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II Na quinta das Chãs

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Na noite de 17 de fevereiro de 1809, a morgada viuva da quinta das Chãs conferenciava gravemente com o seu capellão n'uma das salas terreas do solar, a duas leguas de Braga, sobranceiro á aldeia de Carvalho d'Éste. A morgada, senhora de uns sessenta annos, deixava entrever nas sombras da physionomia a tempestade que lhe agitava a alma; o capellão, passeando de um para outro lado, enviesava á morgada olhares investigadores, que para logo revelariam perfidia e cupidez.

—É preciso partir, padre capellão, dizia afflictivamente a morgada. Se os francezes logram atravessar o rio Minho, estarão brevemente em Braga. A mim pouco me importaria a vida se não fosse Augusta, que a esta hora está dormindo na serenidade da sua innocencia. Tomára que chegasse o Teixeira para contar o que se passou. Diga o que disser, padre capellão, é preciso pensar maduramente. Meu genro fez-me depositária de um thesouro, que eu hoje quero salvar de todos os perigos, custe o que custar, porque se me affigura que já estimo mais Augusta do que aos seus proprios paes, e a seu irmão. Recebi minha neta aos 5 annos, porque á luz da consciencia conheci que melhor poderia eu sustentar uma criança, apesar das hypothecas da minha casa, do que um pobre capitão do exercito poderia sustentar dois filhos. O padre capellão administrava as propriedades. Que me restava a mim para não morrer de aborrecimento durante o dia? Augusta, a criança que me tinha sido confiada. Era ella a minha unica distracção, o meu unico amor; ha dez annos que este tecto lhe abriga a innocencia, e ha dez annos que eu abençôo a resolução de a chamar para amparo da minha velhice. Olhe que os annos tornam a gente egoista,{11} padre capellão; a abnegação é só apanagio da mocidade. Não pense que me bastava a unica distracção do voltarete; é sempre a mesma cousa! Quando eu peço licença o padre capellão prefere, e o Teixeira dá-lhe codilho. Tambem é boa embirração a sua de preferir sem jogo. Nem que tivesse vontade de fazer mal... E o dia, estes longos dias da provincia, que não teem fim! Era morrer de fastio. Augusta trouxe-me cuidados e variedade. A principio com as suas exigencias de criança; agora com as suas ingenuidades de donzella. Vi, anno a anno, desabotoar a flôr. A flôr, disse bem, porque Augusta é realmente uma rosa... de quinze annos. E é que eu a estimo como seu jardineiro que sou. Instantemente lhe pedi que se deitasse para que não ouvisse dizer ao Teixeira as proezas que os senhores francezes teem feito lá para esse rio Minho. Mas, padre capellão, o que é certo é que eu já haveria partido para o Porto, se n'esta occasião estivesse prevenida com recursos. O padre capellão bem sabe...

—Sei, sei, senhora morgada, que a occasião é má para todos.

—Se os caseiros pudessem pagar o resto das rendas...

—A senhora morgada devia conhecer o que é guerra sobre guerra. Tivemos esse excommungado Junot, mais as suas aves de rapina, a comer-nos os olhos da cara. Nem as egrejas respeitou, o maldito! A senhora morgada ainda fala em pedir o resto das rendas aos caseiros! E para quê? Para fugir para o Porto, para casa de seu genro, para abandonar as suas propriedades!

—O padre capellão velará por ellas. É que eu bem sei os sustos que curti aqui durante a primeira invasão. Se no Porto não estivesse a soldadesca do Taranco, teria fugido para lá.

—E que teima essa de me querer confiar as suas propriedades, capacitado como estou de que a senhora morgada suppõe que lh'as administro mal! Administro mal, administro, porque não forço os caseiros a pagarem o resto das rendas para vossa senhoria o ir gastar no Porto com a familia de seu genro. Depois de uma guerra e em vesperas de outra é que a senhora morgada fala em pagar!

—Pagar é um dever, padre capellão, e quanto mais{12} nos apressamos a fazer o que devemos tanto maior é o repouso do espirito. Bem sei que são más as circumstancias, mas é que tambem esta pobre gente se importa pouco com o calendario, e acha que todo o tempo é tempo. É que tambem não imaginam que se esconda a pobresa detraz de pergaminhos e genealogias. Pois esconde, se esconde! Sabe o padre capellão que eu falei no resto das rendas porque n'esta occasião não ha dinheiro em casa. Ninguem melhor o sabe, porque lhe passam os negocios pela mão. O que é certo é que eu sinto ameaços de pobresa...

