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N'uma praia solitaria
ОглавлениеUm amigo meu, que se acha n'uma praia do norte do paiz, certamente das menos conhecidas e frequentadas, acaba de descrever-me n'uma carta a maneira como alli tem vivido desde os ultimos dias de julho.
Quando chegou, apenas encontrou já installado um outro banhista, que desde logo se constituiu seu companheiro inseparavel, comquanto então se vissem pela primeira vez.
O meu amigo é de Lisboa, o outro reside actualmente no Alto Minho. Foi o acaso que os reuniu pela identidade de destinos, como dois náufragos desconhecidos que se encontrassem agarrados á mesma tabua de salvação ou perdidos na mesma ilha deserta.
Começaram por tirar cerimoniosamente o chapeu um ao outro, mas ao cabo de duas horas{21} de convivencia tratavam-se por tu,—intimamente.
A ilha deserta em que se encontraram era a unica loja importante da praia,—uma loja onde se vende tudo o que uma pessoa póde desejar em qualquer momento.
Supponhamos que um Lucullo extraviado chegava alli e pedia champagne.
Encostando-se ao balcão, perguntaria:
—Tem champagne?
—Tenho, sim, senhor.
E abrindo um armario mysterioso, cheio de retortas, alambiques, garrafas e garrafões, o dono do estabelecimento demorar-se-ia um instante operando chimicamente.
Passada meia hora, quando muito, apresentaria uma garrafa de champagne, feito talvez de petroleo, talvez de azeite, talvez de vinagre: composição sua.
O freguez poderia extranhar que a garrafa não tivesse capsula de chumbo, mas apenas uma velha rolha porosa.
O dono do estabelecimento responder-lhe-ia imperturbavelmente:
—É verdade isso, mas eu preoccupo-me mais com a qualidade dos meus vinhos do que com a apparencia das garrafas.
Lucullo, sentado á sua mesa de familia, provaria o champagne, e ficaria por ahi, a não ser que quizesse envenenar-se.{22}
Mas, para não ser o unico a cahir no logro, calar-se-ia e, para rir um pouco, aconselharia a toda a gente que fosse comprar o bello champagne da loja do Elephante azul.
Ora é justamente o discreto silencio dos freguezes, que querem ter companheiros na desgraça (solatium est miseris, etc.), que explica a grande clientella que tem, principalmente na epocha de banhos, a loja do Elephante azul.
Foi, pois, n'essa ilha deserta, deserta antes do mez de setembro, o melhor n'aquella remota praia, que os dois solitarios banhistas se encontraram, e principiaram a tratar-se por tu, duas horas depois de se terem visto pela primeira vez.
—Mas então, perguntava o meu amigo, não costuma vir mais gente para aqui?
—Sim, senhor, respondia o dono do Elephante azul, no mez de setembro é tanta a concorrencia, que eu costumo vender todo o champagne, toda a cerveja, toda a genebra que fabrico.
E o outro, que já lá estava a banhos, observava:
—Em setembro, será assim. Mas desde o dia 20 de julho, em que cheguei, até hoje, apenas eu só tenho tido a honra de despertar as attenções dos pescadores. No primeiro dia olharam para mim com surpreza, e nos dias seguintes com espanto.{23}
—Como assim?!
—Espanto de que eu, encontrando-me sosinho, continuasse a ficar...
—Mas agora somos já dois!
—Agora seremos um, in carne una, porque eu já te não largo, amigo da minha alma! até que em setembro chegue mais gente. Tu foste a minha tabua de salvação, ó inesperado e dilecto amigo!
—O que direi eu então de ti, que me proporcionaste occasião de ter com quem fallar da crise monetaria e do caso das Trinas! Feliz de mim, que te encontrei, e de ti que me encontraste! Gloria a Deus nas alturas, e paz na terra... a dois homens!
—Imagina, porém, que, por nos exaltarmos em qualquer discussão, tinhamos de ficar de mal um com o outro?
—Era o mesmo que romper com toda a humanidade!
—Mas o que farias tu?
—Eu?! Eu ficaria de bem comtigo até que, chegando setembro, podesse encontrar dois padrinhos para te mandar desafiar...
Começou agosto, e por mais que os dois amigos espreitassem para dentro de todas as diligencias que se fazem annunciar ao som de estridulas campainhas, não viam chegar ninguem.
—Então para que servem as diligencias? perguntava um.{24}
—Servem para alimentar a tradição de viajar, respondia o outro.
O dono do Elephante azul dizia do lado:
—Em setembro vêem cheias de gente. Ás vezes trazem dezeseis pessoas em oito logares.
—Mas não seria melhor que essas pessoas viessem a pouco e pouco, cada uma em seu logar?
—Não, senhor. Porque então, replicava o dono do Elephante azul, por muita gente que viesse, não se sentiria tanto.
Os dois amigos tinham já esgotado todo o reportorio das suas opiniões.
—O que pensas tu, caro amigo, a respeito do caso das Trinas?
—Já to disse hontem.
—E a respeito da crise monetaria?
—Já t'o disse ante hontem.
—É verdade! Por signal que te repetiste. Tambem já m'o tinhas dito no dia em que eu cheguei...
O que mais os aborrecia era não poderem encontrar um terceiro parceiro para o voltarete.
Haviam já perguntado ao dono do Elephante azul:
—Sabe o voltarete?
