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A comedia das praias

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De manhã cedo, na praia, todos parecem ter ainda o olhar vidrado, estupido, de quem acaba de accordar.

Olham uns para os outros com certa surpreza spasmodica, achando-se feios.

Defeitos que durante o dia chegam a passar despercebidos, avultam: foi n'uma praia que eu descobri que certa dama, aliás formosa, tinha uma orelha maior que a outra... de manhã!

Dar-se-ia o caso que, depois de feita a toilette, a orelha mais pequena crescesse ou a maior diminuisse?

Certamente que não. Mas diante do espelho, com vagar, um geito dado ao cabello, artisticamente, encobria o defeito da orelha. O ferro de frisar salvava a situação: a madeixa, que elle fazia descer, salvava a orelha, que a natureza fizera subir.{12}

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Em questões de toilette, o meio termo não é admissivel: ou tudo ou nada. Ou a toilette esplendida ou... a estatua. Eva, depois do peccado original, faz-nos rir vestida de folhas de figueira. Ora o fato de banho é o meio termo: a folha de figueira. Para vestir... é pouco; para despir... é muito.

Ha porém uma coisa peior do que vestir um fato de banho: é querer sophismal-o.

Certas damas, quando chegam á praia, conseguem dar na vista pela perfeição plastica das suas curvas. Ao entrar na agua, vestidas para o banho, perdem as curvas. Não perderam; deixaram-n'as na barraca. Este sophisma deploravel revela a carencia de um bom argumento. Argumento ou augmento. O eufemismo é o mesmo. Mas só a praia consegue revelar um segredo, de que, quando muito, apenas se suspeitava...

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Andam pessoas a enganar-nos durante onze mezes em cada anno.

Suppomol-as polidas, eruditas, francas, estimaveis.

Em Lisboa, quando as encontravamos na rua,{13} trocavam comnosco um shake-hand, tinham um dito amavel ou sentencioso, pareciam-nos cordealmente expansivas.

Nas praias, á sombra de um chalet ou de uma arvore, durante duas horas de conversação, desmascaram-se. Dia a dia, podemos fazer o inventario das suas idéas, dos seus sentimentos, das suas opiniões. E, ao cabo de um mez de estação balnear, averiguamos que:

Fulano, que vae á missa em Lisboa, não crê em Deus.

Sicrano, que tinha fóros de erudito, apenas lê a Revista dos dois mundos.

Beltrano, que parecia fallar-nos com o coração nas mãos, não fazia outra coisa senão metter-nos os pés nas algibeiras.

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Em Lisboa, accusa-se o Gremio e a Havaneza de terem má lingua.

Pobre Havaneza! pobre Gremio! pagam as favas injustamente.

A maledicencia habitual d'esses dois pontos, de reunião tem apenas um caracter pessoal. Eu explico. Ordinariamente, falla-se só do sujeito que passou ou do sujeito que saiu.

A maledicencia das praias estende-se á geração, chega ao pae, passa ao avô, alcança ás vezes o bisavó. É retrospectiva. Por exemplo:{14}

—Quem é aquelle sujeito que vem acolá?

—Pois não conhece! É fulano.

—Não conheço.

—Ha de lembrar-se com certeza do caso da herança do Gutierres. Foi muito fallado.

—Lembro-me, sim.

—Pois este é que falsificou o testamento.

—Este! E anda vestido de branco,—como as virgens!

—É de familia...

—O fato branco?

—Não. A alma negra. O pae foi negreiro.

—Já vem mais de traz, isso.

—Por quê?

—O avô enriqueceu no tempo dos francezes, dando assalto ás casas dos visinhos que tinham fugido.

O sujeito aproxima-se, dois ou tres levantam-se para abraçal-o; mas a esse tempo, que foi pouco, já lhe está desenterrada a familia até ao avô.

O vagar faz colhéres, diz o povo. Nas praias, o vagar faz exhumações tremendas. Não ha bisavô que esteja seguro na sepultura.