—Nem tanto ao mar, senhora morgada...

—Se presinto! Vivo modestamente n'estas solitarias Chãs, encantada nas graças d'Augusta, cerrando ouvidos ao bulicio da cidade que está proxima. Não posso fazer despezas extraordinarias, é preciso não largar a brida da mão para costear as indispensaveis.

—Os chás não são indispensaveis, senhora morgada...

—Magôa-me a sua ironia, padre capellão! Tanto mais que sabe como é limitado o serviço da nossa mesa de jogo. E depois queria que eu fechasse as minhas portas na face do velho Teixeira, amigo leal da nossa casa desde a mocidade de meu marido? Sabe o padre capellão como o morgado deixou as propriedades sobrecarregadas de hypothecas. Mal tenho podido rehabilitar o casal, apesar de todas as economias e da maxima abstenção d'obras de beneficencia...

—Maxima abstenção!...

—É injusto, padre capellão! Refere-se talvez á Augusta... Não sabe que é filha de minha filha, casada por inclinação com um honrado militar do exercito portuguez, a quem não basta unicamente a sua immaculada honradez para ser feliz! Era-me impossivel soccorrer a mãe; soccorri a filha. Eu não podia ir mais longe, senão teria ido. Sempre contrariedades! Sempre o padre capellão a annunciar-me algum novo desastre! Ah! mas d'esta vez creia que não haverá desastre nem contrariedade que me véde o tirar dos hombros uma enorme responsabilidade, levando Augusta para a companhia dos seus, e minha tambem, porque ella é minha, e muito minha, pelo sangue e pelo coração... Em ultimo caso, recorrerei ao emprestimo...{13}

—Outro?

—É minha filha e meus netos que eu prejudico; o padre capellão, não. Todavia, como é para bem d'elles, elles m'o perdoarão. O padre capellão por sua propria mão recebe os juros das quantias que tem desembolçado, e creio que as propriedades que conservo fartamente abastarão ao pagamento do capital, no momento em que queira usar dos seus direitos de crédor.

—Eu não quero...

—Deixe-me figurar a peior hypothese, e evidenciar-lhe que lhe não causam detrimento os seus desembolços.

—Falando francamente, senhora morgada, sou a dizer-lhe que o juro é pequeno...

—Augmente-o como lhe apraza. Não é meu costume questionar cinco réis ao padre capellão.

—Eu sou tão pobre como a senhora morgada, tartamudeou o reverendo com um frouxo de tosse que denunciava estar providencialmente entalado com o osso da mentira.

A morgada gesticulou de incredulidade e enfado.

—Eu sou tão pobre como a senhora morgada, reatou o capellão ajudando-se a engulir a falsidade com um sorvo de rapé—e é á custa de trabalho que tenho recolhido escassas mealhas ao canto da gaveta. De inverno arrosto as neves da madrugada para saír aos campos a espionar os trabalhadores no interesse de vossa senhoria. No verão aguento as calmas do meio dia para os estimular ao trabalho. As horas feriadas de canceiras externas passo-as á banca a fazer a escripturação ou no quarto a rezar as minhas orações. Tenho envelhecido ao serviço de vossa senhoria, e o magro peculio do pobre padre ao trabalho o devo. E o mais é que já vou achando ser horas de descançar... Vejo porém que não seria facil encontrar quem com zelosa dedicação governasse a casa alheia, e, se me é canceira o dirigil-a a despeito da velhice, tambem me é consolação o ouvir dizer-me a consciencia que devo trabalhar por não ver quem facilmente me substitua. Digam embora o senhor seu genro e a senhora sua filha o que quizerem, e me consta que dizem: a verdade é esta...

—Convenho, padre capellão, e é por conhecer a sua desinteressada—a morgada deu a esta palavra{14} uma inflexão sensivelmente ironica—desinteressada dedicação, que tenho batido á sua porta sempre que a necessidade me obriga a incommodar alguem. Se lhe pedia agora para passar aviso aos caseiros, era porque não queria importunal-o com repetidas mercês...

—Nunca me incommodaram as ordens de vossa senhoria, atalhou o padre, curvando-se respeitosamente a meio da sala.

—Eu é que a mim mesma me incommodo com a ideia de incommodal-o, posto que eu não seja dos devedores que mais devem aborrecer por egoistas...

—Creio que já tive a honra de dizer á senhora morgada que a occasião é má para todos.—E proseguiu mirando ao alvo que elle queria attingir: Era porém grande a quantia que vossa senhoria desejava?

