado nem palavra.{51}

Mas o saloio não desistiu. Aproximou-se da banca, e tornou a perguntar curvando-se até quasi juntar a sua cabeça com a do advogado:

—A quem havemos nós de requerer, sr. dr.?

—A D. Miguel, respondeu o advogado continuando sempre a escrever.

*

**

Quem conhecia bem a formiga era um certo lavrador do Alemtejo, cujo celleiro as formigas tinham invadido como praga damninha.

Elle consultou todos os chimicos afamados para que lhe vendessem um ingrediente que as matasse.

A droga que lhe receitou o boticario da sua terra, não deu resultado. Veiu de proposito a Lisboa, conversou sobre o assumpto com os mais conspicuos pharmaceuticos da capital.

—Faça isto.

—Faça aquillo.

—Faça aquell'outro.

Nada deu resultado. Um dia, na charneca, aconselhou-se com um pastor. Obrigados, pela solidão em que vivem, á observação da natureza e á philosophia da experiencia, os pastores da charneca têem ás vezes phrases conceituosas, alvitres sapientissimos.

O pastor deu-lhe um conselho, que valia mais do que as drogas dos pharmaceuticos.{52}

Chegado a casa, o lavrador pegou n'uma tira de papel, escreveu n'ella algumas palavras, e foi pregal-a na porta do celleiro.

Legiões de formigas avançavam, pelo veso, em demanda das tulhas. Mas logo que avistavam a porta, e liam o lettreiro, retrocediam como que embuchadas.

No dia seguinte, a mesma coisa. O pastor tinha aconselhado um remedio excellente.

O que escreveu o lavrador no papel? Esta simples phrase:

«De hoje em deante, toda a formiga que entrar no meu celleiro ha de pagar dez réis—por cabeça.»

Ora como as formigas são essencialmente avarentas, chegavam á porta do celleiro, liam o papel, e desandavam para a toca, não sabendo ao certo se o lavrador gracejaria ou fallaria verdade.

*

**

Um moço de fretes costumava ir confessar-se todos os annos, mas fazia a sua chorata ao prior para não ter que pagar a desarrisca. De uma vez, porque lhe parecesse que o prior se aborrecia com a choradeira, que era fingida, andou a procurar entre os seus patacos um que tinha peor cara e que por isso mesmo era mais duvidoso.{53}

Foi confessar-se, muito contricto, com o pataco falso na algibeira. Antes de receber Nosso Pae, pensando sempre em Deus e no pataco, dirigiu-se para a sachristia.

—Sr. prior, disse elle, eu tenho abusado muito da bondade de v. s.ª

—Nem por isso, Ramon...

—Tenho, tenho, sr. prior, mas este anno não ha de ser assim.

E, dizendo, tirava vagarosamente da algibeira do collete o que quer que fosse.

—Este anno, continuou, quero pagar a desarrisca. Se o sr. prior estiver pelos autos, ficará o costume de eu pagar de dois em dois annos.

—Pois seja como quizeres.

E o moço de fretes, tirando o pataco da algibeira, pôl-o a um canto da mesa em que o prior estava escrevendo no livro.

—É poucochinho, sr. prior, mas os annos vão muito bicudos...

—Não fallemos mais n'isso.

—Sempre chega para o rapé. Este pataquinho é para o rapé do sr. prior.

—Pois seja.

E o prior, voltando-se para o menino do côro, que estava perto, disse-lhe imperativamente:

—Ó Zé Maria, vae-me ali defronte comprar um pataco de meio grosso.

O Zé Maria sahiu, a correr, e o moço de fretes,{54} sempre muito contricto, foi ajoelhar-se á mesa da communhão, esperando pelo prior.

Um instante depois, o menino do côro entrava na sachristia com o rapé e com o pataco.

—Sr. prior, disse elle, não quizeram receber o pataco.

—Por quê?

—Porque é falso como Judas. Mas obrigaram-me a trazer o rapé por ser para o sr. prior.

—Deixa lá vêr o pataco.

O prior pegou no dinheiro, levou-o á altura dos olhos, e riu-se. Levantou-se, preparou-se para ir dar a communhão.

Chegando á egreja, descobriu o moço de fretes, que estava já com o queixo muito embrulhado na toalha de rendas.

O prior foi distribuindo as sagradas particulas, mas quando chegou ao gallego, introduziu-lhe o pataco na bocca,—delicadamente.

Habituado a grandes pesos, o penitente nem sequer se admirou de que fosse tão pesada aquella estranha particula.

Mas quando quiz engulil-a, é que foram ellas!

E o prior, de pé, grave e solemne, esperava.

Bem voltas dava á lingua o gallego, mas não havia meio de engulir o pataco.

Até que, com alguma difficuldade, se resolveu a dizer:

—Não passa, sr. prior!{55}

E o prior, sempre muito grave e solemne respondeu-lhe:

—Não passa, não. Já mandei comprar rapé, e não o quizeram acceitar.

*

**

—Por que é, perguntava um professor de agricultura, que as sementes precisam ser enterradas na terra?

—Por isto... dizia um estudante.

—Por aquillo... respondia outro.

O professor zangou-se:

—Não, sr.! É preciso enterrar as sementes para os passaros as não comerem.{56}

Manhãs de Cascaes

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