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Na comedia das praias, as moscas teem um papel importante. Em Lisboa, para se dar importancia a uma mosca, é preciso que ella haja{15} sido audaciosa até o ponto de escolher para suicidar-se o nosso prato de sopa. De resto, em Lisboa, as moscas morrem, mas, nas praias, as moscas matam. Teem dentes; são carnivoras. Mordem, perseguem, endoidecem a gente. Desforram-se da ociosidade de um anno inteiro, esperam famintas pelos banhistas, e, depois de os morder, zumbem e zombam, parecem rir de troça umas com as outras.

Só nas praias é que o europeu consegue ser victima das moscas. E fallarmos nós com horror das moscas de Africa! As moscas saloias são muito peiores!

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Em Lisboa, os criados passam ás vezes um anno inteiro sem partir loiça.

Mas, chegando ás praias, os seus dedos parecem debeis como vimes. Quebram hoje um copo, ámanhã um prato, escacam, em quinze dias, metade da loiça do senhorio.

Encontrei uma vez, n'uma praia, certa dama, que andava afflictissima de loja em loja, procurando alguma coisa, que lhe dava grande cuidado.

—Imagine, disse-me ella, que o meu criado quebrou hontem uma chavena!

—É vulgar.{16}

—Quebrar é vulgar; mas a chavena é que o não era.

—Como assim?!

—Quando eu vim, a senhoria disse-me: «Peço a v. ex.ª todo o cuidado com esta chavena, que era a chavena do papá.»

—Como o sabre da Grã-duqueza!

—Isso. Ninguem se servia d'aquella chavena gloriosa, nenhum de nós tinha ousado mandal-a tirar do guarda-loiça. Mas o meu criado ousou limpal-a hoje, e quebrou-a. Aqui ando eu agora afflicta á procura de uma chavena, que possa continuar a ser, na tradição da casa, a chavena do papá!

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Nada ha que me dê tanto a impressão do communismo como um club de praia.

É de todos, sem pertencer a ninguem.

Cada um que vem chegando pensa que o club é seu. A primeira cousa de que se apossa é... o piano. O piano passa a ser, não um instrumento de musica, mas um escravo. Submisso, paciente, resignado, obedece como um negro, cujos dentes são muito brancos... Açoutam-n'o com as mãos, e não protesta; dão-lhe pontapés no pedal, e não se desconjunta. Familias inteiras vão affirmar no teclado os seus direitos de socio. A mãe toca a Norma, que é uma opera{17} do seu tempo, a filha perpetra a Carmen; o filho executa os Fados—com a mão direita.

O pae agarra-se aos jornaes e parece resolvido a não deixal-os lêr por mais ninguem.

As primeiras senhoras que á noite chegam ao club parecem tomar gosto á grandeza da sala...

O seu desejo seria talvez que as outras, mais retardatarias, ficassem á porta a contemplal-as... de longe.

Mas, como isso não acontece, as que já estão de posse da sala, preparam-se para o ataque, assestam as suas baterias.

É o lorgnon...

É o sorriso sardonico...

É o ditinho picante...

Tudo isto entra em fogo ao mesmo tempo.

Depois, as que acabam de chegar, fazem causa commum com as que já tinham chegado e, preparadas para o combate, ficam á espera das que hão de chegar ainda...

*

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Ha sempre nas praias uma menina que recita.

De pé, quasi sempre vestida de branco, recita versos azues. Quero dizer, versos ethereamente{18} romanticos. Em quanto ella recita, a mãe põe os olhos no chão. As outras senhoras põem o leque diante da cara.

Algumas vezes, a menina engana-se, falta-lhe a memoria. Nem para traz nem para deante.

Então lança mão de um recurso supremo: desmaia.

—Um medico! Não está ahi um medico?

N'uma praia estão sempre quatro medicos, pelo menos.

Vem um.

—Isto não é nada, passa já.

Mas o irmão mais novo da menina desmaiada foi, a correr, buscar a casa o Almanach das Senhoras.

E, reanimada por este auxilio, a menina continua a recitação, ficando o irmão mais novo mettido atraz do piano,—servindo de ponto á mana.

*

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Tambem ha sempre uma menina que tem album.

Pede, a torto e a direito, uns versos, um desenho, uma melodia.

Póde imaginar-se o valor do album dizendo que são os poetas que desenham, são os pintores que fazem versos, são os que sabem fazer{19} desenhos ou versos que escrevem a melodia.

Em conclusão: ninguem quer perder n'um album o melhor do seu talento...{20}

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