—A sufficiente para me transportar ao Porto com a menina, e para não tornar pesada a hospedagem que minha filha haja de dar-me. É preciso partir, padre capellão, se os francezes não forem repellidos na fronteira. Entrarão por esse Minho dentro furiosos, e eu não respondo só pela minha vida, que já pouco vale, mas tambem pela de Augusta, que me foi confiada em deposito. Que valeria a minha presença aqui? Os criados fugiriam decerto, e a edade do padre capellão não lhe permittiria defender duas mulheres, ambas timidas, uma porque é velha, e outra porque é nova. Além de maior segurança que offerece o Porto, como grande cidade que é, Augusta poderá d'ali seguir melhor a sorte de seu pae e seu irmão nos combates. Não estará para aqui anciosa sem receber noticias que a tranquillisem. Aqui, quando ha guerra, apenas se sabe que ha guerra, e mais nada. O padre capellão offereceu-se para ficar; desappareceram todas as difficuldades. Sem o seu offerecimento eu não poderia deixar desamparado o solar de meus avós. Teria de luctar angustiosamente entre o amor d'Augusta e o respeito á memoria de meus paes e meu marido. Se os invasores entrarem, respeitarão porventura a sua velhice e as suas vestes, padre capellão, se é que elles respeitam alguma cousa...

O padre capellão, julgando haver já simulado a precisa resistencia á partida da morgada, apostrophou de golpe:{15}

—Mas, voltando ao caso, senhora morgada, ponhamos os pontos nos i i. Quanto desejava vossa senhoria?

—Eu... cem moedas talvez.

—Cem moedas é muito, senhora morgada, e eu não estou prevenido.

—Pois veja o padre capellão se póde obter essa quantia, que eu cederei a qualquer exigencia de juro.

—Menos de 15 por cento não será possivel, senhora morgada...

—Pagarei os 15 por cento; trate o padre capellão de negociar sem demora as cem moedas.

—Hum! rouquejou o padre. Veremos. Póde ser que se abra alguma porta ao homem honrado que só em grande estreiteza deixa d'abrir a sua. Ámanhã falaremos, senhora morgada. Vou fazer as minhas rezas emquanto não chega o palrador do Teixeira com noticias dos francezes...

E saíu da sala em direcção ao seu quarto.

A morgada, vendo-se só, pareceu respirar com sofreguidão, como o encarcerado que conquista a liberdade e, como elle, pareceu conversar comsigo mesma:

—Que alma de marmore a d'este homem! É um inimigo que tenho de portas a dentro e que conservo porque me não permitte o animo nem a edade travar lucta com tão arteiro contendor, que apara todos os golpes na batina com beatitude irritante.

Depois levantou-se, agitou a campainha, e esperou com os olhos fitos na porta que apparecesse a criada.

—A menina dorme? perguntou.

—Dorme, senhora morgada.

—Accende o candieiro e abre a mesa. Quando bater o sr. Teixeira, manda entrar.

Palavras não eram ditas, resoou a aldrava do portão.

Momentos depois entrava á sala o velho Teixeira, fidalgo retirado das pompas da côrte por conselho da consciencia que o advertia de que estava a empobrecer d'um dia a outro. N'aquelles tempos que precederam a retirada da familia real para o Brazil, as tentações de Lisboa eram tantas, e tão dispendiosas, que não admirava que um cortezão immolasse a celebradas{16} damarias o seu opulento morgado do Minho. Alguma coisa salvára porém o velho aulico do muito que na côrte consumira. Trouxera de lá a palaciana compostura que realça até mesmo na decadencia. Maneiras e palavras, pesadas com fina discreção, estavam desculpando a cada passo as sombras que por mais d'uma vez denunciavam não ser impeccavelmente crystalina a reputação das açafatas da rainha D. Maria I.

Entrou o fidalgo e logo correu a morgada a perguntar-lhe anciosamente:

—Que noticias nos traz vossa senhoria?

—Boas, senhora morgada, se póde haver boas noticias quando a tempestade, que se descondensa n'um ponto, ameaça n'outro.

—Inda bem! inda bem! apostrophou a morgada relanceando um olhar d'alegria á porta do quarto onde estava descançando a neta.

O padre capellão, sem se dar o incommodo de desculpar a ligeireza com que alinhavara as suas orações, appareceu mordido de curiosidade.