—Não, sr. Sei fazer champagne, sei fazer cognac, sei fabricar cerveja, só não sei jogar o voltarete!
—Porque não trata de o aprender?{25}
—Não vale a pena: não é coisa que se venda.
No dia 8 de agosto, por volta do meio dia, qual não foi a surpreza dos dois amigos quando, encostados á porta de Elephante azul, viram chegar uma carruagem com um passageiro dentro.
—Eureka! gritou um.
—Apaga a lanterna de Diogenes! exclamou o outro.
O passageiro apeiou-se do trem e, sem entrar na loja do Elephante azul, seguiu para o interior da villa.
—Vae installar-se, disse um.
—Vae, e não tarda ahi, á procura dos unicos dois homens que n'este momento lhe podem ser agradaveis.
O dono do Elephante azul, tendo vindo á porta examinar o recem-chegado, observou:
—Não é cara conhecida. Nunca veiu cá.
—Podera! Se já conhecesse a praia, não vinha senão em setembro.
Ficaram os dois conversando, mas o homem não appareceu.
—Onde se metteria elle?
—Naturalmente, disse o dono do Elephante azul, anda procurando casa.
—Se fosse só isso, já a teria encontrado. É mais provavel que ande procurando gente...
Cerca das trez horas da tarde, tornou a apparecer a carruagem, mas vasia.
O caso ia tendo as proporções de um mysterio.{26}
—O homem suicidou-se!
—Qual! Anda perdido nas ruas, e não encontra ninguem para lhe ensinar o caminho.
Finalmente, o homem appareceu.
Entrou no Elephante azul para comprar cigarros.
Os dois banhistas crivaram-n'o logo de perguntas.
—V. ex.ª vem para cá?
—Não, sr.
Os dois olharam-se com dolorosa surpreza.
—Então não vem para cá? insistiu não sei qual d'elles.
—Vim justamente fazer o contrario.
—Mas... não percebo!
—Vim dizer que não vinha para cá.
—Nem mesmo em setembro?
—Nem mesmo... nunca. Tenho ahi um parente que me esperava, e vim dizer-lhe que não contasse commigo.
—Mas isto é muito bonito... em setembro!
—Será. Eu tenho informações que me levam a pensar o contrario.
—Pois que! Nem sequer tenta fazer uma experiencia!
—Não, sr. Um amigo meu veiu uma vez em agosto, e esperou até setembro que viesse gente. Mas em setembro achou-se ainda mais só, porque morreu de bexigas o unico banhista que lhe podia fazer companhia.{27}
—N'esse caso vae-se embora?
—Vou já, respondeu o sujeito pagando os cigarros.
Já elle ia a dirigir-se para o trem, quando um dos dois se lembrou de gritar:
—Ó sr. Mendonça!
O sujeito não fez caso.
—Ó sr. Andrade!
O sujeito dispunha-se a entrar no trem.
—Ó sr. Mattos!
O sujeito voltou-se rapidamente.
—Ah! já sei que se chama Mattos!... tem a bondade de nos dar uma palavra?
O sujeito, que já tinha um pé no estribo, veiu ao encontro dos dois.
—Sabe o sr. Mattos, disse um, o que nós estamos resolvidos a fazer?
O meu amigo olhava para o companheiro de desgraça sem poder adivinhar a sua intenção.
—Não sei, mas v ex.as terão a bondade de dizer.
—Pois bem, sr. Mattos! Vae sabel-o
E agarrou-o pelas lapellas do frak.
—O sr. está preso.
—Preso?! Porque?!
Então o meu amigo sentiu-se illuminado. Adivinhou tudo.
E deitando as mãos aos hombros do homem, gritou por sua vez:
—Preso... sim, sr.!{28}
—Mas que crime fiz eu?
—Não se trata de um crime, nem precisamente de uma prisão.
—Mas, se não se trata de uma prisão, porque é que me prendem!?
—Fica apenas detido. Segundo o codigo, é differente.
—Sómente detido. O codigo estabelece a differença.
—Preso ou detido! disse o homem. Mas porque? Para que?
—Detido ou preso... Preso para banhista.
—Mas eu não quero tomar banhos!
—Pois não tome, mas fica preso para banhista.
—Preso não, observou o meu amigo. É bom não confundir as palavras. O sr. Mattos fica apenas detido até setembro... emquanto não vem mais gente.
—Mas que proveito tiram d'ahi os srs.?... perguntou o Mattos.
—O proveito de sermos trez.
—Trez para tudo: trez para o cavaco, trez para o voltarete, trez para o banho, trez para o Elephante azul.
—Mas eu não sei o voltarete!
—Pouco importa. O que se quer é que o jogue.
—Para jogal-o é preciso aprendel-o.
—Isso não é inteiramente verdade... Mas,{29} dado o caso que seja verdade, até setembro tem o sr. Mattos muito tempo para aprender a jogar o voltarete.
O meu amigo termina a carta dizendo:
—«Cá temos o homem preso, e bem vigiado. Á noite fechamos-lhe a porta, e levamos a chave para casa. Uma noite, para lhe suavisarmos o captiveiro, resolvemos perder ao voltarete. E assim é que conseguimos ser trez! Mas, para vêr se vem mais gente, mandamos dizer nos jornaes do Porto que a praia está muito animada, e que em setembro serão poucas as casas para os banhistas que se esperam. Vê lá se dizes isso tambem nos jornaes de Lisboa...»{30}