Читать книгу O Annel Mysterioso, Scenas da Guerra Peninsular - Alberto Pimentel - Страница 7
III Pomba que presente sangue
ОглавлениеA morgada das Chãs passou agitadamente essa noite, e do inquieto cogitar na solidão do seu quarto resultou levantar-se decidida a partir n'esse dia com a neta.
O padre capellão negociou as cem moedas... comsigo mesmo, dizendo que as obtivera d'um proprietario mediante o desconto dos juros d'um semestre adiantado.
Partiu a morgada, de manhã, para o Porto, acompanhada por Augusta, depois de haver entregado as chaves da sua casa ao capellão, que tinha nos labios um sorriso de alvar alegria. Tambem a morgada estava radiosa do duplo jubilo de poder respirar desopprimida da sombra d'aquelle homem, e de ir collocar sob o amparo paternal a neta querida do seu coração. Nas faces d'Augusta havia egualmente um reflexo d'intimo contentamento, não só porque a aproximavam dos paes, mas porque a levavam para os braços do irmão, a quem ternamente estremecia, e com o qual permutava cartas diarias perfumadas das mais suaves fragrancias do amor de familia.
A menina contava quinze annos, como já sabemos; o irmão, que se chamava José Maria, tinha dezeseis. Estas duas creanças eram filhas do capitão do exercito Graça Strech, que em 1809 morava á rua nova do Almada[2]. O appellido Strech inculca á primeira vista procedencia estrangeira, e realmente é d'origem germanica. O pae do capitão Graça, allemão de nascimento, fôra capitão de navios, e tivera por ultimo um modesto estabelecimento commercial em Cima do Muro. Os dois filhos de Graça Strech nasceram porem á rua Direita, na casa que divide a rua de Santo Ildefonso da rua de Santo André, e onde elle morára durante os annos de 1793 e 1794.
Augusta era tudo o que se póde imaginar de graciosamente feminil na época em que nos é dado conhecel-a. O pintor que quizesse retratal-a facilmente lançaria á tela os cabellos loiros, naturalmente annelados; os olhos d'um azul suavissimo como os mais formosos horizontes; as faces d'uma brancura levemente rosada; a estatura mignonne,—tudo quanto póde haver de mais correcto e dôce em figura de mulher. Mas a difficuldade estaria seguramente em reproduzir no retrato a meiga morbidez dos lirios que se abrem ao desabrochar da manhã. E n'ella brotava a mulher das graças da creança, como um lirio á luz da aurora.
José Maria era uma organisação inteiramente opposta á de sua irmã. Dir-se-ia que ella havia nascido para rosa, e elle para roble; ella para succumbir, e elle para luctar. Desenhavam-se no seu corpo de dezeseis annos os contornos athleticos d'um spartano. Olhos vivos, e pretos como os cabellos; talhe esbelto, maneiras sacudidas e ageis. Pois que elle era a força e Augusta a brandura, affigurava-se providencial essa disparidade de constituições, e até de genios, para que a flôr pudesse ser protegida pela sombra do roble.
Quando a morgada das Chãs chegou ao Porto, entrou-se de profundo arrependimento por ter feito vingar a sua resolução. Em casa da familia Strech era grande a tristeza. O pae e o irmão[3] estavam no exercito, e portanto a tristeza provinha da anciedade com que o azar dos combates alvoroça sempre as familias dos militares.
—Eu trouxe Augusta, dizia a morgada, chorando, á filha, para que, se houvesse de correr perigos, não ficasse o meu coração atormentado de medonha responsabilidade; porque mais facilmente saberia aqui noticias do pae e do irmão do que nas Chãs; e porque{21} finalmente o Porto offerecia maiores garantias e segurança do que qualquer outra terra.
De feito, a cidade do Porto era julgada inexpugnavel, e a ella se acolhera grande parte da população do Minho, á medida que os acontecimentos da guerra se iam desdobrando.
Tratemos de saber quaes foram.
Os francezes, impossibilitados de seguir o caminho do litoral, que lhes tinha sido ordenado, marcharam para Traz-os-Montes no proposito de entrar em Portugal pelo valle do Tamega. No dia 8 de março estavam as avançadas francezas á vista de Chaves, que no dia 10 foi sitiada, rendendo-se no dia 12. O marechal Soult, vendo-se impossibilitado de guardar os prisioneiros, despediu as milicias e as ordenanças, que estavam dentro da praça, depois de lhes exigir juramento de que nunca mais pegariam em armas. As praças da tropa de linha convidou-as a bandearem-se no seu exercito; ellas unanimemente aceitaram com o proposito de desertar, como aconteceu.