—E o caso é que pensei que das indagações já não sobrava tempo para o nosso voltarete!—disse o Teixeira sentando-se a um gesto da morgada.—Venho tarde, e porei por desculpa da demora o bom empenho que tinha em poder satisfazer a justa anciedade de vossa senhoria.

—Não obstante serem boas as informações, supplico-lhe que não aggrave as côres do quadro, dado que entre por ahi de improviso a minha neta, que se recolheu aos seus quartos, por ordem minha, para não ser testemunha auricular da narrativa no caso de que fosse lugubre.

—Os francezes foram repellidos heroicamente, disse o fidalgo baixando a voz.

—Vamos a isso! atalhou o padre capellão fungando uma pitada.

O fidalgo proseguiu:

—Os francezes não ousaram metter-se ao Minho, que vae de monte a monte, com a agua que tem caído, por se arreceiarem da cheia. Trouxeram por terra os barcos que puderam obter na Guardia, e puzeram-n'os a nado no Tamuge.

—Que artes teem os malditosl exclamou o capellão{17} lembrando-se de que não haveria thesouro que resistisse á astucia franceza.

—Deixe ouvir... observou a morgada.

—Eram vinte e tantos os barcos, que pretendiam abicar á praia do Camarido. Trez separaram-se, ao descer o rio, e chegando primeiro á praia, os soldados desembarcaram. Os outros barcos tiveram que luctar, e muito, contra a maré que lhes era adversa. Isto durou toda a noite. Só hontem de madrugada foi que o Champalimaud percebeu claramente a tentativa do inimigo, e que mandou fazer fogo de fuzilaria. Um dos barcos foi a pique; outro despedaçou-o o mar. Os francezes dos trez primeiros barcos refugiaram-se no Camarido. Estes desastres deram alento aos paisanos, que se embarcaram para atacar o inimigo no rio, protegidos pela artilharia da Areia Grossa e da Insua, e pelos soldados do 21. Os francezes, contrariados pela correnteza das aguas e pela resistencia dos nossos, retrocederam para a margem direita do Minho, desesperando d'atravessal-o. Então bateram os nossos a matta do Camarido, encontrando dentro mais de trinta francezes, um dos quaes consta ser capitão e haver declarado o nome do general em chefe de todo o exercito. Chama-se Soult o general...

—Elles tambem escolhem-n'os pelos nomes! interrompeu o padre para quem toda a prosodia era difficil, incluindo a latina e a... portugueza.

—Os paisanos, segundo se dizia em Braga, fizeram proezas, continuou placidamente o fidalgo. Até as mulheres acudiram com fouces roçadouras e forcados.

—Nunca as mãos lhes dôam... observou impudentemente o capellão

—Pelo meio dia atacaram os francezes Villa Nova da Cerveira, sendo ainda repellidos brilhantemente pelos nossos, tropa e povo. Mas, senhora morgada, o que mais dava que falar era a coragem de trez rapazes de Valença, que se arrojaram a ir encravar um morteiro, que os francezes tratavam de assestar contra a praça. Isto é o que se sabe desde manhã; o que já se terá passado pertence a Deus e aos que estão em armas.

—Mas que lhe parece a vossa senhoria: entrarão ou não entrarão? perguntou a morgada.{18}

—Para que nos havemos de illudir com mentirosas esperanças? Os invasores são poderosos e por mais d'uma parte poderão entrar, ao passo que os nossos, divididos para guarnecerem as fronteiras, perdem muito de sua força n'essa mesma divisão.

—Com que então não se fala por ora em guerra! disse de improviso a morgada ouvindo abrir a porta do quarto d'Augusta.

O fidalgo já não teve tempo de responder porque sentiu na sala os passos da menina.

—Então não ha guerra? exclamou Augusta com graciosa innocencia.

—Não ha, não ha, respondeu amavelmente o fidalgo; a não ser a do nosso voltarete.

E continuou, convidando a morgada a sentar-se:

—Permitta-me vossa senhoria, senhora morgada que eu continue a assestar a bateria dos codilhos contra a muralha de preferencias do nosso reverendo. Então, padre capellão, quer sentar-se?... Em que estava pensando tão absorto?

—Estava pensando que se não puderem entrar pelo litoral, poderão entrar por Chaves, porque o castello está desmantelado, disse o capellão com a maxima impudencia ou com a maxima velhacaria.

—O quê?! perguntaram todos a um tempo, incluindo Augusta, que pareceu fulminada de raio.

—Ah! sim... isto é quando elles entrarem. Vamos lá fazer a partida.{19}

O Annel Mysterioso, Scenas da Guerra Peninsular

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