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I O Desgraça

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Entre os typos populares, que pouco a pouco vão rolando a sepulturas ignoradas, deixando após si o rasto de uma vida sobremodo accidentada de peripecias quasi sempre sombrias—rasto que só um ou outro escriptor se compraz em prucurar desde a cadeia ao degredo, do albergue ao cemiterio—avulta na tradição portuense um homem que por longo tempo ahi foi o alvo das assuadas do rapazio e dos chascos dos frequentadores de botequim. Uns chamavam-lhe o José das Desgraças, outros simplesmente o Desgraça.

Parece dever inferir-se de tão lutuosa alcunha que a população da cidade lhe conhecia a biographia exuberante de lastimosos lances. Tal não ha. Quando elle passava coxeando arrimado ao seu bordão, sobraçada a guitarra inseparavel, de velho chapéo alto amassado, sobrecasaca abotoada, pendente a medalha de prata da guerra peninsular, annel d'ouro na mão esquerda, na bocca o enorme cigarro que elle proprio manipulava com pontas de charuto, seguido do cão fiel, que se chamava Junot, por motivos que mais tarde desvelaremos, o gentio das ruas ou sorria alvarmente da pittoresca pobresa do excentrico mendigo, ou rompia em apostrophes de Ó Desgraça! Ó Desgraça! que elle parecia não ouvir ou despresar em sua imperturbavel serenidade.{8}

E a populaça, sem sequer suspeitar da tenebrosa origem do cognomento, quedava-se a ouvil-o, calmadas as arruaças com que era saudado, quando elle, sentado á porta de um café, especialmente o do Jardim de S. Lazaro, começava a tanger melancolicamente a sua guitarra, na qual executava operas completas, queimando o seu enorme rolo de tabaco e contemplando, de cabeça inclinada, o cão que parecia escutal-o attentamente...

Depois, quando a mão caía extenuada sobre as cordas silenciosas, affigurava-se, tão alheado ficava, que estava rememorando maguas intimas, segredos da sua vida obscura, sem que parecesse dar tento das esmolas que lhe atiravam ao regaço os que entravam ou saíam a porta do botequim.

Ás vezes, como se não houvesse conseguido linimentar com a musica as recordações dolorosas acordadas no imo peito, voltava a tanger na guitarra uns dulcissimos arpejos que finalmente lhe serenavam a alma tempestuosamente alanceada, chorando por elle, que não tinha lagrimas.

Restituido á realidade da sua resignada nobresa, erguia-se firmado no bordão, sobraçava a guitarra, e continuava a peregrinação, vagueando pelas ruas da cidade, sem todavia dirigir-se aos transeuntes e recebendo impassivel os óbolos que jámais solicitava. E o cão, o leal companheiro de infortunio, seguia egualmente resignado seu dono, e quasi sempre indifferente ás provocações do rapazio que se divertia em apedrejal-o e açulal-o.

Frequentemente intervinha o Desgraça ameaçando com o bordão os perseguidores do seu dedicado companheiro; mas como o inquieto rapazio conhecesse que a velhice lhe desnervava o braço, entrava de levantar celeuma atroadora, em que, ainda assim, quasi sempre se distinguiam vozes de «Morra o Desgraça e o Junot! Vende o annel e não andes a pedir!»

Estranho homem devia de ser esse, que parecia guardar grande mysterio, e tinha por unico amigo, entre uma população inteira, que o apupava, o cão fiel, e por consolação unica a sua guitarra, e por unica protecção a piedade dos seus conterraneos, que elle não implorava.

O povo não suspeitava sequer que a biographia{9} d'aquelle homem justificasse o appellido. Quando o Desgraça fazia chorar a guitarra entre os dedos, e o cão denunciava comprehender a guitarra, como que ligeiramente se commovia a turba acatasolada, mas d'ahi a pouco, quando estrondeavam os apupos, era o cão o unico espectador que mostrava lêr na physionomia do velho o mysterio de uma vida tormentosa.

Ria a gentalha torpe d'aquella intima convivencia de homem e cão. E todavia não saía d'entre a arraia miuda o mais desgraçado dos populares a dizer ao pensativo guitarrista: «O teu cão sente e não fala; eu falarei por elle. Soffres decerto muito e precisas consolação. Eu sou tambem muito infeliz, muito mais do que tu, porque não tenho guitarra nem cão. Deixa-me pois compartir do teu cão e da tua guitarra, que eu te darei o que tu não tens, dois ouvidos que te escutem, uma voz que te responda.»

Não. A desgraça é tão infeliz, que se ri da desgraça; é ella que se desauctorisa a si mesma. Só lhe falavam para chasqueal-o, para lhe cuspir na face a zombaria que elle, absorto no seu continuo cogitar, deixava resvalar aos pés.

E todavia aquelle homem era um grande desgraçado, que só tinha no mundo a sua guitarra, o seu cão, e as suas recordações. O annel, que trazia na mão esquerda, podia matar-lhe talvez um dia de fome, mas não haveria miseria que lh'o arrancasse do dedo, porque as suas recordações estavam n'aquelle annel.{10}

O Annel Mysterioso, Scenas da Guerra Peninsular

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