O sonho de Soult era tomar o Porto, e para o realisar tinha nada menos que dois caminhos: o que vae a Villa Real e o que vae a Braga. O marechal preferiu o segundo, por ser o menos accidentado. Chegado que fosse a Braga, só encontraria no caminho do Porto a difficuldade da passagem do Ave em Santo Thyrso. Seguiu, pois, o exercito francez para as alturas de Barroso no dia 14. O general Bernardim Freire d'Andrade, tendo noticia de que os piquetes francezes escaramuçavam na Portella de Avado e em Villarelho da Raia com as avançadas do general Silveira, commandadas pelo coronel Magalhães Pizarro, tomou desde logo todas as medidas possiveis para salvar o Porto, repartindo as suas pequenas forças por Salamonde, Ruivães, Salto e Ponte do Cavez, guarnecendo a raia, e mandando occupar Amarante o brigadeiro Victoria, a cujas ordens militavam o capitão Graça Strech e seu filho.
No dia 15 foi Freire de Andrade insultado pela população de S. Gens, quando voltava de visitar os postos entre Braga e Ruivães. O fim a que avisava o general portuguez era retardar a marcha do inimigo sobre Braga, quanto lhe fosse possivel, para dar tempo a que d'aquella cidade saíssem para a defeza do Porto as munições e o laboratorio. Depois de haver{22} expedido ordem ao brigadeiro Victoria para se internar no Porto, recolheu-se Freire d'Andrade no dia 17 a Braga, encontrando por todo o caminho vestigios da grandissima exaltação popular, que se levantára mal que soou a noticia da aproximação dos francezes. Dado o signal de rebate, o povo do Minho saíu em turbamulta a esperar o inimigo em Carvalho d'Éste, e outros logares convisinhos, armado de chuços, fouces roçadouras, e mais instrumentos proprios do seu uso.
Em Carvalho d'Éste houve brodio geral, constante de pão e vinho, a expensas d'alguns particulares patriotas, o que não obstou a que um dos membros da sordida junta de segurança apresentasse o rol das despezas. Procedendo-se a uma collecta geral, que foi voluntariamente paga, ficou o povo duplamente esfomeado, porque a contribuição parece que só aproveitou á junta de segurança.
Avisinharam-se, finalmente, os francezes da cidade de Braga, e conhecendo Freire d'Andrade, no dia 17 em que ali entrou, que era impossivel qualquer defeza, mandou retirar pela estrada do Porto, resolvido a embargar denodadamente o passo ao inimigo n'essa marcha.
Todavia o povo, suppondo-o traidor por não se haver empenhado em acção geral com os invasores, saíu-lhe ao encontro em Carapoa, e já ahi seria morto se lhe não valesse Antonio Berardo da Silva, commandante de uma brigada de ordenanças.
Removido o inesperado perigo, seguiu o general seu caminho, mas encontrando-o as ordenanças de Tabosa, prenderam-n'o e conduziram-n'o a Braga, onde, chegado que foi é prisão do Aljube, a populaça desenfreada o arremessou pelas escadas abaixo, acabando de matal-o ás chuçadas.
Subsequentemente foram tambem immolados á sanha popular, em Braga, o quartel-mestre general de Bernardim Freire, Custodio Gomes Villas Boas, o corregedor da cidade, Bernardo José de Passos, e outros; e em Santo Thyrso, D. João Correa de Sá e Manoel Ferreira Sarmento.
No mesmo dia da morte do general Bernardim Freire de Andrade tomavam os francezes posição em frente de Carvalho d'Éste, sendo repellidos no primeiro ataque.{23}
O barão d'Eben commandava as nossas tropas, com as quaes se havia bandeado a gente das aldeias convisinhas. Entre a populaça contavam-se os criados da quinta das Chãs que desampararam o padre capellão, sempre prompto a castigal-os, e odiado por elles.
Pelas onze horas da noite chegaram, para reforçar o posto, a legião de Salamonde e duas companhias do regimento de Vianna. Soldados e povo estavam famelicos. Durante a noite um magote de populares, engrossado pelos criados da morgada, bateu ao portão da quinta. Ao primeiro chamamento não respondeu ninguem; ao segundo assomou a uma das janellas a cabeça silicosa do padre capellão.
—Pão e vinho! gritou a turba.
—Não está cá a senhora morgada, tartamudeou o reverendo.
—É o mesmo; abra a porta, contestou o gentio.
Como porém a impaciencia da turba fosse muita, a populaça metteu a porta dentro a tempo que o padre atravessava o pateo de lampeão em punho.
Um dos populares vibrou-lhe uma chuçada que o prostrou, e logo outro, que era criado da casa, acrescentou:—Vamos á burra do padreca; no que fôr da senhora morgada não se toca.
No dia seguinte atacou o inimigo novamente Carvalho d'Éste, e no dia 20 voltou ao ataque, apparecendo em grande força.
Parece que a Providencia havia aconselhado a morgada das Chãs a fugir de um ponto onde a lucta foi mais renhida, porque, posto que os populares a respeitassem, o inimigo caiu no dia 20 em forte columna sobre Carvalho d'Éste, empenhando-se ataque geral, e sendo desesperada a posição dos nossos, que fugiram em grande confusão, acossados muito de perto pela cavallaria franceza.
No pateo da quinta das Chãs tinham os nossos quinze barris de polvora que, não podendo ser salvos, por estar muito proximo o inimigo, foram incendiados por ordem do barão d'Eben, perecendo oito homens na execução d'esse serviço.[4] As chammas, enleiando-se pelos alpendres encostados ao edificio, acabaram por envolvel-o, e, horas depois dos francezes{24} entrarem em Braga, e a tempo que o povo enfuriado matava os presos encarcerados no Aljube, ardia, chammejando como fornalha enorme, o solar das Chãs, a duas leguas de distancia da cidade invadida.
A noticia da tomada de Braga só se soube no Porto no dia 22, quer dizer, quarenta e oito horas depois.
Havia dias que o brigadeiro Victoria se tinha internado n'esta ultima cidade com as suas forças, por ordem do agora fallecido Bernardim Freire de Andrade. Como já sabemos, o capitão Graça Strech e seu filho militavam ás ordens deste brigadeiro. Portanto, teve Augusta occasião de abraçar o irmão e o pae, que procuraram serenar com palavras de carinho e conforto os receios do angustiado coração da menina.
A morgada, quando soube que os francezes tinham rompido por Carvalho d'Éste sobre Braga, apesar de ignorar os pormenores da lucta, a morte do capellão e o incendio do solar, agradeceu ao anjo da guarda a inspiração da resolução tomada.
N'esse mesmo dia foi o Porto theatro de lastimosas scenas.
Conhecida a derrota de Braga, dirigiu-se a populaça á cadeia da Relação, reclamando a entrega dos presos da Inconfidencia, e arrancando para fóra dos muros do carcere o brigadeiro Luiz d'Oliveira e mais quatorze infelizes, que foram arrastados pelas ruas até Villa Nova de Gaya, d'onde a gentalha ensanguentada os precipitou, do Caes da Bica, á corrente do Douro, por haverem sido condemnados á morte pelo tribunal popular constituido na Porta do Olival.
Só o bispo, D. Antonio José de Castro, poderia, por muito respeitado que era, conter a furia dos cannibaes das ruas, mas, provavelmente para não incorrer no desagrado da canalha contrariando-lhe os brutaes instinctos, deixou-a espostejar á vontade os presos da Inconfiencia.
Sua excellencia reverendissima é que se não arriscou a ser conceituado de jacobino.
Quando a turba descia com os presos a calçada dos Clerigos, ouvia-se na rua Nova do Almada a celeuma das victimas e dos algozes.
Augusta, tremula de horror, acolheu-se nos bracos do irmão, que obtivera licença para sair por alguns{25} momentos do seu posto na linha de defesa, e poz as mãos supplicando a Deus que a tirasse do mundo onde os homens se estavam despedaçando como feras no sertão.
Só as caricias de José Maria lograram aquietal-a, quando a vozeria soava mais longe, porque já a multidão havia enveredado pela rua das Flores, caminho da Ribeira.
A mãe e a avó pareciam agonisar abraçadas em estreito amplexo.
O marechal Soult, senhor de Braga, podia recuperar as suas communicações com Tuy ou marchar sobre o Porto, mas, como era natural, attenta a importancia d'esta cidade e a fama das suas riquezas, optou pelo segundo dos caminhos a tomar, porque melhor realisaria assim o seu sonho de conquistador.
Ouçamos o sr. Soriano historiando o roteiro que o marechal Soult seguiu de Braga ao Porto: «Deixando portanto em Braga a divisão do general Heudelet, para lhe defender a rectaguarda contra as incursões do general portuguez, José Antonio Botelho de Sousa e Vasconcellos, que commandava as forças da divisão da raia, entre os rios Lima e Minho, dividiu o seu exercito em trez columnas, a primeira marchou pela estrada de Guimarães a S. Justo, com ordem de forçar a passagem do Ave de Cima e occupar o campo do lado de Pombeiro; a segunda, commandada pelo proprio Soult em pessoa, marchou logo direita á Barca da Trofa; e a terceira, deixando Barcellos, para onde de Braga tinha sido mandada, tomou a estrada da ponte do Ave. A passagem d'este rio foi fortemente disputada pelos portuguezes, sendo a columna da esquerda obrigada a bater-se renhidamente em Guimarães, Pombeiro, Negrellos, e sobretudo n'este ultimo ponto, onde morreu o bravo general Jardon, cuja falta muito sentida foi pela totalidade do exercito inimigo. A marcha da columna do centro foi interrompida na Barca da Trofa, por se ter n'ella cortado a ponte do Ave; mas Soult, vendo o grande cumulo das nossas forças ali, forçou a passagem em S. Justo, ganhando a margem opposta. Desde então facil lhe foi a columna da direita fazer o mesmo, ficando assim vencida a passagem do Ave em todos os pontos, e portanto aberto inteiramente o caminho em direitura para a cidade do Porto, a{26} cujos entrincheiramentos o exercito francez chegou no dia 27 de março.»
Na tarde d'esse mesmo dia a guarda avançada do inimigo, acampado em S. Mamede de Infesta, adeantou-se até um quarto de legua das baterias do Porto.
Ouviu-se na cidade o fogo indicativo da aproximação dos francezes. Para logo se espalhou o terror, não obstante terem sido organisados alguns elementos de resistencia.
As familias que tinham os seus empenhados nas linhas de defeza, afflictivamente receiavam os perigos de uma grande catastrophe, pois que ainda quando a lucta fosse coroada pela victoria, havia de interpôr-se aos primeiros combates e aos louros do triumpho um mar de sangue portuguez.
Que dolorosa commoção não seria a de Augusta, que torturado soffrer nas vascas da anciedade não seria o seu, ao ouvir estrondear á distancia o fogo que os invasores assestavam contra as linhas de defeza, onde combatiam o pae e o irmão! Aquellas trez mulheres, a avó, a mãe e a filha, ajoelhadas deante de uma imagem de Nossa Senhora, cerrando convulsamente os olhos a cada detonação longinqua, dir-se-iam outros tantos authómatos, empedrados pelo terror, se não fôra o ciciar dos labios e o abrir e fechar nervoso das palpebras.
Sabem como baloiça a haste do lirio, quando o sopro calido da tempestade proxima passa esfuziando por entre a folhagem das plantas que lhe offereciam resguardo?
Tal era Augusta, lirio vasado em moldes de mulher, entre os dois corações amigos, o da avó e o da mãe, que já não podiam garantir-lhe protecção.
Conhecera o marechal Soult que era má a fortificação da cidade e má a guarnição, e expediu no dia 28 um emissario propondo capitulação. O emissario, para se não arriscar á morte, serviu-se de um ardil de guerra e disse-se incumbido de negociar a entrega do exercito francez mediante condições favoraveis.
Entrou o bispo em negociação, cuja má fé, por parte dos invasores, estava manifesta na circumstancia de continuar a ser intenso o ataque durante todo o dia.
N'essa tarde ouviu-se subitamente grande celeuma{27} nas ruas. Recresceu a anciedade no presupposto de serem as avançadas francezas.
A morgada das Chãs teve a coragem precisa para se aproximar da vidraça, e viu um militar francez rodeado de grande turba de populares que gritavam enfuriadamente: «Morra o Maneta! Morra!»
Adivinhou-lhe o coração que era um emissario, que provavelmente ia á bateria de S. Francisco a parlamentar com o bispo. Quasi defronte das janellas, como augmentassem as vozes de: Morra Loison, morra o Maneta, o militar francez levantou ambos os braços para desfazer o equivoco. Não obstante, a populaça arremettia contra o cavallo em que elle vinha montado, e a celeuma rugia temerosamente.
A morgada correu a abraçar a filha e a neta, ajoelharam orando fervorosamente, e longo tempo supplicaram que um raio da Providencia illuminasse o coração do povo, para que á desgraça da invasão não sobreviesse a furia da represalia.
O emissario francez não era effectivamente o general Loison, mas o general Foy; com blandicias e ameaças, escriptas por Soult, vinha propôr a rendição, que foi recusada.
Com este acontecimento fechou a tarde do dia 28 tempestuosa e triste, como se o céo compartisse do luto da terra. Ás detonações do trovão respondiam as detonações da artilharia.{28}